A questão é como sair do campo de futebol, espraiando a promessa para converter a democracia racial em realidade ou num sistema que permita driblar a oposição dura entre as classes e as raças FOTO: JULIO PIRES
Raízes do século XXI
Em Veneno Remédio, José Miguel Wisnik retoma a tradição do ensaio de interpretação nacional, tendo agora o futebol como metáfora
Pedro Meira Monteiro | Edição 59, Agosto 2011
Por que não se escrevem mais ensaios de interpretação nacional?
Haverá quem acredite que esse tipo de ensaio não tem cabimento hoje em dia. Afinal, quando Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda escreveram Casa Grande & Senzala e Raízes do Brasil, há quase oitenta anos, não havia a massa de conhecimento que hoje se tem, graças ao trabalho de décadas de cientistas sociais e historiadores. Mas se esse conhecimento todo permite falar de forma mais nuançada sobre o Brasil, ele também inibe, lembrando que qualquer tentativa de fixar traços nacionais será um exercício impressionista que não resiste a uma análise criteriosa da sociedade e da história.
O ensaio de interpretação nacional, contudo, não é e nunca foi o resultado do acúmulo de informações. O ensaio não fala do Brasil como ele é. Seu horizonte é radicalmente outro, diferente daquilo que pode propor um estudo de cunho científico ou histórico. O horizonte do ensaio é de natureza ética, quase transcendente. Ele sonda a vocação da coletividade: indaga não apenas como se veio parar aqui, mas aonde se vai e, mais ainda, aonde se deve ir. Seu campo de visão inclui o passado, o presente e o futuro num continuum, apostando numa história de larguíssimo alcance, como se navegássemos num fluxo cujo destino é ignorado. E o verdadeiro ensaísta é aquele que nomeia o destino, fazendo dele uma fábula na qual o leitor possa se reconhecer.
Então, depois de décadas de desenvolvimento das ciências sociais e dos estudos históricos, há ainda lugar para um ensaio que nomeie a vocação do Brasil?
A resposta veio há três anos, na forma de um livro que pode se tornar o Raízes do Brasil do século XXI: Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik. É lamentável que, sobretudo no meio acadêmico, ele não tenha ainda gerado grandes debates. Talvez haja alguma reticência por conta do tema, já que nem todos os intelectuais estão a fim de levar o futebol a sério. Mas talvez o problema esteja em que o livro ponha o dedo numa questão mal resolvida: a mestiçagem. Não a mestiçagem como mescla, apenas, de traços genéticos ou fenotípicos, mas sim como a quebra fundamental de padrões associados à ordem e à disciplina. A mestiçagem, em suma, enquanto mistura de matrizes e princípios civilizacionais. Que seria, por assim dizer, uma bagunça fertilizante.
Para Wisnik, o futebol não é uma válvula de escape para tensões sociais, um entretenimento banal, ou mesmo simples expressão de interesses econômicos e mercantis. O futebol é antes um sistema simbólico que aproxima amplos setores da sociedade da experiência real da perda e do ganho, que, como tais, serão sentidos e vividos como uma experiência coletiva. Ou perdem todos, ou ganham todos. Daí não se poder negligenciar o alcance político e identitário dessa aventura compartilhada.
A tentação de ver aí uma pulsão populista, de possível manipulação das massas, é grande, embora equívoca. É verdade que o fanatismo das torcidas é uma forma de apagamento de qualquer respeito pela diferença (o hooliganismo é um fato), mas antes do fanatismo há uma imensa gradação de possibilidades associativas, de identificação com o que se passa dentro de campo. Não escapará ao leitor a matriz psicanalítica de Wisnik: quando se fala do futebol, trata-se de analisar mecanismos de transferência complexos, isto é, o que se dá em campo tem uma implicação para o sujeito que assiste à partida, porque ali está cifrada a história e, porventura, o destino não apenas dele, mas de todos.
Uma diferença fundamental em relação às formações coletivas manipulatórias como o fascismo, dirá Wisnik, é que elas vivem no estado hipnótico que as leva para a frente, evitando tudo o que possa fazê-las cair na real (ou “no real”, em termos psicanalíticos), enquanto o jogo propicia uma batalha encantatória que está sempre à beira do real, e que inelutavelmente cairá nele. De fato, por mais que a partida encante, quando se joga para valer o risco da derrota é assumido e vivido, como se a perda fizesse parte do diálogo que o sujeito entretém com o destino.
Quando se joga, aprende-se a perder, enquanto a formação fascista se sustenta na negação de toda perda, evitando qualquer sombra de frustração, sempre buscando, com irritação e violência, varrer do mapa aqueles que pareçam colaborar para uma derrota inaceitável.
Por que “veneno-remédio”, o termo com o qual Wisnik caracteriza o futebol brasileiro? A fórmula remete ao phármakon, que contém em si as sementes da cura e da destruição. A constatação do livro é mais ou menos simples, em parte intuitiva, mas sempre certeira: o Brasil viveria numa oscilação imaginária entre o sucesso e o descalabro. Somos os melhores, ou então não prestamos para nada.
O país, dirá Wisnik, “é ou receita de felicidade ou fracasso sem saída”. Não se admite nada entre os dois polos, e a mais perfeita sátira desse estado da alma coletiva é o “emplasto Brás Cubas”, que Machado de Assis pôs na imaginação de seu personagem, para que ele morresse pensando numa solução providencial que aliviasse de vez esta “melancólica humanidade”. Contra a tristeza profunda, a alegria eterna. Disso ainda morreremos, seria a lição de Machado.
Veneno Remédio é um livro no qual a erudição futebolística faz par com a análise cultural e filosófica. Se a síntese que ele propõe está próxima da indefinição radical de Sérgio Buarque de Holanda quanto ao futuro do Brasil, o aspecto elíptico e abundante da prosa de Wisnik o aproxima, nesse ponto ao menos, de Gilberto Freyre. Ou talvez, Veneno Remédio faça o meio de campo entre os dois ensaístas, já que é deles que Wisnik extrai as traves de seu pensamento.
Limito-me aqui a uma questão, fundamentalmesmo para aqueles que não ligam para o futebol. Trata-se de algo que, em Veneno Remédio, é nomeado como a “vocação não linear do futebol brasileiro”.
Por que a não linearidade, a elipse e os contornos sinuosos são chamados a dizer algo que vai além do campo de futebol? Como essa resistência ao retilíneo pode ajudar a compreender toda uma formação social, e coloca perguntas sobre o destino coletivo? A resposta parte de uma iluminação provocada pela literatura.
Além de amante do futebol e músico, Wisnik é um talentoso crítico literário. Daí que Veneno Remédio se inspire, logo de primeira, na distinção do cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini, que, no início dos anos 70, imaginou a oposição entre o futebol jogado em prosa, que ele associava às equipes europeias, e aquele jogado em poesia, identificado ao futebol sul-americano e, sobretudo, brasileiro.
A provocação tem consequências profundas para a compreensão do jogo visto por dentro. Mas, ao mesmo tempo, ela aponta para formas diversas de jogar com o pacto social, maneiras diferentes de explorar, enfim, os espaços dentro da sociedade. Num lado, europeu (capitalista, urbano, Primeiro Mundo etc.), a “vocação linear e finalista”, com “passes triangulados, ênfase defensiva, contra-ataque, cruzamento e finalização”; de outro, latino-americano (periférico, rural, Terceiro Mundo etc.), a “irrupção de eventos não lineares”, com a “criação de espaços vazios, corta-luzes, autonomia dos dribles, motivação atacante congênita”. Duas matrizes de jogo, e duas possíveis civilizações em confronto, ainda que se trate de princípios presentes em cada uma das sociedades em pauta.
Mesmo feita a ressalva dessa não exclusividade dos dois princípios, é chegado aqui um momento sensível, quando leitores mais zangados, desconfiados diante da matriz “freyriana” que elogia a civilização tropical em sua maleabilidade e ductilidade, atribuirão a Wisnik a apologia da malemolência nos trópicos, como se cada drible efetivo, em sua fulgurante beleza plástica, fosse a prova da superioridade de uma sociedade que, por assim dizer, contorna o conflito, incapaz que é de enfrentá-lo. Aí estaria, ademais, a leitura risonha do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, que os desavisados costumam identificar ao apagamento da violência, com o sucesso de uma “bondade natural” plenamente realizada na pátria bem-aventurada.
Conviria que o leitor em questão engolisse a zanga e, por um momento, recolhesse os lábios à posição original, antes de ensaiar seu sorriso irônico diante de – vejam só! – mais um a formar na fileira dos seguidores de Freyre. Discutir se Wisnik é mais ou menos freyriano é de uma ociosidade brutal. Evidentemente, há algo propriamente modernista, tendendo porventura mais a Mário e Oswald de Andrade que a Freyre, no estudo das consequências desses dribles, ou dessas “irrupções” que terminam por criar um curto-circuito na ordem linear dos objetivos claros, buscados segundo a lógica cristalina de meios e fins. Ou ainda, haverá aí algo tropicalista, com o sonho de uma civilização que se faz a expensas da ordem ameaçadora da técnica e da previsibilidade, apostando na soltura dionisíaca, vinda do prazer e da alegria do corpo.
O técnico, nesse sentido, é um castrador indesejado. Se necessário, exigirá do sujeito genial que deixe de lado seus rompantes criativos em nome da eficiência, porque os resultados são o que importa. Trata-se de um complexo de Dunga ou de Parreira, que não à toa acabaram por desempenhar a função paradigmática do técnico castrador, odiado exatamente porque poda aquilo que o Brasil teria de melhor.
Não é que castração e técnica sejam dispensáveis. Qualquer organização psíquica (inclusive coletiva) se desenvolve no intervalo entre a regra assumida e internalizada, de um lado, e o espaço que se costuma identificar como a “liberdade”, de outro. Esse espaço “livre” não existiria sem a ordem estabelecida. Não só a transgressão não existe sem a lei, como a própria liberdade depende, afinal de contas, do rompimento de uma regra fixada internamente, funcional no plano subjetivo. Para usar o velho jargão psicanalítico, não se joga bem quando o superego domina absoluto, mas tampouco há que deixar soltos os instintos, ou melhor, o id, o “isto” que, incontrolado, mergulharia a todos numa batalha sem tréguas e sem fim.
Deixo para lá algumas das miragens internas do livro, como o encantamento de Wisnik pelo caráter único do futebol que, ao contrário do football jogado nos Estados Unidos, viveria à borda do imponderável, infenso à natureza cumulativa e progressiva dos esportes mais populares entre os norte-americanos. De fato, há algo muito interessante num esporte como o futebol (soccer), em que os mínimos e inesperados detalhes podem mudar o destino da partida, dando a sensação de que nem sempre o melhor é que vence, como se no fim houvesse uma possível justiça poética a aguardar ainda os mais fracos, para redimi-los. Enquanto isso, esportes como o basquete ou o futebol americano vivem do acúmulo linear de pontos, tornando praticamente inevitável que, ao final, vença o melhor, isto é, aquele que soube conjugar técnica, preparo e talento, abolindo, por assim dizer, o poder do azar.
É o poder do azar (sim, Mallarmé é também central em Veneno Remédio…) que está em jogo, quando entra em cena a “superioridade” do futebol brasileiro. Mas não se trata do azar como castigo cósmico, ou como determinação mítica do rumo da história. O “azar” em questão aponta para o poder fecundante da indeterminação, daquilo que se abre em uma miríade de possibilidades, exatamente porque não há nada capaz de cerrar ou controlar o quadro, quando se trata de uma jogada propriamente poética – e há muitas, belissimamente descritas no livro.
A poesia (e com ela o futebol, em seus momentos epifânicos) vive no limite da indeterminação, explorando as fronteiras do possível, alargando-as, nessa “faixa de gratuidade estrutural” que Wisnik atribui ao futebol. A técnica, no entanto, trabalha com as fronteiras do possível, atendo-se a elas e respeitando-as, numa espécie de reverência pelo que já está dado.
Imagina-se o alcance, portanto, da “não linearidade” que Veneno Remédio postula como característica nacional e que, em vez de constituir um caráter inelutável ou fixo, é simplesmente um elemento em jogo, com o qual os brasileiros devem se haver e que pode inclusive beneficiá-los. De uma perspectiva “racional” (desenvolvida, controladora, técnica etc.), a não linearidade é um defeito maior, mas é dessa droga que o Brasil extrairá seu remédio, ou seja, é a partir desse veneno que o país poderá dialogar com os donos do mundo, o que levaria a pensar no futebol como um “emplasto Brás Cubas que deu certo”. A ideia é tentadora, e fez com que Wisnik, a meio da partida, chamasse a campo um outro Buarque de Holanda, desta vez o filho do autor de Raízes do Brasil.
Observando uma pelada entre garotos europeus e filhos de imigrantes em Paris, em 1998, Chico Buarque notou que os ricos jogavam como “donos do campo”, privilegiando “o controle da bola em função da ocupação organizada do território”, enquanto os pobres eram apenas os “donos da bola”. A passagem vale a citação completa, pelo remate tocante: os filhos de imigrantes, diz Wisnik, secundando Chico Buarque, “se aproveitam, no futebol, da oportunidade de se adestrar o mais possível na intimidade com a bola (desenvolvendo no jogo aquela perícia que conhecemos, dolorosamente esplêndida e desperdiçada no espetáculo fugaz dos ‘malabaristas do sinal vermelho’). Uns são equilibrados, outros são equilibristas”.
Entre o equilibrado e o equilibrista agita-se a questão do domínio dos códigos e, também, da confiança que se pode ter nas regras. Bem equilibrado, o rico joga como se o campo fosse seu plano natural, já que cada milímetro dele pode e deve ser ocupado racionalmente. A exceção, claro, é o ponto exato e itinerante em que está a bola, porque ali é que o “pobre” aparece para equilibrar-se, e o aspecto circense do estilo de Ronaldinho Gaúcho é provavelmente o que vem à mente do leitor. Afinal, ninguém disse ao pobre que o campo é também seu, portanto é melhor que ele não se fie na simples ocupação racional e horizontal do espaço, e é melhor que construa suas maravilhas para cima e para os lados, mas sempre em torno de si, sem perder a bola, em sua condição de ponto instável de equilíbrio.
Ainda na tabelinha entre pais e filhos, José Miguel avança com as observações de Guilherme Wisnik, lembrando que a ocupação do espaço é reveladora quando se trata da história norte-americana em sua marcha para o oeste. Aí estaria a “vocação imperialista para a conquista”, para a ocupação de ponta a ponta do território, que o faz pensar no campo de football, mas também numa grande linhagem poética que vai “de Walt Whitman a Herman Melville, incluindo John Ford, Frank Lloyd Wright e a land art”.
Já nós (um “nós” imaginário, como convém aos ensaios) nos equilibramos onde podemos, e como podemos. Porém, em Veneno Remédio a não linearidade não é chamada a dizer simplesmente a verdade de um “jeitinho”, ou de uma “bossa”: “coisas nossas”, no linguajar de Noel Rosa. De nada adiantaria, aliás, edulcorar tais “coisas” e pendurá-las na parede das nossas ilusões, como um troféu que dissesse a nós mesmos que somos os melhores, mesmo que o resto do mundo não saiba disso. Em suma, não se trata de autocondescendência ou autocelebração. Veneno Remédio é uma pergunta urgente sobre o que fazer com o que temos: como evoluir a partir desse estado de coisas?
Em certo momento do livro, quando escritores diversos são convocados a dizer algo sobre o futebol, Wisnik lembra Mário de Andrade, que, discorrendo sobre uma derrota do Brasil para a Argentina em 1939, imaginou os brasileiros como “onze beija-flores” indefesos diante da azeitada máquina platina, como se uma “Minerva-Argentina” desse uma palmada de mestre “num Dionísio adolescente e já completamente embriagado” que, em sua teimosia divina, inventava todavia “umas rasteiras sutis, uns jeitos sambísticos de enganar” e “uns voleios rapidíssimos, uma coisa radiosa, pânica, cheia das mais sublimes promessas”.
Aí está o segredo de Veneno Remédio: a sublimidade de uma promessa irrealizada, de um espasmo de beleza e genialidade que se consome no próprio instante, que se esvai sem tornar-se produtivo, espetáculo fugaz e inútil, como o dos meninos malabaristas. Mas como converter essa produtividade improdutiva, esse momento glorioso e sem consequências, em um projeto, em uma cadeia de consequências claras e estáveis para a sociedade? Como, do prazer ininterrupto que move Macunaíma em sua saga de anti-herói, construir algo? Haveria que parar e mandar Macunaíma à escola, ensinar-lhe a técnica que ele por princípio despreza e ignora?
Garrincha é Macunaíma, Macunaíma é Garrincha. Para além das semelhanças “biográficas” desse saci-curupira de pés tortos – nascimento excepcional, crescimento anormal, precocidade e retardamento conjuntos –, Garrincha é o senhor do drible, que o leva a extremos inimagináveis de graça e curvatura. O drible macunaímico de Mané Garrincha é, para Wisnik, a conjunção benéfica de três termos: a elipse (a fuga da linearidade que produz um efeito poético, no plano retórico), o chiste (um instantâneo do inconsciente, nos termos de Freud) e a síncopa (acento contramétrico que se dá no encontro das rítmicas europeia e africana). Todos os três são dribles, à sua maneira: a elipse é uma maneira de contornar o próximo termo lógico, criando uma suspensão e um desvio inesperado no discurso; o chiste (Witz, no original; Freudian slip, em inglês; mot d’esprit, em francês) é o deslizamento que permite enganar a censura do consciente e soltar aquilo que estava guardado e reprimido no inconsciente; já a síncopa abre a possibilidade de que o corpo escorregue entre o tempo e o contratempo, desdobrando-se para caber num espaço que resiste à vocação marcial da marcha, expandindo-se naqueles requebros e meneios capoeirísticos que aos cronistas mais tradicionais da virada do século XIX para o XX pareceriam simples elemento regressivo, perigosamente africanizado, e que aos modernistas, justamente, vão parecer um tesouro, algo próximo à nossa mais pura essência, ou talvez, nos termos de Mário de Andrade, a nossas mais “sublimes promessas”.
Mas nem só de Garrinchas se faz uma nação, e convém perguntar até quando o amadorismo “renitente” e “pré-moderno” poderá existir, numa sociedade que avança e começa a ensaiar seu futuro a sério. Veneno Remédio aparece, não à toa, no momento em que o Brasil vai experimentando a sensação rara de que, talvez, haja um lugar para si à mesa do mundo desenvolvido. Evidentemente, a tensão entre a técnica e a soltura, a previsibilidade e a gratuidade, o virtual e o atual coloca-se como questão agônica para o país e explica, ao menos em parte, por que o “ensaio de interpretação nacional” renasceu justamente agora, em meio ao empuxe da última década, que nos levará sabe Deus aonde. Quando a pergunta transcendente – sobre o fim que aguarda a coletividade – começa a fazer sentido e a subir de volume, o ensaio se torna urgente, permitindo que a imaginação crítica solte as amarras da objetividade estrita, tão necessária quanto limitante.
Melhor nem entrar no caso de Pelé, deixando aos amantes do futebol a tarefa de buscar o diálogo que, em Veneno Remédio, Wisnik enceta com Tostão e Décio Pignatari, para compreender o jogador em tudo excepcional, que parece ter dado “atualidade ao virtual”. Fiquemos apenas com o balanço irresolvido e irresolvível entre a técnica e a soltura, o equilibrado e o equilibrista, que nos joga numa espécie de túnel na história das ideias, em cujo fim estão os luminosos debates do modernismo brasileiro, que por sua vez se atualizam na discussão que, em plena ditadura, o crítico Antonio Candido fez do balanço entre a “ordem” e a “desordem”. Um balanço irrequieto, provocativo, que Candido cunharia celebremente, não sem um fundo de ironia, como a “dialética da malandragem”.
Quando publicou seu ensaio em 1970, Antonio Candido analisou Leonardo, personagem central de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Ali já estava cifrado todo o problema a que Wisnik procura responder em seu ensaio. No romance do século XIX, de acordo com Candido, “poderíamos dizer que há um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois polos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo polo convencionalmente positivo”.
Ocorre que, numa leitura crítica de corte nitidamente modernista, Antonio Candido extraiu, segundo Wisnik, “uma interpretação de surpreendente acento positivo”, ao concluir que o romance produziria, em sua atmosfera de negaceios, “um encantador ‘mundo sem culpa’ de ânimo democrático e tolerante, avesso a estigmatizações e caças a bruxas”. Haveria, portanto, uma discreta preferência pelo valor paradoxalmente positivo da desordem, como se Garrincha ganhasse a batalha, embora talvez não a guerra.
Ao apontar para a maneira como a estrutura social se entranha na forma do romance, as teses de Antonio Candido seriam depois fundamentais para Roberto Schwarz, que aliás cobrou dele, num ensaio intitulado “Pressupostos, salvo engano, da dialética da malandragem”, o encantamento pelo polo da desordem, num momento em que, justamente, o Brasil necessitava de alguma ordem jurídica que fizesse frente ao arbítrio da ditadura. Mas antes que nos percamos nesse cipoal de questões tão interessantes, vale a pena notar que a “dialética da malandragem” se refere a um balanço, a uma “gangorra” entre polos diversos, sem apontar necessariamente para a vitória ou prevalência de um dos lados. Nem poesia nem prosa, nem epifania nem técnica, nem futebol nem football, trata-se antes de uma irresolução radical.
Aleitura proveitosa de Veneno Remédio exige que se leve a sério a provocação do título, mas também que se preste atenção ao fato de que sua argumentação é cuidadosamente armada em oposições sucessivas, fecundas em sua irresolução e tensão: “prosa e poesia”, “capotão e capital”, “rito e jogo”, “a lama e a grama” etc. Basta notar como se constrói o ensaio, para entender que Wisnik fala de uma indivisível (não à toa, este é o título de seu recém-lançado CD) unidade de contrários, de um balanço perpétuo que grita como a verdade mais funda do Brasil. Não uma verdade essencial, parada no tempo e no espaço, mergulhada nas profundezas geológicas do “ser”, mas a verdade de uma tensão e de uma irresolução, sem que se apague jamais a sensação de que, podendo, os brasileiros cairão no polo da desordem, pois lá os choques se “abrandam” e o mundo se revela potencialmente “mais aberto”.
Aqui regressa o pomo da discórdia, porque essa face supostamente porosa e maleável aponta, justamente, para o encontro incruento, para a cordialidade em sua face mais generosa, abrindo as cortinas do passado para a questão espinhosa da herança da escravidão e de como ela se estabeleceu e desenvolveu no Brasil.
Não se pode dizer que Wisnik fuja ao problema. Ao contrário, ele tenta agarrar o touro à unha quando, recuperando o diálogo do crítico exilado Anatol Rosenfeld com Mário Filho sobre a presença do negro no futebol, sugere que se instaura uma espécie de “democracia racial em campo”. Estando ainda tão cerca o calor das primeiras discussões sobre política afirmativa no país, vale a pena reproduzir a ressalva na íntegra: “Podemos dizer que a democracia racial do futebol brasileiro prescreve (no sentido médico, de indicar um remédio), mas não descreve o Brasil. Ou, ainda, que ela descreve possibilidades realizadas e significativas que não se completam como sistema. Em outras palavras, o país não coincide consigo mesmo, e a democracia racial tem de ser complexamente pensada como algo que é e não é, contendo nesse paradoxo o xis da questão.”
A questão é como sair do campo de futebol, como realizar aquilo que não se realiza senão como momento ínfimo e espetacular, espraiando a promessa para convertê-la em realidade ou num “sistema” que permita à sociedade driblar a oposição dura entre as classes e as raças. O problema é tão mais gritante quanto classe e raça produzam overlaps, confundindo-se tanto e tão frequentemente no Brasil.
A miscigenação não é, portanto, a simples promessa da mistura. Nenhuma “raça cósmica” deve se formar no horizonte dessa civilização, nem há nenhuma intenção de negar o racismo no Brasil (“racismo à brasileira”, diria Roberto DaMatta), ou desqualificar a importância dos movimentos negros, por exemplo. O que há, em Veneno Remédio, é a aposta na pluralidade de uma fórmula compósita, como se uma matriz civilizacional mais “porosa” pudesse nascer daí, dessa desatenção às linhas retas que permitem esclarecer, sem margem a equívoco, quem está de um lado e quem está do outro.
O caminho é traiçoeiro e Wisnik conhece suas armadilhas. A principal delas é o “luso-tropicalismo” de Gilberto Freyre, que, em sua fase mais infeliz e reacionária, se entusiasmou com Portugal salazarista, advogando a excepcionalidade e a doçura do domínio lusitano nos trópicos (quando Portugal possuía ainda suas colônias na África, é bom lembrar). Pode-se argumentar, contudo, que as soluções políticas do Freyre luso-tropicalista não estavam ainda completamente reveladas em Casa Grande & Senzala, de 1933. Mas deixemos de caminhar sobre brasas, para voltar ao horizonte de Veneno Remédio.
O princípio ingovernável – que Wisnik chamará, com divertida e irônica precisão, de “valor p antropológico” – sugere haver algo indefinível sempre que nos aproximamos desse campo de experimentações que seria, para todos os efeitos, o futebol. Nele, algo como uma indecisão reinante faz lembrar o diagnóstico de Caetano Veloso, que, olhando para o espelho norte-americano, lembra que “aqui embaixo a indefinição é o regime”.
A onda tropicalista, a que se juntam outros além de Caetano e Wisnik (Hermano Vianna, por exemplo), vive da crença nesse espaço limite em que a ordem resvala e falha, permitindo a entrada em cena de um elemento inesperado, resistente à classificação. Podem-se tirar daí teoremas raciais, ou pós-raciais, que não poucos críticos identificarão a uma forma perversa de autonegação de um país que jamais saldou sua dívida histórica com os negros. Mas esta seria uma forma de colocá-los, a autores como Wisnik, Caetano ou Hermano (de resto tão diferentes), numa redoma em que eles se tornam os representantes indesejados de um redivivo e muitas vezes mal compreendido freyrianismo. Esse enquadramento violento e empobrecedor é, no entanto, uma maneira de não ouvir o que eles estão dizendo.
O trabalho e a reflexão sobre os limites da ordem são a forma viva de se pensar os limites da classificação, bem como os limites dos espaços sociais. O que não quer dizer, é claro, que a brincadeira promovida com a des/ordem em campo possa abolir as barreiras reais e cruéis que existem fora dele. Há aí um problema que, não sendo apenas um xis gritante no plano das ideias, nos atira diante de questões de ordem sociológica e histórica. Afinal, a “alquimia” do veneno-remédio – o futebol brasileiro – ainda não produziu a fórmula que traga a democracia para o plano do real, isto é, que promova aquela “queda no real” que Wisnik justamente propõe, e que é talvez a única maneira efetiva de romper o encanto de qualquer fórmula mágica. Mas aí, quebrado o feitiço, que será feito do Brasil?