ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
Rádios hermanas
Ondas latinas em São Paulo
Leandro Aguiar | Edição 155, Agosto 2019
Eram quase cinco da tarde, e Miguel Angel Ahumada revisava apressadamente suas anotações. Naquele domingo, 9 de junho, o locutor do programa Latinoamerica no Ar pretendia inteirar os ouvintes dos principais temas tratados no 5º Simpósio Internacional sobre Religião e Migração, realizado na semana anterior, na PUC-SP. Com as flautas andinas da vinheta soando como fundo musical, o jornalista chileno destacou aquele que considera o maior desafio atual para os deslocamentos humanos, que “nunca, na história, deixaram de acontecer”: o avanço da extrema direita.
“A extrema direita usa o populismo para tratar da questão migratória, sem apresentar soluções efetivas”, disse o radialista de 54 anos, em português carregado de sotaque. “Dialogar é a melhor forma de chegar a um denominador comum”, completou, citando como exemplo a postura do papa Francisco, de quem é admirador confesso. Em seguida, Ahumada mandou tocar El Reloj, na interpretação de seu compatriota Lucho Gatica, que encerrou o primeiro bloco do programa.
Latinoamerica no Ar começou a ser transmitido em 2010, sempre às cinco da tarde de domingo, pela 9 de Julho, “a rádio da Igreja de São Paulo” (AM 1600 kHz). Como as emissoras prestam pouca atenção aos estrangeiros que vivem no Brasil, a Pastoral do Migrante, por intermédio do padre Mário Geremia, resolveu propor à Arquidiocese de São Paulo que abrisse um horário para os hermanos. Ahumada e Patrícia Rivarola, filha de mãe paraguaia e pai cearense, estão à frente da iniciativa desde o início.
O programa dura uma hora, com cardápio extenso: anuncia festas típicas, homenageia aniversariantes, noticia sobre missas em espanhol, transmite música e os comentários engajados de Ahumada. É um ponto de encontro de imigrantes vindos de diferentes países – são mais de 385 mil em situação regular apenas na cidade de São Paulo, segundo dados de junho de 2016, da Polícia Federal. “O rádio é um meio direto e prático para trabalhar em conjunto com os imigrantes e acolhê-los, abordando as necessidades de cada uma das comunidades”, resumiu o locutor.
Quando o relógio se aproximava das seis da tarde, Ahumada, depois de ler uma nota das Nações Unidas sobre os venezuelanos que deixaram seu país – mais de 4 milhões desde o fim de 2015 –, reafirmou a necessidade de os governos acolherem essas populações “vítimas de desequilíbrios econômicos sem precedentes”. E exortou, em castelhano, os venezuelanos residentes em São Paulo a constituir uma associação para reivindicar seus direitos: Una persona sola no consigue casi nada.
Chileno de Santiago, Ahumada busca manter pulsante sua veia de comunicador desde que imigrou para o Brasil em 1990. Nos primeiros anos, entretanto, além de penar para aprender português, teve de se afastar do jornalismo para embrenhar-se na epopeia burocrática dos imigrantes latinos em busca de regularização no país. Enquanto providenciava a nova documentação e a revalidação de seu diploma (ele é formado pela Universidade do Chile), fez um pouco de tudo. Chegou, inclusive, a integrar a enorme indústria têxtil que absorve boa parte da mão de obra imigrante: tornou-se vendedor ambulante de linhas de costura.
Vencidas as dificuldades iniciais, Ahumada rumou para o interior de São Paulo, no encalço de oportunidades. Em 1994, foi convidado por amigos brasileiros para ocupar a faixa da noite na Rádio Coluna FM, em São Roque (SP). Passou a conduzir o programa Os Grandes Clássicos, dedicado não exatamente a Bach, Beethoven e Brahms, mas aos imortais do rock, como Led Zeppelin e The Doors.
Nessa época, várias rádios em espanhol começaram a operar clandestinamente em São Paulo, como a Expressão Latina e a Sudamérica, hoje extintas. Locutores em sua maioria bolivianos e peruanos passaram a frequentar as ondas FM e a transmitir notícias sobre crimes contra imigrantes, resenhas do futebol latino-americano, recados amorosos e sorteios de brindes. Nos intervalos, entre cúmbias e reggaetons, espalhavam-se as cobiçadas propagandas de lojas e indústrias de confecções.
A popularização da internet possibilitou na última década a criação das rádios online, que têm a vantagem de não serem importunadas pela polícia como são as emissoras piratas am ou fm.
Até mesmo os padres scalabrinianos, que se dedicam a apoiar os imigrantes, dispõem de uma rádio online. Chama-se Migrantes, foi criada com a ajuda de Ahumada e Rivarola e apresenta desde programas sobre o estilo de vida dos bolivianos no Brasil (Falando Portunhol) até debates com professores universitários (Travessia Sonora). Diariamente, o padre Paolo Parise, em um português com discreto sotaque italiano, faz uma análise dos fatos em Coyuntura de la Semana.
Produzida por radialistas voluntários de diversas nacionalidades, a programação da Migrantes é transmitida majoritariamente em espanhol, mas também apresenta locuções em português e, para alcançar a comunidade haitiana, em francês. O próximo objetivo é investir na onda dos podcasts.
Mas nem só de notícias e debates vivem os ouvintes latinos. Saudosa das canções em espanhol, a comunidade imigrante em São Paulo providenciou uma penca de rádios online, como a Bolívia, a Infinita, a Mega Fox, a Okey, a Gigante Musiquero e a Invasion, voltadas para a transmissão de músicas. É nos grupos de WhatsApp dessas emissoras, aliás, que se decide parte da vida social da juventude imigrante, com convocatórias para festas e shows, nos quais locutores e ouvintes confraternizam.
Um dos apresentadores mais conhecidos da Radio Bolívia FM é Emerson Pairumani Salcedo, de 26 anos, nascido em La Paz, idealizador, produtor, roteirista, editor e locutor do programa Ritmo Virtual, com atrações do pop latino. Como não dá para viver só de rádio, Pairumani também é locutor de lojas, DJ, animador de eventos e cantor.
Engravatado, ele costuma se apresentar em um amplo salão de festas nas cercanias da rua Coimbra, a “rua dos bolivianos”. Tenemos que aprender a conocernos, asi que esa música va para todos, disse ele a uma plateia de cerca de duzentas pessoas numa noite de sábado. Uma chorosa sanfona da banda de covers latinos Agrupación Prodigo emendou a canção Cómo Te Voy a Olvidar, clássico da cúmbia. E Pairumani entoou: Amor, amor, amor/Quiero volver a besar tus labios rojos… A plateia, emocionada, também soltou a voz.