Quando o interrogatório estava para começar, tocou o telefone e o sujeito saiu da sala. Passei os olhos pelo prontuário. Tudo estava lá: nomes, codinomes, estrutura organizacional FOTO: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Rakudianai
A política, a prisão, o encontro com o crocodilo, o julgamento e meu pai: lembranças de quarenta anos atrás
Persio Arida | Edição 55, Abril 2011
Mas vê, meu amor, a verdade
não pode ser má.
Clarice Lispector
Era 1970 e eu tinha 18 anos. Fiquei preso por vários meses e fui processado na Justiça Militar por crimes contra a segurança nacional. Uma história pouco original: fui um entre tantos jovens movidos pelos ideais de um mundo melhor que a revolução parecia oferecer.
Por muitos anos deixei esse capítulo de minha vida adormecido. Mas o passado nunca está definitivamente concluído, age sem que o saibamos, ambíguo e esfinge. Há momentos em que desaparece, como se só importasse o cotidiano atribulado. Mas logo reaparece, como uma sombra que se projeta sobre o presente. E nós o interpretamos continuamente, temos que decifrá-lo repetidas vezes para restituir coerência e identidade à nossa história.
Quando pequeno, meus avós contavam episódios de suas vidas. Era uma maneira de me fazer apreender suas raízes e torná-las minhas também.Um fugira do Líbano, escondido em um navio, apavorado com a repressão dos turcos depois de uma revolta fracassada. Parou no Rio de Janeiro e se casou com uma italiana que conheceu na rua da Alfândega – com quem por muito tempo não conseguiu trocar nenhuma palavra. Outro contava de sua ida para o Egito, das caravanas de camelos, do sol do deserto que marcara o seu corpo para sempre, e depois sobre as carroças no interior da Austrália. Eu os ouvia embevecido, querendo mais e mais detalhes, pedindo que recontassem inúmeras vezes passagens heroicas ou engraçadas, fascinado pelo inusitado e pelos acasos.
Foi inspirado no exemplo deles que decidi escrever esse relato, que dedico a meus pais. Escrever, e não contar. Meus avós, que falavam mal o português e o escreveriam pior ainda, não tinham essa alternativa. A deficiência linguística não lhes era um grande entrave. Contavam aventuras em mundos exóticos, e bastava traçar em grandes linhas o cenário para que minha imaginação de criança preenchesse os espaços vazios.
Eu nada tenho de exótico para contar. Não trato de aventuras e sim de sentimentos. Mas há aqui, no limite do que me é possível, um exercício radical de sinceridade. Não busco reconstruir a história a partir de uma perspectiva engrandecedora, como ocorre em tantos escritos autobiográficos, nem menosprezo o impacto dos momentos difíceis.
As memórias são lábeis, cada visita ao passado altera a frágil composição do terreno em que estão baseadas. E quando os sentimentos surgem, por milagre, no vigor original, não passam de afrescos preservados debaixo da terra, cujas cores vívidas se esmaecem no ar do presente. Daí minha escolha por um mosaico de fragmentos, flagrantes de emoção justapostos, longe da costura coerente que, tantas vezes, dá vida à ilusão de um processo ordenado.
Pai e mãe, nervosos, pensavam em lugares de esconderijo e possibilidades de fuga. Eu os havia convocado para uma conversa de emergência. Estávamos sós na sala de jantar, as portas fechadas. Minha irmã, de 16 anos, deveria ser poupada do problema. Que nada nos interrompa agora, disseram aos empregados.
Ficaram em estado de choque quando lhes contei do meu envolvimento com uma organização de esquerda, a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares, a famigerada var-Palmares do capitão Carlos Lamarca. Passado o susto, comportaram-se como boa parte dos pais em tal situação: importa, antes de tudo, salvar a vida do filho. Estávamos no auge da repressão militar e um colega do colégio secundário, também militante, havia sido preso e poderia me denunciar a qualquer momento. Daria tempo de conseguir um passaporte? E se fosse detido na fronteira? Os hotéis estavam certamente vigiados. Não poderiam expor amigos ou parentes pedindo que me escondessem. Foi quando meu pai, tamborilando os dedos nervosamente, teve a ideia luminosa:
– A garçonnière, Alice, a garçonnière!
Atônita, minha mãe não conseguiu esboçar nenhuma reação. Pois meu pai, apavorado com a ideia de o filho ser preso, torturado e talvez morto, se esquecera de todo prurido conjugal. Sequer percebeu a confissão espontânea. Telefonou na nossa frente para o amigo fraterno com quem dividia os custos e os dias de uso da garçonnière.
– Fuad, a coisa é a seguinte. Você não pode mais usar a garçonnière durante uns quinze dias… Não, Fuad, não é para mim. É uma emergência, não posso explicar. Confie em mim, Fuad, não estou querendo te enganar.
A tempestade doméstica que se seguiu foi de grandes proporções. Meu pai, espírito rápido, explicou a minha mãe que alugara uma quitinete no centro da cidade como favor a um amigo que, por um intrincado problema judicial, não dispunha de cadastro para fazê-lo diretamente. O epíteto “garçonnière” era uma brincadeira, explicou, uma maneira, como dizê-lo, carinhosa de designar a moradia daquele amigo perseguido pelos credores e que não dispunha de lugar algum para morar.
Não colou. O quê? Além de tudo, querendo me fazer de boba? A fúria materna era tremenda. Fã de boxe, meu pai seguiu à risca a estratégia que um treinador recomendaria naquelas circunstâncias: recuou até as cordas, fechou a guarda e foi para o clinch. Ao final de um round que durou muito mais do que três minutos, o gongo soou. O importante era salvar a vida do filho, o resto se arranjaria depois.
Antes de ir para a garçonnière tratei de esvaziar a casa. Entulhei panfletos, manifestos, anotações e mais as obras completas do Lênin em uma mala velha. Lênin era um escritor prolífico e sua obra, publicada em espanhol na União Soviética, a preço de banana, se estendia por vários volumes. A mala ficou um chumbo, daqueles de destroncar as costas de halterofilista.
O que fazer? Hospedar a maldita mala na casa de algum amigo poderia incriminá-lo. Enterrá-la no jardim? Não, o funeral de uma mala poderia chamar a atenção dos vizinhos. Abandoná-la em terreno baldio ou depósito de lixo? Não, as impressões digitais nos livros e nos papéis me denunciariam. A solução era o rio Pinheiros, fétido e poluído. Mergulhador algum se atreveria a buscar a mala naquelas águas.
A operação aconteceu no lusco-fusco de um dia de semana, lanternas de carros se confundindo com as últimas luzes do dia. Parei o carro bem perto da ponte da Cidade Jardim. Subiria pela faixa de pedestres até o primeiro ponto no qual pudesse jogar a mala.
Foi um sufoco. A alça arrebentou na partida. Mala antiga, sem rodinhas. Tentei fazer dela uma roda retangular, que empurraria, volta após volta, apoiada apenas nas laterais estreitas. Tolice – a mala tombou estrondosamente no chão logo na primeira volta. Empurrei aquele chumbo com as mãos enquanto minhas costas arqueadas aguentaram. Na metade da caminhada, exausto, passei a empurrar a mala com os pés, quase chutando o couro marrom, amaldiçoando Lênin. Era um enchedor de linguiça, um sujeitinho pretensioso, incapaz de se expressar com concisão, que achava que só porque era Lênin e mandava na União Soviética tinha que botar no papel toda maldita ideia que lhe ocorria.
O dia acabava, os carros passavam acelerados, um ou outro pedestre atravessava a ponte, desinteressado do meu infortúnio. A única manifestação veio de um mendigo bêbado. Estirado na sarjeta, gritou quando viu a mala a dois palmos do nariz: “Pede a bênção, meu filho! Cada um carrega a cruz que merece. Quem não tem cão, caça com gato, eu só carrego minhas joias.”
Eu era um pagador de promessas e a minha via-crúcis era o rio Pinheiros. O danado ria desbragadamente da minha desgraça, agarrado no saquinho de supermercado onde estavam suas joias. Repetia a fala em voz alta, autoritário: “Pede a bênção, meu filho! Cada um carrega a cruz que merece. A bênção, meu filho!” E ria, chorava de rir, se contorcia no chão de tanto rir.
Molhado de suor, só relaxei ao ver a mala chafurdar nas águas marrons e verde-escuras do rio, o esconderijo oleoso da minha militância de papel. O mendigo não viu meu triunfo – dormia largado, de barriga para cima.
Havia naquele mendigo a mesma graça desconcertante do Chacrinha. Junto com os amigos do colégio, planejamos um dia entrar no seu programa e vaiá-lo ao vivo, com transmissão direta. Para nós, aquilo era um circo montado para alienar as consciências, um ópio que fazia suportáveis as agruras do capitalismo. A farsa do Chacrinha só se mantinha de pé, pensávamos, porque as pessoas do auditório eram uma massa encabrestada que aplaudia por dinheiro.
Compramos os ingressos, entramos normalmente e nos espalhamos pelo auditório. Fiquei de dar o aviso para o início da vaia. Não diríamos nenhuma palavra de ordem. As massas entenderiam de imediato o protesto e o acompanhariam. Vaias copiosas, para que o teatro da alienação ruísse por terra. Minha tarefa era escolher o momento certo, em busca do máximo efeito possível.
O programa começou, e com ele as minhas surpresas. A plateia estava ali obviamente de bom grado e feliz. Não era uma claque a soldo do capitalismo – era gente pobre e humilde, que chegava cedo para conseguir um bom lugar e se dispunha a gastar seu precioso dinheirinho para ver seus ídolos. A empolgação era genuína. Havia de tudo ali. Mulheres do teatro de rebolado de tirar o fôlego, com nomes tão exuberantes quanto as formas de seus corpos – Rita Cadillac, Rose Bom Bom, e por aí ia. Mulheres de verdade, vedetes, como se dizia, com biquínis sumários, volumes e estrias. Não conseguia tirar os olhos delas. Os calouros também eram de verdade. Da minha cadeira, podia atestar o olhar ansioso, a tensão de meninos e meninas que tinham, naqueles parcos minutos, a chance da vida. A meu lado, uma mãe, enrugada e surrada pelo sofrimento, torcia como criança pelo filho. Na minha frente, um sujeito urrava de felicidade diante das beldades que povoavam o palco. Emoções autênticas, sem farsa.
O mais surpreendente era o próprio Chacrinha. Gordinho como um barril, voz de taquara rachada, com um imenso dial no peito e empunhando a buzina, era uma figura que faria bonito num quadro de Salvador Dalí. Tocava a buzina infame com um deboche irresistível – no meio de uma frase musical, na hora em que o calouro soltava a voz, ou até mesmo ao primeiro som que o infeliz entoava. Era tudo tão absurdo quanto as postas de bacalhau esbranquiçadas de sal que, de quando em quando, voavam para a plateia. Impossível não rir, como se ri de quem escorrega em uma casca de banana, do distraído que abraça o poste, ou do maluco que empurra penosamente a mala com os pés para deixá-la cair no rio malcheiroso.
O fato é que eu, que deveria dar o sinal para o início da vaia, capitulei diante do gênio de Chacrinha. Sempre tive um fraco pelo nonsense. Um companheiro me pressionou – e então, Persio, o que está esperando? Fiquei sem graça ao me dar conta de que não conseguira esconder o fascínio pelo despropósito que corria solto no palco. Inventei uma desculpa e iniciei a vaia logo em seguida.
Não fomos longe no protesto. Os seguranças do teatro se aproximaram rapidamente, armários ambulantes de terno, gravata e revólver no coldre. Um deles portava um dístico de delegacia e não tinha traço algum da civilidade dos policiais ingleses. Meninada, ponham-se daqui para fora. Fora! Estou dizendo: Fora! Já!
A garçonnière era uma espelunca. Ficava no 1o andar de um prédio caindo aos pedaços, estava empoeirada, tinha espessas cortinas de veludo e janelas emperradas. Impossível entrar sem receber um olhar malicioso do porteiro. No começo, pensei em subir pela escada para não ser visto – mas a escada era escura e servia de depósito de móveis e velharias dos moradores. O elevador, de porta pantográfica, era lento, mas tinha a vantagem de abrir quase em frente à porta da garçonnière. No final do corredor, os dois últimos apartamentos abrigavam um bordel, iluminado com abajures rendados e lâmpadas vermelhas.
Fiquei lá uns quinze dias. Meu pai se encontrava diariamente comigo, trazendo comida e contando novidades da família. O código de entrada era a campainha tocando várias vezes, em ritmos predeterminados. Os horários das visitas também eram combinados. Se eu não estiver aqui, pai, algo de grave aconteceu. E se eu não vier, filho, é porque a polícia está lá em casa, ou me seguindo.
A fuga fora providencial. Logo no segundo dia, na hora marcada, recebi a visita de um homem pálido e abatido.
– Os policiais vieram numa c-14, tocaram a campainha várias vezes e eu vi, meio que escondido, aquele seu amigo no meio dos tiras. Não trouxeram nenhuma ordem judicial, mas eram tiras, sem dúvida alguma.
Olhos cheios de lágrimas, meu pai contou que, quando a C-14 arrancou, foi tomado por um frio tremendo. Embrulhou-se em cobertores, apesar do verão escaldante. O medo, meu filho, gela a alma da pessoa.
A revolução era a luta do bem contra o mal, a luta por um Brasil sem explorados ou exploradores, no qual todos teriam comida, moradia e saúde. Na política, ainda mais para um adolescente, a identidade vem muitas vezes da confrontação com o inimigo – definíamos nosso contorno recortando-nos contra as injustiças do mundo. A revolução era a maneira de passar para a História, de deixar de ser um cidadão qualquer para tornar-me um iluminado, e qualquer ideia social-democrata era coisa de gente frouxa.
Mas não havia glamour que resistisse à realidade da garçonnière impregnada de cheiro de cigarro e perfume barato. Fui me acabrunhando, me encolhendo dentro de mim. Passava os dias entediado e nervoso. Só tive companhia por uma única noite, quando uma amiga do Colégio de Aplicação que não tinha onde se esconder ficou lá. Falamos a noite toda, ela contou até do dia em que perdeu a virgindade – “foi um desastre total, não tive prazer algum, mas depois me senti limpa, livre daquele entrave” – e terminamos dormindo ao raiar do dia, lado a lado na cama de casal, esgotados, sem sequer nos encostarmos, apesar do encantamento que há anos empurrava um em direção ao outro.
Saía do apartamento apenas para encontrar os amigos do colégio, todos recém-mergulhados na clandestinidade. Os encontros, ou pontos, ocorriam sempre na rua, em hora e local previamente marcados. Conversávamos sem parar, aturdidos com a falta de perspectivas, mas incapazes de encarar a hora da verdade que se aproximava. A cada ponto marcávamos o próximo. Se alguém faltar é porque foi preso.
Escove sempre os dentes, meu filho, porque mau hálito a gente só percebe o dos outros. Era o que meu avô me dizia e naqueles dias eu só percebia a depressão nos outros. Meu critério de depressão era dado por um de meus amigos, filho único e também colega do Aplicação. Foragido como eu, ele compunha uma figura desoladora. Ombros arqueados, olhar triste e braços pensos, enlutado, dizia que não havia futuro algum para nós. Seu nariz era perpendicular ao chão, se fosse um elefante sua tromba estaria varrendo a rua. Eu o via como um exemplo a ser evitado, onde já se viu alguém que se abate dessa maneira? Passava horas discutindo com amigos o que poderíamos fazer para animá-lo e resgatar seu ardor revolucionário. Aquelas conversas me faziam superior a ele, o Deprimido.
Mas o fato é que o suposto Deprimido conseguiu se exilar em Paris e eu, o Determinado, fui tomado por uma inércia avassaladora. Poderia ter fugido e me exilado, mas, por pura incapacidade de tomar qualquer decisão, fui ficando na garçonnière, comendo os sanduíches que meu pai trazia, aspirando e espirrando o pó acumulado nas cortinas, me submetendo ao olhar curioso do zelador cada vez que entrava ou saía do prédio, a cada encontro marcando outros encontros, em uma rotina sem finalidade ou perspectiva. Contava as horas como um doente terminal conta seu tempo de vida. Meu coração vivia acelerado, suava frio. Passava os dias espreitando a janela, atento a qualquer ruído estranho do lado de fora. Não fazia nada, não ia nem para frente nem para trás – apenas esperava.
O medo gelava minha alma.
Em plena rua Frei Caneca, quase na esquina da Marquês de Paranaguá, às seis horas da tarde, fui ao encontro de uma militante, depois de ter saboreado um sorvete derretido de inocência. Não fugi nem resisti, nem mesmo disse qualquer coisa; fiquei imóvel, inteiramente paralisado, como se por alguma mágica pudesse assim deixar em suspenso o tempo do mundo que me aterrorizava. O súbito surgimento daqueles militares à paisana, vindos por todos os lados, a rapidez com que fui subjugado e jogado no banco de trás de um carro, tudo me pareceu tão inusitado e surpreendente quanto uma trapaça do inconsciente, daquelas que desdobram um sonho inocente em um brusco pesadelo. Revistaram-me aos berros, queriam saber das armas que eu, na categoria de militante revolucionário, deveria estar carregando (mas eu não carregava nem um canivete), ameaçaram me matar se eu esboçasse qualquer reação, era o desfecho de um sonho mau.
Jogado no banco de trás de um carro, algemado e insultado, repassei toda minha vida, nos poucos segundos entre o momento no qual fui empurrado para dentro do carro e aquele em que as portas se fecharam. Tive a mesma experiência anos depois, ao sofrer um desastre de automóvel numa madrugada fria e vazia. Nos segundos que transcorreram entre o estrondo inicial e a batida no poste do outro lado da pista, repassei tim-tim por tim-tim toda a minha vida. Memórias de infância, família, amigos, namoradas, tudo.
A vida revivida nesses momentos extremos apenas tangencia a memória da vida que se tem em circunstâncias normais. É como se fosse outra a luz que, diante da iminência da morte, aclara os significados. Lembranças tolas adquirem enorme importância, um diálogo passageiro tem mais peso do que anos de convívio, pessoas se transfiguram. Naquele carro, sob o impacto da prisão e das algemas, meus 18 anos se compactaram e deles sobressaía apenas a memória viva do peito oprimido pela asma quando criança – o ar que não entra, a luta entre o sono e o chiado do peito, a internação no hospital para fazer inalação, o cheiro do material de limpeza, o vapor que saía do nebulizador e o ar esfumaçado que saía da minha boca no inverno frio de São Paulo.
Quando atinei com a situação, o carro já andava em alta velocidade. Precisava fazer algo. Não adiantava me beliscar para saber se era tudo verdade. Era. Não podia entrar em pânico. Precisava achar uma solução, um jeito de escapar. Foi quando, de estalo, passei seriamente a dedicar-me a uma ideia que, contada para quem não tenha vivido o pavor daqueles anos, beira a demência. Em meio a ameaças de torturas, dediquei-me obsessivamente a voltar o filme para trás e a mudar a cena inicial: não teria ido ao encontro da militante naquele lugar e naquela hora. Uma intuição profunda me dizia que era possível, sim, reverter o tempo e tomar outro rumo, transformar o futuro do pretérito em futuro do presente. Bastaria pensar concentradamente para descobrir o jeito de voltar atrás. O tempo talvez fosse uma ficção, talvez houvesse um meio de reverter a besteira de ter ido àquele encontro. Estava como empresários à beira de uma falência inevitável: apegam-se a qualquer ideia mirabolante, a qualquer perspectiva fantasiosa, por mais absurda que seja, para não ter que enfrentar a situação.
O carro estacionou no pátio da Operação Bandeirante, a Oban, na rua Tutoia. Fizeram-me entrar e subir uma escada que desembocava em uma pequena sala. Lá dentro, um sujeito à paisana a quem eu deveria prestar meu depoimento. Mesa, telefone e duas cadeiras. Um documento com capa marrom, muitas páginas datilografadas, típico das repartições públicas, ficava em cima da mesa. Entre uma baforada e outra de cigarro, ele permaneceu em silêncio enquanto folheava o prontuário, como que querendo refrescar sua memória.
A sala de torturas ficava ao lado; cuidaram para que eu soubesse antes de depor o meu destino no caso de falso testemunho ou recusa em colaborar. Em especial, mostraram com orgulho a cadeira do dragão, uma cadeira com uma placa de metal na qual seria sentado, amarrado e submetido a choques elétricos. Ninguém resiste, disseram, é bom falar desde agora.
Quando o interrogatório estava para começar, tocou o telefone e o sujeito saiu da sala. O guarda que ficava na porta estava entretido numa conversa com outro colega. Num impulso, mudei de lado na mesa e passei os olhos pelo prontuário. Havia feito um curso de leitura dinâmica, por sugestão de meu pai, mas só a tensão do momento explica a velocidade da leitura e apreensão.
Para meu espanto, tudo estava lá – nomes, codinomes, atribuições e estrutura organizacional. Aliás, eles sabiam mais do que eu mesmo. Nunca ouvira falar de vários dos atos revolucionários lá listados, nem da maioria das pessoas mencionadas. O conhecimento do inimigo que a repressão dispunha era desconcertante. A organização era um quebra-cabeça em processo avançado de montagem – fulano preso, beltrano morto, sicrano foragido, o quadro estava praticamente completo.
Uma vez, feito num desenho animado, um amigo meu, fugindo de uma vaca enfezada em um campo aberto, escalou de primeira uma árvore com uma presteza que inspiraria reverência a um símio. Nunca mais conseguiria repetir o feito, embora o tivesse tentado inúmeras vezes. Sem a vaca, a árvore era inexpugnável. Pois naqueles momentos que antecediam o interrogatório, eu fugia não de uma vaca, mas de uma boiada enfurecida. E a ideia salvadora veio, radiante e cristalina: mentir, mas com habilidade. Teria que fingir que, apavorado diante da perspectiva de ser torturado, estava disposto a falar antes mesmo da tortura. Confessaria tudo o que já sabiam. Mentiria apenas sobre a única coisa que interessava ao torturador: o paradeiro dos foragidos. Eles sabiam tudo, nomes, codinomes e sobrenomes, exceto onde estavam os foragidos.
Confessando espontaneamente o que acabara de ler no prontuário, talvez evitasse ser torturado. Meu depoimento sendo crível, não desconfiariam de nada. Guardaria trancado dentro de mim o calendário de encontros previstos com meus companheiros. Bastaria não aparecer em um, dois encontros para que soubessem que algo de grave acontecera. Teriam tempo de fugir.
Diria de partida o endereço onde me escondia – nenhum foragido iria para a garçonnière, era uma informação sem consequência. Listaria também todos os encontros na rua que realmente estavam marcados, um por um, para dar ao depoimento o ar de algo novo, valioso para o torturador. Mentiria apenas sobre o dia e a hora dos encontros. E se algum dia minha mentira fosse descoberta, diria que me enganei apenas em detalhes de dia e hora, que confundi um encontro com outro.
Uma das imagens mais vivas que tenho da infância vem de um documentário filmado na África. Uma zebra atravessava um lago, ou tentava beber água. A câmera focalizava um crocodilo gigantesco e sonolento que tomava sol à beira do lago. Logo depois, se movimenta e submerge silenciosamente. Reaparece abocanhando a cabeça da vítima. O resto do corpo se debate, agonizante. A cena é rápida; tudo desaparece rapidamente dentro da água avermelhada. Na sensibilidade infantil, a cena foi vivida como se fosse eu o engolido pelo crocodilo. Um crocodilo de verdade, tão verdadeiro quanto o sofá no qual me sentava. Senti horrorizado o esmagamento dos meus próprios ossos, o rosto se tornando uma massa disforme na boca da besta. Cheguei a discordar com veemência de uma professora que dizia que “sentir um frio na espinha” era uma expressão com sentido figurado: ela nunca havia visto aquele crocodilo.
Há muitos crocodilos neste mundo. O crocodilo que atazanava o Capitão Gancho, o crocodilo do conto de Dostoiévski, o crocodilo das alucinações de ópio de Thomas de Quincey. Um crocodilo nunca desperta piedade ou compaixão. Suas pernas de réptil são atrofiadas, sua aparência desagradável ao extremo. O crocodilo é tão feio e desprovido de poesia que não serve nem como símbolo de coisas ruins. Na Divina Comédia, quem impede o acesso ao reto caminho são a pantera, o leão e a loba; na iconografia cristã, o mal é o urso, o pássaro preto, o dragão, o leopardo, o escorpião, a aranha e a baleia; no Velho Testamento, as pragas do Egito falam da mosca, da rã e do gafanhoto. Ninguém se lembra do crocodilo. E mais do que o crocodilo, o que me horrorizava naquela cena era o corpo da vítima, a cabeça triturada pelas mandíbulas, e o resto do corpo ainda dependurado, um corpo inteiro, mas já morto, meu rosto rasgado pelos dentes afiados e eu ainda consciente para sentir a dor do dilaceramento.
O horror humano talvez seja pior do que o crocodilo. O torturador justifica a tortura como mecanismo eficiente para lograr a confissão, o momento no qual o torturado dá voz ao corpo suplicante e cede. Mas como pode ele, torturador, saber se a confissão do torturado foi integral, irrestrita, se não guardou um resto de segredo? Como pode ter certeza? Apenas pelo exercício de uma violência sádica e desmedida, irrazoável por qualquer critério, que desespere o torturado a ponto de levá-lo a destruir os últimos redutos de sua consciência, que o faça abrir aos olhos e ouvidos do torturador todas as portas do mundo secreto onde moram os seus pensamentos, a sua altivez e a sua dignidade. Daí o horror especificamente humano da tortura: esmaga seus ossos, sim, mas apenas para quebrar a sua alma. O torturador é um crocodilo de almas – o torturado que confessa só sobrevive após ter morrido por dentro.
Eu queria dar um drible de Garrincha no crocodilo: não ser torturado e não dedar ninguém. Por que torturariam quem confessava de cara o seu envolvimento, e estava tão apavorado que, sem ter levado um tranco, já listava todos os encontros que teria com os foragidos? E quem imaginaria que era um ardil, uma esperteza do mais fraco? Nenhum torturador poderia saber ao certo se minha memória havia ou não se confundido em detalhes como o local ou a hora dos encontros.
Minha primeira experiência de liberdade não veio ao andar sozinho, algo do qual nem me recordo. Mas sim ao ouvir minha mãe dizendo, antes que eu dormisse, meu filho, você deve sempre contar tudo para sua mãe. A intenção era boa, era sua maneira de saber se alguma babá me fazia algum mal quando ela virava as costas. Eu dizia sim, mamãe, mas pensava: só conto o que quiser, ela nunca saberá o que de fato penso, e isso me fazia poderoso e feliz. Ela poderia saber onde eu estava e o que fazia a cada minuto do meu dia, mas não o que se passava dentro de mim. Os torturadores também jamais me invadiriam o suficiente para saber se eu havia mesmo me enganado nos horários e dias dos meus encontros.
Na esperteza do momento, resolvi contar o único ato revolucionário que havia praticado: a colocação de uma faixa de pano com dizeres revolucionários sobre o túnel da avenida Nove de Julho. A operação estava detalhadamente descrita no prontuário, não faltava um nome sequer, não complicaria a vida de ninguém reiterando o que já sabiam. Confessei-a nos menores detalhes, nomes, codinomes e papel de cada militante, para reforçar a ideia de um menino apavorado, disposto a contar tudo.
Na verdade, havia aquiescido em participar da colocação da faixa a contragosto. Entrei na VAR-Palmares em parte por opção – o Partidão era lugar de gente velha, frouxa, e portanto desqualificado in limine – e em parte por conveniência – a VAR fora a única organização de luta armada que se aproximara de nós. Mas, uma vez lá dentro, fui tomado por uma confusa mistura de medo e descrença. Passava os dias lendo e escrevendo, longe de qualquer envolvimento com atos violentos. Por mim, assim ficaria para sempre, suspenso no limiar da existência revolucionária. Era uma inserção precária e em dado momento não resisti à pressão para que fizesse algo de prático. Colocar a faixa pareceu-me uma boa solução de compromisso. A faixa divulgaria os nossos ideais; antes isto a assaltar bancos, sequestrar ou participar de guerrilhas.
As discussões sobre os dizeres da faixa absorveram horas. Cada palavra remetia a infindáveis digressões teóricas. Ao final, a discussão afunilou-se: “Morte ao mau patrão” ou “Luta armada contra a ditadura dos patrões”. A favor da primeira militava algum raciocínio, que na hora pareceu-nos atrativo, segundo o qual os bons patrões deveriam ser deixados em paz. A favor da segunda havia a identificação da ditadura aos patrões como um todo, e a explicitação da luta armada como instrumento de transformação. Ficamos com a segunda.
Meu papel era preparar o carro que transportaria a faixa. Eu era o único que tinha carro, carinhosamente apelidado de Genoveva. Para evitar que a placa pudesse ser anotada, passei a madrugada pintando a chapa do Fusca com as mesmas tintas que usava nos meus devaneios de pintor. Só parava para escutar, e reescutar, o primeiro movimento da Bachiana nº 4, em uma velha gravação da Orquestra Nacional da Radiodifusão Francesa dirigida pelo próprio Villa-Lobos.Era a música que eu havia escolhido como símbolo da revolução brasileira. Ela me tornava mais rijo e determinado.
A operação foi às seis da manhã. Entrei no Fusca com olheiras profundas, mãos impregnadas de tinta, muita Coca-Cola e café, barba sem fazer, tenso como o diabo. Nosso grupo era composto de estudantes, classe média, amigos do Colégio de Aplicação. Todos igualmente inexperientes em matéria de atos revolucionários. O difícil era manter a disciplina de chamar os amigos pelo codinome. Treinava mentalmente – este do meu lado não é o fulano que conheço há tantos anos e que sentava do meu lado no colégio, é o beltrano. Já pensou se em uma situação de perigo chamo o meu amigo pelo nome verdadeiro?
Acompanhei a operação de dentro do carro, motor ligado e olhos atentos. Alguns poucos transeuntes que passavam a pé pelo viaduto pararam, curiosos. Acompanharam o desenrolar da faixa e a feitura dos nós que a sustentariam com olhares de profunda perplexidade. A mesma perplexidade que teriam diante de uma daquelas performances artísticas que mais tarde entrariam na moda. Um ou outro, testa franzida, debruçou-se para ler os dizeres da faixa – eram-lhes obviamente incompreensíveis. Paravam como parariam diante de um acidente de carro, um camelô de boa lábia ou uma dupla de repentistas.
A operação foi um sucesso técnico. Nenhum policial nos viu. Não nos importamos muito com a qualidade dos nós – o importante era escapar o mais rapidamente possível. Pouco tempo depois, antes mesmo de voltar para casa, passei de carro pelo túnel. Tal como os criminosos, não resisti à tentação de voltar ao local do crime. A faixa não estava mais lá. Nosso feito colossal durara pouco.
A estratégia foi bem-sucedida. Quando o depoimento terminou, fui conduzido a uma cela, e não à sala de torturas. Por que acreditaram em mim? Talvez porque outros houvessem de fato amarelado e contado tudo o que sabiam antes mesmo de apanhar, de sorte que meu caso lhes parecesse um déjà vu. Talvez porque meu depoimento tivesse sido feito em tom humilde e desprovido de hostilidade. Talvez porque não discrepasse do que já sabiam a meu respeito. O inquisidor não teria tido razão para supor que eu estivesse mentindo.
É possível até que tenham acreditado em mim por desinteresse. Eu era mais um daquela longa lista de estudantes recém-saídos do secundário, simpatizantes da causa, mas não revolucionários de verdade. O inquisidor sabia que através de mim jamais chegaria ao que de fato lhe interessava, o cerne da organização, os homens que conduziam a luta armada.
Na cela não havia ninguém. Apenas um colchão velho, surrado, manchado de sangue seco, manchas mais recentes se sobrepondo a manchas antigas. Um colchão imundo, com cheiro de urina, nauseante. Lembrava o cheiro dos mendigos de rua. Nenhum cobertor ou travesseiro. Da cela, ouviam-se perfeitamente os gritos de desespero ou dor vindos da sala de torturas e da cadeira do dragão. Apesar de tudo, cochilei, exausto.
Acordei no meio da noite enfurecido comigo mesmo. Queria esmurrar as paredes, de ódio da minha própria imbecilidade, raiva por não ter sido coerente, arrependido não dos meus ideais, mas de não ter levado a sério minhas ideias.
É que eu sabia que nada daquilo tinha futuro. Naquele ano de 1970 a esquerda minguava. Cisões, rupturas, prisões, mortes, desistências – não passava um mês sem que a esquerda revolucionária fosse destruída em mais um de seus grupos e organizações. Só um voluntarista ensandecido poderia acreditar que tudo seria possível desde que houvesse suficiente ardor revolucionário. Já percebera também, menos por argúcia do que por obviedade, que o microcosmo dos militantes reproduzia a mesma gama de sentimentos negativos das pessoas despolitizadas. Por trás das lutas intestinas pelo poder de mando estavam a inveja, a intriga e a maledicência, firmes e fortes. Che Guevara estava errado: dali não surgiria homem novo algum.
Além disto, como justificar os inocentes mortos pela esquerda armada? Alguém lançava uma bomba contra um quartel e matava um soldado raso. O pobre soldado não tinha culpa de nada, tinha tido apenas o azar de estar na hora errada e no lugar errado. Talvez tivesse encontrado no Exército uma oportunidade de emprego e uma carreira. Eram atos de uma guerra não oficial, mas naquelas circunstâncias não passavam de um terrorismo obscuro. A grande maioria da população jamais entenderia do que se tratava.
Minha intuição era clara como água: era uma batalha perdida. E eu não estava disposto a sacrificar minha vida no altar da revolução, ainda mais de uma fracassada. Por que não desisti?
A resposta crua: covardia. Mais precisamente, falta de coragem para ser covarde. Desistir era um vexame, espetáculo mais deprimente do que um juiz de futebol correndo de um jogador irado na frente de milhares de espectadores. Tinha vergonha de ter medo e mais vergonha ainda de ser chamado de medroso, de medíocre, pequeno-burguês egoísta buscando salvar a própria pele. Como em toda vergonha, o envergonhado se enxerga com os olhos daquele que o despreza.
Havia também uma prise, uma euforia heroica. Eu estava viciado na aura de heroísmo da vida revolucionária. A militância era minha emancipação da tutela familiar, o ingresso no mundo dos que escolhem conscientemente o próprio destino e aceleram o curso da História. Aquilo me engrandecia a meus próprios olhos. Tinha algo do Super-Homem dos quadrinhos, um ser aparentemente normal que, na surdina, adquire outra pele e salva o mundo.
Por fim, havia o charme das conquistas amorosas – heróis (e bandidos!) fascinam as mulheres, e eu precisava dele para conquistar meu primeiro grande amor. Silvia, mulher de olhos vivos e coração iluminado, era possuída pela chama da loucura. Venha, Persio, vamos embora daqui, longe do barulho e das buzinas de São Paulo, dos ternos e das gravatas, venha comigo ao Oriente. Eu vacilava, hipnotizado por aquela mulher, mas temeroso de uma aventura que me parecia sem pé nem cabeça. Eu a queria só para mim, mas não podia acompanhá-la. A militância era minha salvação, o único mundo que, aos olhos dela, tinha legitimidade para se contrapor ao amor incondicional e sem fronteiras que sentia. Não há nada que tenha tanto efeito em uma mulher quanto um beijo de despedida tendo como justificativa os compromissos da revolução. Ao final ela se foi, do Oriente jamais retornou, e preferi esconder de mim mesmo a natureza esfarrapada da minha desculpa.
Em resumo: aquela dupla vida era um voo livre, quase uma vertigem. Se desistisse, teria que aguentar o vexame apenas para recair na mesmice modorrenta da vida de um estudante que morava com os pais. Só com o tempo e a experiência é que vim a aprender que há circunstâncias em que coragem e covardia se disfarçam mutuamente. Terminar é o mais difícil de tudo, mas, mesmo assim, a renúncia é umas das poucas experiências de verdadeira liberdade.
Lembrei-me também, naquela primeira noite na cadeia, da conversa com um amigo que desistira da luta revolucionária. Minha tarefa era convencê-lo a ficar. Havia sido escalado justamente porque éramos muito amigos. Ele era cabeça-dura. Comecei a desfiar meu rosário de argumentos dizendo que naquele momento difícil a responsabilidade de cada um de nós para com os oprimidos era maior do que nunca. Mas ele, impaciente, interrompeu minha ladainha revolucionária abruptamente.
– Mas, Persio, você tem cu?
Surpreso, respondi, como assim?
– Pois, Persio, eu tenho. E quem tem cu tem medo. E eu tenho muito medo, não é pouco não, é muito, um medo do caralho que me arranquem as unhas a frio e me deem choques no saco. E, se você quer saber, além do mais não quero deixar de tomar minha cervejinha com bolinho de bacalhau. Faço isto todo sábado de manhã, naquele barzinho perto de casa, jogando conversa fora sobre futebol. Persio, estou fora. Torço por você e por todos. Mas não me leve a mal, não. Sou pequeno-burguês, cagão, o que você quiser. Só quero estar fora, sair do campo e ir para a arquibancada. O mar não está para peixe e, porra, eu quero viver.
Fiquei desarmado. Despedimo-nos com um abraço emocionado. Não o chamei de traidor ou de pequeno-burguês; tive lucidez para salvar nossa amizade. Mas não o suficiente para ouvir naquela profusão de palavrões a única voz que importava, a voz de alguém que conseguia extrair tanta satisfação de um bolinho de bacalhau com cerveja, uma voz que confessava abertamente e sem vergonha alguma seu amor à vida.
Ainda naquela noite lembrei minhas tentativas de cair fora sem dar vexame. Se a organização deixasse de lado a luta armada, estaria tudo resolvido. Eu não precisaria abandonar meus companheiros para salvar a pele. Poderia continuar militando sem o risco de ser torturado ou morto.
O problema era convencer meus companheiros. Passei a acumular avidamente programas, manifestos e panfletos de tudo quanto era ala, movimento, partido ou organização de esquerda. Montei uma matriz que se estendia por várias folhas de cartolina, grudadas com durex. Nas linhas as organizações: POC, Polop, PCdoB, PC etc. Nas colunas, vários itens do programa, em combinações binárias, sim ou não: democracia popular como fase intermediária do socialismo, sim ou não; luta armada, sim ou não; revolução burguesa completada, sim ou não; propriedade coletiva de 100% dos meios de produção, sim ou não; e assim por diante. Quando não conseguia extrair o sim ou não de um documento, marcava o espaço em branco com a sigla AP – não de Ação Popular, mas “a pesquisar”.
Nada concluí do inventário dos programas revolucionários. Fiquei desnorteado com a possibilidade de construir novos programas revolucionários simplesmente juntando de forma diferente os sins e os nãos; e quem me garantiria que a mera combinatória produziria os resultados corretos?
Resolvi então buscar nos clássicos o fundamento de que precisava. Marx silenciara sobre o problema da luta armada, o Brasil de 1970 nada tinha a ver com a Rússia de 1917, Mao era um pensador budista esotérico, Fidel Castro era bom de discurso, mas não tinha escrito uma linha sequer. Após peregrinações sem fim pela literatura revolucionária, Gramsci veio em meu socorro. Fiquei confuso com seus argumentos, lidos em traduções parciais de seus escritos para o espanhol, mas deles extraí o jargão e o mote que me interessava: “A luta armada como estratégia de conquista do poder está equivocada porque ignora o papel da conquista da hegemonia política na sociedade civil.” Quanto mais tempo se passasse nas trevas do Ato Institucional nº 5, menor a hegemonia dos ideais de esquerda. Nada contra a luta armada em si; o equívoco estava em não ajustar a estratégia revolucionária ao momento histórico. Naquelas condições, o triunfo do regime militar seria líquido e certo.
Conceito de hegemonia em punho, tratei de dissuadir meus companheiros. Escrevi um longo documento recheado de críticas para ser “aprofundado” nas nossas reuniões. Em última análise, dizia, e por razões outras: certo mesmo estava o velho PC em não embarcar na guerrilha revolucionária.
Santa ingenuidade. Quem iria levar a sério ideias de um estudante abonado, que morava com os pais numa casa chique nos Jardins? Minha legitimidade para discutir a matéria era duvidosa, para dizer o mínimo. Além do mais, a organização não se intitulava “Armada” à toa, nem tinha o capitão Lamarca na direção e seus fuzis AR-15 no arsenal por descuido. Os militantes de verdade da organização tinham mais o que fazer. Meu documento inspirou comentários condescendentes – excelente nível teórico, como se dizia na ocasião –, e só. Terminou sua frustrada trajetória naufragado na mala do rio Pinheiros.
A solução foi ficar a meio caminho. Não desistiria, mas também não me envolveria em atos violentos. Nada de assaltos a banco ou guerrilha. Uma militância light, que não me trouxesse grande risco de ser preso ou torturado. E talvez, com o tempo e um pouco de sorte, tudo se arranjasse – não daria vexame e tampouco seria preso.
O fato é que, por conta da minha índole pacifista, nem que quisesse conseguiria me imaginar colocando bombas ou dando tiros em alguém. Mas não era fácil driblar a pressão dos companheiros. Há um treino marcado em algum sítio distante para que você aprenda a atirar. Não, desculpe, minha mãe está seriamente adoentada, tenho que cuidar dela neste fim de semana. E de desculpa em desculpa fui escapando de todas as “oportunidades” de me envolver com a luta armada.
Houve apenas uma ocasião em que cedi. Pouco antes de fugir para a garçonnière, foi-me pedido que desse guarida, por uma noite apenas, a um homem da pesada, procurado. Era um revolucionário de verdade, que andava armado e fazia ações revolucionárias. Concordei relutantemente – uma noite apenas, ele tem que ir embora no dia seguinte pela manhã, bem cedo, antes das empregadas ou meus pais acordarem.
Ele chegou na hora combinada e entrou na casa rapidamente, como que fugindo de uma perseguição. Para minha surpresa, estava visivelmente amedrontado. Não largava a arma. Um nissei mirrado e com rosto de criança, nervoso e inseguro, completamente diferente dos revolucionários de verdade que imaginava existirem. Temeroso de qualquer envolvimento maior, expliquei onde eram o banheiro e a cozinha, dei boa-noite e foi só.
No dia seguinte, fiquei arrependido de tê-lo abrigado. Jurei a mim mesmo que nunca mais ajudaria pessoas envolvidas em atos terroristas. E tratei de ganhar tempo sem me envolver com a luta armada, inventando histórias e pretextos, com habilidade para que não desconfiassem das minhas verdadeiras intenções. Comportei-me como o sujeito da piada libanesa, contada e recontada por meu avô, que aceitou o desafio de ensinar o cavalo preferido do sultão a falar. O sultão era um tirano vingativo, o homem seria morto se não cumprisse o prometido. A única condição exigida pelo professor foi um prazo de dez anos para executar a tarefa. Ora, em dez anos, pensou ele, pode ser que o sultão morra, que o cavalo morra, que eu morra e, no limite, pode ser até que o cavalo aprenda a falar…
Um ou dois dias depois do interrogatório, os militares montaram uma campana na garçonnière. Não acreditaram quando dissera, no depoimento, que nenhum militante jamais apareceria naquele “aparelho”, como era denominada a garçonnière pelos militares.
O esquema consistia em três militares à paisana, armados, esperando atentos que algum revolucionário aparecesse. Meu papel era abrir a porta normalmente tão logo o militante chegasse. Fui ameaçado de morte se, de alguma forma, desse algum sinal que alertasse o companheiro.
A situação era constrangedora. Os militares em silêncio e eu espirrando alergicamente por conta do pó acumulado nas colchas e cortinas, ladeado por uma pilha de revistinhas de sacanagem. Cada minuto demorava uma hora para passar. Súbito, uma algazarra no corredor. A campainha – uma, duas, três vezes. O sujeito tinha pressa em entrar. Meu coração disparou: só poderia ser meu pai ou o Fuad. Fui tomado de uma sede monumental, o corpo inteiro desidratado. Fizeram sinal para que eu abrisse a porta. Os militares ficaram em posição de tiro, tensos, preparados para o tiroteio que poderia acontecer se o militante resistisse à voz de prisão.
Era uma puta, bêbada e com a pintura borrada, que confundira a garçonnière com o bordel no final do corredor. Apoiada na porta, caiu para dentro do quarto, trôpega, e foi logo se desfazendo dos sapatos de salto alto: Oi, meu bem.
A puta tinha cara de puta e jeito de puta, mas os militares voaram aos berros para cima dela. Viram na puta a mais perigosa terrorista do planeta. Só se aperceberam do ridículo quando era tarde. Algemada e sob a mira dos revólveres, ela armou um escândalo. Esperneou, xingou, só faltou cuspir na cara deles. A saia subiu acima da calcinha, os peitos quase para fora, bolsa esparramada pelo chão, batom e cigarros caídos por tudo quanto é canto, e ela berrava que já tinha acertado tudo o que devia com o investigador fulano de tal, que o delegado estava no esquema, que eles eram uns moleques, filhos da puta, veados.
Mulher valente, calejada, enfrentava os torturadores de igual para igual. Não se intimidava com nada. Foi solta logo em seguida, deixando os militares de péssimo humor e praguejando que, se não estivessem em serviço, dariam uma lição na mulher. E ela ainda saiu com nariz erguido, batendo a porta:
– Ninguém mais respeita acerto nessa porra de delegacia!
A puta lavou minha alma.
Também saía da prisão para os encontros de rua que havia listado no depoimento. Os militares se disfarçavam. Um, macacão sujo de óleo, fingia que consertava um carro avariado nas imediações do encontro. Outros ficavam nos pontos de ônibus adjacentes como se esperassem condução. Se houvesse um bar, alguns ficavam por lá tomando uma cerveja e apreciando o trânsito de pedestres. Tudo era pensado nos menores detalhes; cada encontro era preparado com a antecedência exigida de uma operação de guerra.
Evidentemente, nenhuma das pessoas que eu deveria encontrar aparecia. Mas em uma das vezes, por mero acaso, surgiu ao longe um sujeito muito parecido com o foragido que supostamente deveria me encontrar naquela hora e local. A semelhança era realmente impressionante, dos traços físicos ao modo de andar. Os militares, que conheciam o foragido de fotografia, o reconheceram no ato.
Fiz um sinal assertivo com a cabeça, confirmando que aquele era o homem. Desencadeou-se então o cerco. Aproximaram-se de todos os lados em uma manobra coordenada. Mas o sujeito não se intimidou. Percebendo o perigo, cruzou temerariamente a avenida movimentada. Por pouco não foi atropelado. Passos rápidos e firmes, andou no sentido contrário ao tráfego até o ponto de ônibus e pulou para dentro do primeiro que apareceu. Os militares tiveram que voltar aos carros e iniciaram a perseguição, no intuito de parar o ônibus a todo custo. Mas o homem desceu logo em seguida e sumiu na multidão. Escapou do assalto com fleuma extraordinária, digna de revolucionários de primeiro calibre. E serviu para afastar qualquer dúvida que os militares ainda tivessem sobre meus encontros.
Quando notaram meu desaparecimento, meus pais percorreram hospitais e velórios. Descobriram a verdade por exclusão: se não estava morto, só poderia ter sido preso, algo que lhes inspirava quase tanto horror quanto a própria morte. Mobilizaram então todos os amigos e conhecidos para saber de meu paradeiro e conseguir, de alguma forma, clemência para o filho adolescente. Não deixaram de falar com absolutamente ninguém. Apelaram para todos. Meu pai falava com fornecedores das suas lojas, gerentes de banco, amigos do clube, quem quer que encontrasse.
Pediu ajuda ao seu dentista – quem sabe ele não teria um cliente militar ou com influência no aparato repressivo? Pois o dentista tinha. Compadecido, passou o telefone do sujeito para meu pai. E ele ligou no ato:
– O senhor não me conhece, desculpe-me pelo abuso, mas o fato é que nós abrimos a boca para um amigo comum. O dentista. Somos assim, de certa forma, íntimos, e então eu me permitiria abordar um assunto…
O esforço de mobilização de todos os conhecidos acabou dando resultado. Um dia, ao sair da cela para mais um encontro fictício, vi à distância meu tio Jorge, irmão de meu pai e médico-chefe da Guarda Civil Metropolitana. Acenou e fez um sinal de alívio, embora não o deixassem se aproximar de mim. Outro irmão de meu pai, Salim, advogado criminalista, tentou entrar na delegacia que abrigava a Oban munido de algum instrumento judicial. Queria conversar comigo na função de advogado de defesa autoconstituído e me entregar um panetone, comida de que mais gostava quando criança. Foi tratado como palhaço e deram sumiço no panetone. Advogado, disse-me mais tarde, é alvo de ódio dessa gente.
Meu pai encontrou uma maneira particular de se comunicar comigo. Um dia, um guarda fardado da Força Pública aproximou-se da cela quando eu estava só. Entregou-me, furtivamente e sem dizer palavra, um pacote grande, formato retangular. Seu rosto estava banhado em suor, o suor gelado do medo. O guarda afastou-se em seguida, passos céleres e sem virar o rosto para trás.
Entendi na hora a mensagem carinhosa. O papel de embrulho dizia tudo: Casa Vitória, 25 de Março, a rua dos mascates e dos comerciantes do Oriente, pertinho da loja matriz de meu pai. Um pacote de esfihas – o mesmo pacote que aparecia em casa nos almoços de fim de semana. Fiquei feliz, estava amparado. Mas quem era aquele guarda? Um revolucionário infiltrado? Improvável, e mesmo se houvesse algum meu pai jamais o conheceria. O que levaria alguém a se arriscar daquela maneira?
Mais tarde soube de tudo: era por amor. Com a lábia de quem tinha sido caixeiro-viajante na juventude, meu pai travara amizade com um dos guardas que tomava conta da entrada da delegacia na rua Tutoia. O rapaz confessou-se perdidamente apaixonado por uma moçoila desempregada. Meu pai resolveu seu problema na hora. Empregou a moça como balconista sênior. Criou o cargo sob medida, para justificar-lhe um régio salário. Instruiu também o gerente a elogiar a competência profissional da moça independentemente do que ela fizesse. O guardinha ficou agradecido ao extremo por ter tido a chance de demonstrar para a moça todo o seu poder e prestígio. Dia sim, dia não, passava ao final da tarde na loja de meu pai para pegar a namorada e contar notícias minhas. E contrabandeava esfihas e outras iguarias (a comida da prisão era péssima).
O ritmo das prisões na Oban era vertiginoso. Volta e meia surgiam novos companheiros de cela, com quem dividia igualitariamente as esfihas de meu pai. Comíamos, no pátio, uma espécie de sopão.
Era ali que conversava com outros presos. Voz baixa, evitando formar grupos, as notícias corriam. Fulano foi preso, sicrano torturado novamente, outro removido para o Dops. Os nomes se sucediam, militantes de quem nunca ouvira falar.
Um preso que conheci no pátio me impressionou particularmente. Inspirava respeito a todos os demais; uma aura revolucionária o iluminava. Arrastava uma perna; diziam ter sido barbaramente torturado. Olhos grandes e claros, tinha o apelido de Bacuri. Poderia ter me esquecido do nome, mas jamais do olhar. Ele economizava as palavras, como se desconfiasse de tudo e de todos. Quem nele falava eram os olhos – um olhar aflito, ansioso na busca de alguma esperança ou cumplicidade, mas ao mesmo tempo oblíquo, fugidio, como que temendo que outro olhar falsamente solidário o denunciasse.
A rotina daqueles tempos só foi quebrada uma única vez. Todos fomos reunidos sem aviso no pátio para ouvirmos a preleção de dois ex-terroristas. Por um instante sequer entendi a expressão – se haviam sido presos, eram ex-terroristas por definição. Outro, no entanto, era o significado – eram terroristas arrependidos.
Massafumi Yoshinaga, disse um dos militares. Um patriota que se arrependeu dos assaltos a bancos e da guerrilha. Ele, que conhece o terror por dentro, quer transmitir a vocês uma mensagem importantíssima. Ouçam e meditem. É um pregador que presta um serviço à pátria, alertando a juventude brasileira para os riscos do comunismo e as ilusões da luta revolucionária.
Fiquei branco. Era o nissei da pesada que se hospedara na minha casa. Estava exatamente na minha frente. Impossível que não me tivesse reconhecido.
O nissei pediu a palavra logo depois do discurso do militar. Parecia ansioso por começar a falar. Discursou como numa assembleia estudantil. No meio da sua arenga, trocamos olhares furtivamente. Na linguagem oculta dos olhares, ele me disse que se lembrava de mim com tanta certeza quanto eu me lembrava dele. Terminada a falação, fomos encaminhados de volta para nossas celas. Não nos foi permitido conversar com eles.
Passei aquela noite em claro, esperando o momento em que fossem me chamar para uma sessão de torturas, de vingança. Havia escondido um terrorista em minha casa, portanto era cúmplice do terror, e não havia dito nada sobre o nissei no meu depoimento. Os caras iriam me bater para saber quem mais se escondera na minha casa.
O dia raiou, mais um dia inteiro se passou e outro e outro. Nada. Reinterpretei a situação: Massafumi Yoshinaga deve ter sido barbaramente torturado, pensei, faz esse papel de arrependido só para se livrar dos suplícios. É tudo fingimento. Por isso não me denunciou, por isso não nos permitiram conversar com ele a sós. Aquele discurso tinha sido um vexame público, vergüenza ajena, expressão concisa e intraduzível do espanhol, mas nada além de um vexame, uma estratégia de sobrevivência.
Ou será que os torturadores haviam penetrado por alguma fissura da alma do nissei? Diziam que ele tinha delatado vários companheiros. A convicção com que ele falava tinha algo de genuíno, e também de perturbador. Não eram as frases em si. Algumas poderiam perfeitamente ser verdadeiras (como seu raciocínio sobre a inviabilidade da luta armada), enquanto outras estavam encharcadas de constrangimento. Somente coagido alguém falaria bem da Transamazônica. Não eram as frases em si que me incomodavam – era a intuição de que a tortura poderia, em alguns casos, destruir o indivíduo, fazer com que ele deixasse, de certa forma, de ser quem era.
Soube uma manhã que seria levado ao Rio de Janeiro. Sem explicações. O Rio para mim era a ponta do Forte de Copacabana e um pôr do sol no Arpoador. Por que o Rio? Não conhecia nenhum militante revolucionário que falasse com sotaque carioca.
Conduziram-me ao banco de trás de um carro. Dois militares no banco da frente e um no banco de trás que dividiu a algema comigo. Se corresse, teria que arrastá-lo. O aviso: Não tente fugir. Não estamos aqui para brincadeira.
Na saída da Oban, um dos torturadores paulistanos, satisfeito, chegou até a janela do carro para dar o seu recado:
– Eu sei que você mentiu. Todos os seus companheiros foram presos e confirmaram que aqueles seus encontros não existiam. No Rio eles sabem tratar pessoas como você. Lá eles são sérios. Esses caras daqui são uns bananas. Se fosse eu, você ia ver o que é bom.
Um frio na espinha: o crocodilo se aproximava. Aquele torturador ficara com ódio por ter sido passado para trás. Por algum motivo, os comandantes da Oban haviam impedido que ele me batesse. Talvez tivessem me preservado por conta de uma política repressiva mais branda diante de estudantes ou pessoas com envolvimento light; talvez por julgar que eu não teria mais nada a acrescentar de útil após a prisão dos meus companheiros; talvez em respeito a uma família influente. Qualquer que fosse a razão, o torturador exultava na janela do carro ao ver-me transferido para um “lugar de gente séria”.
Naquele mesmo dia, depois do expediente, o guardinha foi inesperadamente à loja de meu pai. Contou-lhe, aflito, minha transferência para o Rio. Avisou que era péssimo sinal. Doutor, é coisa ruim… de lá muita gente não volta.
-Persio, é um mundo do qual eu não suspeitava. Você pode mandar matar qualquer um. Os pistoleiros todos se conhecem, um dá o currículo do outro, têm um ponto lá no Parque Dom Pedro. Andei perguntado aqui e ali e acabei descobrindo o jeito de chegar até eles. Apagar militar, ainda mais sendo oficial, custa muito mais caro, e não é qualquer um que se atreve. Mas com um bom preço tudo se resolve. Nordestinos, cabras arretados como a peste.
Foi somente anos depois de minha prisão que meu pai me contou o plano que poria em prática se tivessem me matado no Rio. Quando aquele pássaro de mau agouro contou-lhe minha remoção de São Paulo, ele anteviu seu filho na lista dos desaparecidos, jogado no mar com pedras nos pés ou assassinado e enterrado como indigente. Geny, uma amiga de minha mãe dos seus tempos de juventude, rezava por mim todos os dias. O marido dela, que tinha conexões no establishment militar, havia sido informado que a remoção para o Rio era o prólogo para meu desaparecimento. Minha mãe rezava também, e muito.
Mas meu pai não tinha deus algum, nunca acreditou que as estrelas dos horóscopos desceriam à terra para iluminar seu caminho. Homem de ação, sem notícias, só conseguira conviver com a ansiedade urdindo um plano de vingança. Dedicou-se de corpo e alma a conhecer os meandros do submundo dos pistoleiros profissionais, negociando preços e escolhendo a dedo quem iria executar a tarefa. Comparava currículos, tirava referências, entrevistava. Chegamos a ficar amigos, disse-me orgulhosamente ao referir-se ao pistoleiro eleito.
Meu pai não tinha o perfil do vingador frio, do jogador de pôquer, calculista. Era passional ao extremo, seu sangue fervia, ficava vermelho de ódio quando afrontado. Declamava poesias depois do jantar, dando vazão à veia artística frustrada. A sessão sempre começava com Augusto dos Anjos e terminava no “Cântico do Calvário”, de Fagundes Varela. Enterrar um filho, dizia, é o que de pior pode acontecer a um pai. Ouça, meu filho:
Eras na vida a pomba predileta
que sobre um mar de angústias conduzia
o ramo da esperança.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! Ah! no entanto,
Pomba, – varou-te a flecha do destino!
Astro, – engoliu-te o temporal do norte!
Teto, – caíste! – Crença, já não vives!
O poema é longo, mas a leitura terminava inapelavelmente neste oitavo verso. Voz embargada e olhos cheios de lágrimas, meu pai me mandava dormir. Amanhã tem escola, filho.
Até hoje me pergunto se ele mandaria mesmo matar alguém. Quando muito atirou num gato que rondava o muro da casa e depois morreu de arrependimento. É que o gato, Persio, tinha um miado ardido, igual à voz do fulano, um namorado da minha irmã ao qual ele tinha horror.
– Mas pai, como é que você contratou um pistoleiro sem nem saber quem deveria matar? E se matasse o sujeito errado?
– Bem, meu filho, é claro que procuraria saber o nome do filho da puta no Rio. Mas se não achasse, mandava matar qualquer um da Oban aqui em São Paulo mesmo. Quem está lá tem culpa no cartório. Vai um pelo outro. Eu posso não saber, mas garanto que o puto saberia por que estava sendo assassinado. Ou você acha que iam te matar lá no Rio e ia ficar por isso mesmo? À puta que pariu esses militares todos. E o mundo que se foda. Se tiraram a vida do meu filho, o que mais me importa? E, vou te dizer, também, quem iria pensar que fui eu? Podiam achar que foi um ato terrorista. Chato mesmo é se a viúva achasse que foi passional…
Viajamos de dia para o Rio. Tentei várias vezes puxar assunto; as respostas eram monossilábicas. Paramos para almoçar em São José dos Campos, em alguma instalação da Aeronáutica. Fomos ao refeitório, sentamos em uma mesa comum. Durante todo o almoço uma de minhas mãos ficou algemada a um dos acompanhantes para evitar fugas. A cena foi vista por várias outras pessoas e os militares conversaram animadamente com alguns colegas que se aproximavam da mesa. Não havia preocupação alguma em me esconder de terceiros. Tampouco pressa. O almoço foi longo, repetiram o cafezinho. Estavam em casa.
Tudo mudou na chegada ao Rio. Já na avenida Brasil fui encapuzado e jogado no chão do carro para não ser visto. Era começo de noite; o carro dava voltas e voltas para que não soubesse aonde me levavam. Chegava a dar enjoo. Quando chegamos, fui forçado a sair do carro e caminhar uma boa distância a pé. Talvez por alguma técnica de despiste, forçavam-me a andar rápido, quase correndo, sempre com o maldito capuz. Percorri algo que me pareceu um corredor; uma ou outra porta tinha que ser aberta para que eu passasse.
Quando minha cabeça foi descoberta, estava em uma sala ampla, com várias pessoas. Não era o único a ser torturado. Minha memória falha, sábia memória. Já falhava no dia seguinte à tortura. Sobraram apenas imagens. O primeiro murro no estômago. O torturador se vingava; havia ódio nas suas palavras e olhos. O corpo nu arrastado. Em vez da maquininha com manivela, choques diretos da tomada. O primeiro desmaio e depois o segundo, sempre após as descargas. A cadeira no canto onde me instalavam quando desmaiava. O suor frio. A visão de mim mesmo caído naquela cadeira, como se meus olhos pudessem se destacar de meu corpo e me enxergar de longe e do alto. O médico dizendo: nada grave, é só aguardar um pouco até que ele retorne. A voz irônica do torturador: e então, pronto para outra?
Em momento algum daquela longa sessão enfrentei o torturador. Supliquei que parasse, vã tentativa de comovê-lo, mas não o desafiei. Qualquer comentário crítico, indignação ou raiva, iria apenas aumentar seu ódio. Fiquei fiel ao meu figurino inofensivo. Porque sabia que, na hora solitária da tortura, o torturador torna-se senhor do seu destino. Pouco importa no momento seu superior hierárquico ou todo o sistema que o ampara – as Forças Armadas, o presidente da República, os políticos da situação e as elites apavoradas com a ameaça comunista. Na hora da tortura, impera o seu próprio sadismo, desgovernado e bestial. Tudo o que o torturador lhe fizer poderá, quando muito, recair na categoria dos “acidentes de percurso”.
De quando em quando, a sessão de torturas era interrompida por um rápido interrogatório. Queriam saber de pessoas das quais eu nunca ouvira falar. Com quem você se encontrou no Cemitério da Consolação? Você conhece a ruiva? E a loira do cemitério? Tomavam-me por outro, perseguiam alguma pista que me era obscura sobre alguma mulher que desconhecia. Diante das negativas, vinha sempre a mesma pergunta: e você não tem mais nada de interessante para nos contar? Conte algo para que a gente pare. Perguntavam quase que por perguntar, mas batiam por gosto.
A armadilha era fatal. Até teria o que dizer: o nome de um simpatizante que só eu conhecia, e de outro que, por algum mistério, não constava do prontuário que lera em São Paulo. Poderia também ter acrescentado uma viagem ao Chile antes da eleição de Salvador Allende; um encontro previsto para dali a um mês com um professor cassado pelo AI-5; o fato de ter escondido o nissei por uma noite; e mais alguns detalhes. Mas se dissesse qualquer coisa de novo, o sofrimento seria maior. Seria torturado até terem certeza de que falei absolutamente tudo; e para terem certeza de que falei absolutamente tudo, teriam que continuar me torturando mesmo depois de ter falado absolutamente tudo. Só teriam certeza quando os últimos redutos de minha consciência estivessem subjugados pelo horror de uma violência irrazoável, quando o Persio que habitava desde criança meus pensamentos secretos tivesse sido triturado pelo crocodilo.
Pois há uma diferença essencial entre a chantagem e a tortura. O chantageado faz um cálculo com custos e benefícios. Erra no cálculo porque, ao ceder, apenas acrescenta ao medo do vexame público a angústia de ficar prisioneiro de um chantagista que, senhor da situação, vai extorqui-lo ao limite, até o ponto em que sua vida fique tão infernal que ele prefira o vexame público a continuar chantageado. Daí que o cálculo do chantageado seja sempre errado – é sempre melhor enfrentar as consequências de seus erros do que submeter-se à chantagem.
Já o torturado não faz cálculo algum. Cede porque não aguenta mais. Dá voz ao seu corpo para que a tortura cesse. E percebe, horrorizado, que sua tortura redobra a intensidade depois que ele “quebrou”, como se diz na linguagem policial. A confissão é o sinal para o começo do segundo round, no qual o torturador quer esgotar as reservas mentais do torturado, fazê-lo confessar absolutamente tudo e arrepender-se do que fez.
Não caí na armadilha. Aguentei firme no meu figurino humilde, pedindo clemência e implorando que parassem. Mendiguei piedade. Apelei a Deus. Mas não falei nada de novo.
Acordei da sessão deitado no chão, barriga para cima. Devo ter sido levado inconsciente até a cela. O corpo doía por inteiro, em especial o peito e a barriga.
A escuridão, como se estivesse cego. Fiquei imóvel, olhos abertos, escancarados, perscrutando inutilmente a noite que invadira o dia. Como se naquele breu que se estendia eu próprio jamais pudesse voltar a me encontrar.
No livro III da Eneida, Eneias encontra um grego perdido no país dos monstros ciclopes. Abandonado por Ulisses e seus companheiros, o grego, desesperado, implora aos troianos que o acolham e o levem embora. Narra com horror a forma pela qual o monstro de um só olho mata os humanos e tritura seus ossos na sua caverna. O grego perdido confessa sua participação na guerra, mesmo sabendo que os troianos poderiam matá-lo por conta disto. Se eu tiver que morrer, diz ele, tudo o que peço é que minha morte venha por mãos humanas.
Aquele grego não conhecia os torturadores do século XX.
Tateei aos poucos até encontrar o limite da parede e a porta. Era horrível a sensação de estar no escuro, indefeso, incapaz de perceber o avanço de um bicho, ou mesmo de um inseto, de alguém que queira lhe torturar novamente. Movia os dedos lentamente, temeroso de uma picada ou uma faca que os decepasse de um só golpe. A escuridão dilata os espaços, a cela me parecia muito maior do que de fato era.
A angústia inicial logo desapareceu. Fui me acalmando de uma maneira inexplicável. Nem mesmo a lembrança da tortura conseguia me abalar. O corpo doía muito, tinha a sensação de estar todo quebrado por dentro, e apesar de tudo me descobria estranhamente sereno. Sabia que estava preso por um tempo indefinido, poderia ser torturado novamente a qualquer minuto, poderiam me matar com o mesmo descaso com que se mata uma formiga ou um pernilongo, mas mesmo assim estava calmo. Pensava coisas horríveis, matéria-prima abundante para toda sorte de nervosismo ou angústia, mas nada perturbava a tranquilidade que sentia por dentro. Demorei algum tempo para entender aquela paz açucarada que ia do corpo dolorido ao espírito – a mesma paz que sentem os loucos depois das sessões de choques elétricos.
Não sei quanto tempo fiquei na escuridão. Através de uma janelinha jogaram um pedaço de pão. Pensei que talvez fosse de manhã cedo, marcaria as horas e os dias pelos intervalos do pão. Quis alegrar-me, pensar em algo bom. Cantarolei algo. O tema surgiu sozinho: Quando eu morrer, não quero choro nem vela…
Era uma marchinha de Carnaval que, quando criança, inspirava minha fantasia predileta. Sob seus acordes de marcha fúnebre, imaginava meu próprio enterro – uma orquestra completa, composta de pai e mãe, familiares, amigos e conhecidos, chorando minha morte e falando coisas boas a meu respeito. Todos sofriam profundamente e o sofrimento que minha ausência lhes causava me redimia de qualquer aborrecimento. Demorei anos para perceber: era uma marchinha de amor.
Quando a porta da solitária se abriu, fiquei cego por tanta luz. Jogaram-me novamente um capuz sobre a cabeça e me conduziram a uma nova cela. A julgar pelos gritos, o caminho passava ao lado da sala de tortura. Uma corneta solitária desperdiçava notas, um toque de alerta ou algo assim. Estava em um quartel.
Minha nova moradia era muito maior do que a anterior. Uma janela basculante bem no alto da parede permitia que visse uma nesga de céu. Meu corpo ainda cheio de marcas roxas, efeito dos murros que havia levado. As paredes estavam unhadas por frases de desespero de outros ocupantes. Gastei minhas unhas também escrevendo algo ali do qual não mais me recordo.
Uma a duas vezes ao dia alguém passava um prato de comida através de um pequeno visor. Na refeição seguinte entregava o prato usado e pegava um novo. De quando em quando o visor era aberto fora da hora das refeições. Um soldado fardado olhava a cela e o fechava sem nada dizer. Isto ocorria aleatoriamente, mais à noite do que durante o dia.
A luz daquela cela, tal qual na delegacia que abrigava a Oban em São Paulo, não se apagava nunca. Um fio que caía do teto, soquete e lâmpada de 60 watts, luz de dia e de noite.
Havia algo da essência da própria tortura naquela luz permanentemente acesa. Você não pode se esconder em momento algum do olhar do guarda que passa pela sua cela. Ele abre o visor quando quer e te vê dormindo, defecando, comendo, sonhando. Ele te vê triste, desesperado ou conformado. Aquela luz permanentemente acesa tenta invadir o sujeito, devassar seu espaço interno feito o torturador quer fazer com o corpo do torturado.
Um toc-toc na parede revelava outro prisioneiro na cela ao lado. Nunca o vi. Ao contrário da Oban, no Rio não se saía da cela para nada. Por mais que me aplicasse, não consegui decodificar aqueles toc-tocs que se sucediam com ritmo e sequência de uma linguagem. Respondia ao acaso, batendo na parede de qualquer jeito apenas para criar uma solidariedade sonora com o prisioneiro sem nome nem face da cela vizinha.
Um dia jogaram em minha cela um homem bem mais velho. Estava muito assustado. Sussurrava. Talvez tenham posto aparelhos de escuta embutidos nas paredes da cela, explicou, apontando para um ou outro canto da argamassa mal terminada. Tinha que ficar grudado nele para ouvir suas palavras, e parecia que quanto mais perto chegava mais baixinho ele falava. Segredou-me: há neste quartel uma “geladeira” na qual os corpos são imersos em água gelada e afogados. Celas com ratazanas e cobras que te atacam se você não falar.
Não poderia ser verdade. Por que iriam os torturadores a esse extremo de crueldade quando dispunham de cassetetes e paus de arara? O meu companheiro certamente deveria ter algum desequilíbrio psicológico. Seus olhos saltavam quando contava seus segredos sobre o quartel, sinal evidente de uma mente perturbada. Veio-me à mente, para corroborar minha suspeita, o título sugestivo de um artigo de Freud que, aliás, nunca havia lido e do qual ouvira apenas vagamente falar: O Homem dos Ratos. Pois decretei que aquele meu companheiro de cela era outro homem dos ratos, outro exemplar da mesma neurose.
Tratei de entender quem ele era. Fiz perguntas detalhadas, chequei possíveis contradições, olhei-o nos olhos para captar os desvios da personalidade doentia. Para minha surpresa, apresentou-se com nome, sobrenome, profissão e endereço. Um professor de história do Brasil com vários livros publicados dos quais eu, então aluno do primeiro ano da Faculdade de História da USP, nunca ouvira falar. Orgulhoso de sua reputação acadêmica, o professor ficou evidentemente aborrecido com minha ignorância. Injustificável, dizia, balançando a cabeça, mesmo para um aluno de primeiro ano.
Aos poucos o professor foi ficando à vontade. Contou de seus livros, de episódios da história brasileira. Era um homem ilustre e famoso. A lucidez impressionava. Volta e meia derivava a conversa sobre as mazelas da educação brasileira, o efeito danoso do novo currículo escolar e o despreparo de boa parte dos nossos educadores. Quanto mais o professor falava, pior eu me sentia. Não era pessoa dada a invencionices ou mentiras. Eu precisava imaginar que ele alucinava, que estava fora de si ao falar sobre os tanques de água gelada ou bichos horripilantes. Fechei-me em copas e decretei que o professor era um agente provocador, um quinta-coluna infiltrado nas hostes revolucionárias, uma sofisticada isca dos torturadores para arrancar de mim alguma inconfidência. Eu tinha medo da minha própria sombra, quanto mais da sombra alheia.
Poucos dias depois o professor foi chamado. Saiu alegre, saltitante, convencido de sua imediata libertação. Despediu-se com cortesia, desejando-me boa sorte. Só um espião, pensei, teria tanta certeza assim que seria libertado quando alguém o retirasse da cela. Retornei aliviado ao estado de solidão, preso ainda, mas ao menos livre daqueles sussurros e dos olhos arregalados.
(Anos mais tarde, fiquei encabulado de ter pensado mal dele. Fui perpassado por um arrepio na espinha ao ler depoimentos de outros presos políticos confirmando o que me dissera sobre a “geladeira” e o uso de animais e insetos como instrumento de tortura naquele quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita.)
À parte a breve companhia do professor e os infindáveis toc-tocs do prisioneiro ao lado, os dias se arrastavam sem que nada acontecesse, pontuados apenas pelos toques de corneta de manhã e de tarde. Contava os dias com os dedos da mão para manter vivo o senso do tempo. Ninguém me dirigia uma palavra sequer. Não havia perspectiva de sair. A nova vingança, pensei, é deixar-me apodrecer aqui.
A asma foi crescendo. A asma de meu pai, a lembrança das injeções na veia que ele aplicava em si mesmo, a mesma asma que me acompanhara por toda a infância, que me obrigava a ser goleiro nas peladas do colégio por incapacidade de correr o campo, que me fez ouvir a palavra Proust pela primeira vez – meu filho, não se desespere, tanta gente importante é asmática. Proust jamais teria escrito nada se não fosse a asma, há males que vem para o bem, e eu pensava comigo que Proust era um médico francês especializado em asma que poderia livrar-me daquele sufoco. Era a mesma asma que ressurgia naquela cela mal ventilada, aquele chiado que quando começa jamais desaparece sozinho e segue crescendo até fazer de você um peixe respirando de boca aberta, fora da água e com olheiras profundas. Imóvel para não gastar desnecessariamente um átomo sequer da pouca energia que lhe resta.
Precisava de remédio. Urgente. Tentei falar com os soldados que me traziam a comida e levavam pratos por aquela janela basculante que ficava na parte de cima da porta. Mas eles não queriam me ouvir, se pelavam de medo de serem vistos conversando com um terrorista. Após inúmeras tentativas, um deles recomendou-me que ficasse quieto. Os homens (referia-se aos torturadores) vão te pegar de novo se você insistir em ver um médico.
Resignei-me. A asma minou minhas energias. Cada vez mais fraco, passava os dias sentado no chão. Só me deitava quando não aguentava mais manter a coluna ereta; mas tinha que me levantar logo em seguida por conta dos ataques de tosse. O sono tornou-se precário; o apetite desapareceu. Se ainda fosse criança, meu pai me poria de cavalinho, abriria a porta da frente da casa e ficaria dando voltas no quarteirão, ao ar livre, para que o ar entrasse mais profundamente nos pulmões e eu me acalmasse e pudesse dormir. Aquelas cavalgadas noturnas não faziam nenhum sentido como terapia médica, mas eram de uma eficácia extraordinária.
Depois de três semanas, fizeram-me sair da cela. Abatido pela asma prolongada, tive dificuldade de andar até o portão do quartel. Parei no meio do caminho; quase fui ao chão ao abrir uma porta. Na saída, surpresa das surpresas, meu pai e minha mãe. A alegria não durou muito: explicaram-me que ainda estava preso. Informados de que eu não voltara antes para São Paulo por falta de condução, haviam conseguido vir me buscar para acelerar minha libertação. Tratava-se apenas de levar-me da prisão do Rio de volta para a prisão de São Paulo. Minha mãe, pela primeira e única vez na vida, estava magra – havia perdido mais de 10 quilos.
Estavam acompanhados por dois militares à paisana. Fui algemado e pouco pude conversar. Meu pai pediu autorização para ir a um hotel no centro do Rio para que eu pudesse tomar um banho, que duraria uma hora, no máximo, e não atrasaria muito a viagem de volta para São Paulo. Tirou a ideia do nada e usou sua lábia para convencer os dois militares que não se tratava de uma armadilha para que eu pudesse escapar. Meus pais haviam trazido uma muda de roupas, seria só um banho e roupas novas, após tanto tempo de prisão. Um alívio para que o menino doente pudesse sentir-se melhor, um ato de humanidade e comiseração. Após alguma hesitação e muitas ameaças, os militares concordaram.
Entramos todos no quarto do hotel. Os guardas acompanhavam tudo atentamente. Trancaram o quarto por dentro e ficaram com a chave. Armas apontadas, preparados para o inesperado, acompanhariam de perto cada detalhe do meu banho. Não permitiram que eu tirasse a roupa sozinho no banheiro; receavam que eu fugisse ou fizesse alguma bobagem com a lâmina de barbear.
Minha fraqueza era tanta que fiquei com receio de cair se tivesse que ficar de pé no chuveiro. A solução foi um banho de banheira. Ficamos imersos em um silêncio sepulcral, entrecortado apenas pelo barulho da água enchendo a banheira. Qualquer intimidade familiar estaria comprometida pelos olhares hostis, tão invasivos quanto a luz da cela de prisão. Se ao menos fosse um banho a vapor, se a água fosse turva, se permitissem que eu fechasse a cortina de plástico, se houvesse espuma de banho. Mas não, aquele revólver e aqueles olhares não me largavam: vigiado como se pudesse escapar pelo ralo, devassado quando queria estar só e a portas fechadas.
A água é miraculosa. Os guardas se aperceberam do ridículo da circunstância e resolveram esperar do lado de fora. Aquele banho era um Ganges, me purificava. Acabei relaxando, esquecido de tudo. Fiquei ali quieto, sentindo a água na pele. Todo preso se sente bem ao tomar banho, qualquer banho, da Sibéria da casa dos mortos de Dostoiévski aos trópicos do Rio de Janeiro.
Só alguém que já passou por crises asmáticas prolongadas sabe o que é não ter forças para passar a toalha nas costas, secar o cabelo ou erguer a perna para enxugar o pé. O sujeito consegue ficar debaixo da água, mas depois não tem energia para se enxugar. Quando pequeno, tinha inveja dos cachorros. Não sabia se eles sofriam ou não de asma, mas era admirável vê-los estremecer por inteiro num frenesi de vitalidade, esparramar a água à volta e seguir lépidos e enxutos sem precisar de toalha alguma.
Meu pai, asmático também de nascença, entendia o drama do enxugamento. Sem dizer nada, pôs-se a me enxugar tão logo saí da banheira. Depois, ajudou-me a enfiar a calça e abotoar a camisa. Enfiou meias nos meus pés e amarrou os sapatos. Fez tudo sem dizer uma palavra, sua personalidade espirituosa e exuberante se recolhera. Minha mãe virou o rosto para que eu não visse seu choro. Eu me sentia uma criança defeituosa ou malformada, torso esquelético e torto, incapaz de se cuidar. O ritual entre o fim do banho e a saída do quarto durou uma eternidade. Só voltei o olhar para o rosto do meu pai quando já estava enxuto e de roupa nova.
Antes de retomar a viagem, paramos numa farmácia para comprar uma bombinha, um inalador para tratamento de asma. Seguimos viagem noite adentro, meu pai ao volante, minha mãe ao lado, e eu, no banco de trás, no meio dos guardas. A viagem transcorreu praticamente toda em silêncio. Janelas abertas, o ar entrando com o carro em movimento, lembraram-me as voltas de cavalinho no quarteirão. Mas agora nem a bombinha nem a velha mágica da infância faziam efeito. Ao chegar a São Paulo, primeiras horas de uma manhã fria e cheia de névoa, fui internado num pronto-socorro para fazer inalações de oxigênio.
O médico falava bem a língua pátria. O rapaz, comentou após o exame, está muito dessorado.
-Persio, é claro que, falando com Deus e o mundo, acabamos encontrando pessoas próximas que tinham conhecidos dentro da Oban. Isto facilitou um bocado, caso contrário não me teriam deixado ir te buscar no Rio. Mas também invoquei minha patente do Exército. Oficial da reserva. A patente é mixuruca, mas ao menos serviu para que me apresentasse de igual para igual, quer dizer, batendo continência aos superiores. E disse a eles que lamentava ter deixado a carreira militar. Tudo mentira. Você sabe que só entrei no Exército porque era durante a guerra e eu tinha esperança de ir lutar na Itália e conhecer o Vêneto, terra da vovó. E pedi demissão quando levei uma advertência por conta de uma arruaça em um cinema. Umas garotas, perdi a cabeça. Foi-se ali minha chance de ser convocado pela FEB, pedi baixa no dia seguinte. Também saí da veterinária. Eu entrei na faculdade, filho, não por vocação, mas por interesse calculado. Queria escapar da infantaria. Filho, você não sabe o que é marchar com asma. Já na cavalaria quem faz força é o bicho. Aí cheguei para o comandante da Oban, me identifiquei e pedi para buscar você no Rio. Dei minha palavra de oficial da cavalaria. Não sei o quanto ajudou, mas não atrapalhou. Se soubessem que eu tinha contratado um pistoleiro…
A asma desapareceu depois da internação. Cheguei a receber frutas enviadas pela minha família. Depois de um tempo na Oban fui transferido para o Dops, sinal auspicioso de desinteresse dos torturadores pela minha pessoa.
Lá reencontrei todos os meus companheiros. Alguns presos antes de mim, outros depois. Até o sósia daquele rapaz febrilmente perseguido pelas ruas de São Paulo lá estava. Cada um contava sua história, a besteira que fez com que fosse preso. Uns tinham sido torturados, outros não, alguns resistido, outros não, o que importava é que estávamos novamente todos no mesmo barco. O périplo que começara na amizade do banco escolar e passara pela clandestinidade continuava agora em um novo capítulo, nas celas do Dops. Contei em detalhes minhas peripécias. Tinha sido o único brindado com um passeio pelo Rio de Janeiro.
Nem tudo era alegria no reencontro. Ao revê-los, fui tomado por uma estranha angústia. Não era por causa do nosso evidente fiasco – desse eu já desconfiava antes de ser preso. Nem pelo impacto das atrocidades sofridas por um ou outro amigo, embora me consternassem. Era uma angústia egoísta, um pensamento mesquinho que me dizia que meu esforço tinha sido em vão. Se era para todo mundo ser preso de qualquer forma, para que ter fingido aqueles encontros fictícios todos, sofrido a tortura no Rio, o isolamento na solitária, a crise de asma? Fizera um sacrifício besta, à toa.
O mal-estar foi passageiro. Logo consegui ver algo positivo: meu estratagema não dera resultado objetivo algum, tinha sido uma vitória de Pirro, mas me poupara o constrangimento de dedurar alguém. Era um alívio não ter tido que enfrentar o olhar de um companheiro traído ou ouvir seus gritos torturados. Ter conseguido que ninguém tivesse sido preso por minha causa me dava uma satisfação imensa, íntima e secreta, me nutria nos momentos de desespero e me fazia andar de ombros erguidos naquela cela.
Foi no Dops que assinei meu depoimento formal. Ninguém me perguntou nada e eu tampouco li o que assinava. Minha confissão já estava pronta e datilografada – era só assinar. O descaso com o ritual jurídico era tal que a cerimônia foi coletiva – éramos todos réus no mesmo processo e, para ganhar tempo, assinávamos por atacado, juntos e na mesma sala. Foi-nos dito que a libertação ocorreria em breve.
A alegria foi tanta que no meio daquela farta e irresponsável distribuição de rubricas e assinaturas, originais e cópias feitas com papel carbono, um de meus companheiros atendeu um telefone que tocava insistentemente na mesa ao lado. VAR-Palmares, às suas ordens. Ao que outro emendou – você se esqueceu de dizer que é da seção juvenil da VAR, seu burro! À parte os olhares fulminantes do delegado, nada aconteceu. Ninguém apanhou ou sofreu qualquer tipo de advertência. Era-me evidente que os militares haviam nos tomado por um bando de adolescentes inconsequentes que mereceriam uma segunda chance na vida.
A cela era coletiva e a rotina rígida: ginástica pelas manhãs, longas discussões sobre marxismo durante as tardes. Saíamos da cela para tomar sol em um pátio de quando em quando. Meu tio advogado conseguiu falar comigo brevemente, e por uma única vez, apelando para conhecidos que lá tinham alguma influência. Disse que estava tudo em ordem em casa e me deu um abraço emocionado. Meu tio médico me visitava todos os dias, tirando a pressão e auscultando coração e pulmões, mas não dizia nada. Mais tarde explicou-me que esta era a condição que lhe havia sido imposta pelo delegado-chefe, seu conhecido da Guarda Civil.
Da cela em que estava não ouvia gritos de torturas. De vez em quando alguém trazia novidades sobre outros presos. Um dia fui acordado com um imenso alarido. Todos os presos gritavam: “Assassinos, assassinos!” Chacoalhavam freneticamente as grades. Bacuri, até então confinado em uma cela solitária, estava sendo levado embora para ser executado a sangue-frio pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Achei tudo estranho – como poderiam os demais presos saber disto? Eu jamais vira Bacuri no Dops, nem mesmo nos momentos em que todos saíam de suas celas para tomar sol. De toda forma, juntei-me ao protesto coletivo.
O protesto tomou corpo e vida própria. Xingávamos os torturadores a plenos pulmões, sem medo, o berro de cada um disfarçado no meio dos outros. Seus covardes, filhos da puta. Durou até que as vozes se cansassem e a vaga satisfação do desrecalque aquietasse os corações aflitos. Não houve punição. Os carcereiros agiram como se nada tivessem escutado. Talvez estejam de bom humor, pensei; ou talvez seja mesmo verdade que o delegado Fleury vai matar o Bacuri e se sintam meio culpados por tabela.
Eduardo Leite, Bacuri, foi encontrado morto dias depois em algum lugar do litoral paulista. Tiros na cabeça, seu corpo mostrava requintes da barbárie. Aqueles olhos azuis não estavam mais lá.
Um dia encontrei, largada num canto e amarelada pelo passar do tempo, uma Veja com Massafumi Yoshinaga na capa e o título “O terror renegado”. A reportagem contava que o presidente Emílio Garrastazu Médici expressara, em audiência com dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil, sua satisfação com o depoimento público e espontâneo do ex-terrorista. Depois de preso, Massufumi Yoshinaga teria tido a oportunidade de familiarizar-se com as grandes obras de seu governo, como a Transamazônica e a extensão do mar territorial brasileiro para 200 milhas. Como recompensa pelo seu arrependimento, teve sua prisão condicional revogada, ganhando assim a liberdade. No momento, estava retido em um quartel por razões de segurança. As Forças Armadas o protegeriam contra a vingança dos terroristas ainda em liberdade.
Li depois num jornal que terminou se suicidando. Suicídio de vergonha, de culpa e arrependimento, haraquiri de uma alma que não encontrava mais lugar neste mundo. Terrível como todo suicídio. Mas quem chora a morte de um traidor? Da minha parte, prefiro guardar dele apenas a memória daquele encontro furtivo de olhos no qual, mesmo tendo me reconhecido, nada revelou ao militar que com tanto orgulho o apresentou como um verdadeiro patriota.
Indro Montanelli, figura legendária do jornalismo italiano, concedeu de certa feita uma entrevista, narrando seu reencontro com os terroristas das Brigadas Vermelhas que o metralharam nas pernas, em 1977, por conta de seu liberalismo. É uma história impressionante pela lucidez e estoicismo – ele, ateu, condenado à morte por Mussolini, visita-os na prisão e os perdoa. Quando a guerra acaba, diz, entre antigos adversários há um aperto de mãos. Na lógica dos terroristas de esquerda seu gesto foi, se é que posso dizer assim, normal. E eles jamais se arrependeram. Isso é bonito. Odeio os arrependidos, dizia ele, como há tantos na Itália. Pode-se arrepender privadamente, na reflexão consigo mesmo, ele prosseguia, mas não se deve jamais usar o arrependimento para abreviar o tempo ou os rigores da prisão.
A libertação foi coletiva. Saímos todos ao mesmo tempo. Lá fora, famílias inteiras nos aguardavam. A calçada era estreita para tantos abraços comovidos.
Meus pais estavam lá. Eu estava vivo e inteiro, e era somente isso que importava. No caminho para casa, pedi que meu pai parasse o carro quando vi, do outro lado da rua, um pipoqueiro. Foi um impulso. Fiz questão de comprar eu mesmo a pipoca; meu pai me aguardou ao volante. Atravessei a rua e demorei-me um pouco na frente do pipoqueiro antes de pedir um saquinho. Ele tinha poucos dentes, o carrinho era seu único bem. Não tenho pressa, espero pela pipoca quentinha.
Um longo tempo. A panela no fogo, o estouro gradual, o crescendo sinfônico das pipocas. O trajeto da panela ao vasilhame de vidro, do vasilhame ao saquinho. O sal branco que caía e escorria invisível entre as pipocas, de cima para baixo, tropeçando nas suas reentrâncias tortuosas, até depositar-se em silêncio no fundo do saquinho.
A vida fazia sentido nas coisas simples: separar a pipoca boa do grão encruado, sentir o sabor de cada pipoca, uma a uma, sentir o sal e o milho, amassar o saquinho vazio, cruzar a rua e voltar sem pressa para o carro. A pipoca era o meu bolinho de bacalhau com cerveja. O mundo do futuro. Eu morava naquela pipoca, e me encontrava além da revolução, dos sacrifícios, da nobreza de ideais, da democracia e da liberdade.
Mesmo levando em conta o tempo da pipoca, não demorei mais do que uns vinte minutos para chegar em casa. Algo havia de errado, no relógio ou na geografia. Minha casa não poderia ser tão perto assim dos centros de tortura.
Fiquei tonto, o mundo rodou por um instante, quase uma labirintite. Porque se você chega em casa em vinte minutos, os torturadores podem levar você de volta nos mesmos míseros vinte minutos. As prisões deveriam ser em locais longínquos, num canto perdido na Sibéria, e não ali, no meio da cidade. Na geografia brasileira a tortura morava ao lado, era uma vizinha atenta.
Acontece aqui no Brasil uma coisa misteriosíssima e linda que Nelson Rodrigues bem observou. Se o sujeito morre na rua, atropelado, ou por outro motivo qualquer, logo surge uma alma caridosa a lhe acender a vela. A chama trêmula, que nenhum vento apaga, torna a morte mais amiga, mais compadecida e mais feérica. Pois uma vela me aguardava ao lado da porta de entrada da minha casa. Foi a primeira coisa que vi ao chegar – uma vela ostensiva ao sol.
Ao entrar na casa encontrei tudo em ordem irrepreensível, preparado para minha chegada. Os cinzeiros no centro geométrico das mesas, as cadeiras equidistantes, toalhas de rosto nos banheiros. No meu quarto, a roupa de cama estava engomada, os livros arrumados e livres de qualquer grão de pó. A minha caneta Parker estava a postos na escrivaninha, ladeada pelos seus inseparáveis escudeiros, o tinteiro e o mata-borrão. Era como se minha família quisesse apagar o tempo e, aproveitando-se da inércia dos objetos, retomar a história a partir daquele último dia em que estivera em casa.
O choque foi no banheiro. Um banheiro com porta fechada, individual, pastilhas de vidro lilás, vaso sanitário, pia com toalha de rosto – um luxo. Mas não era o conforto que chocava. Era o espelho. Não me recordo do espelho nas prisões. Foi como se me reencontrasse de verdade apenas ali – só, portas trancadas, na frente do espelho. Fiquei um bom tempo me olhando.
Só havia passado tanto tempo me olhando quando estudava violoncelo, no conservatório. O espelho servia para memorizar visualmente a posição dos dedos da mão esquerda. Desde pequeno senti que o rosto não era meu, era uma máscara grudada por algum ser malévolo na minha face quando nasci. Não que desejasse um rosto apolíneo. Era antes uma sensação de desproporção, meu rosto desafinava mais de mim mesmo do que o violoncelo da música que deveria tocar, projetava uma imagem que não correspondia à minha essência, qualquer que ela fosse. Um rosto inexpressivo, mal-ajambrado. Eu deveria ter a cara de um daqueles intelectuais imigrantes que vinham da Europa, e não a dos comerciantes levantinos da 25 de Março. Mas não conseguia formar na minha mente uma imagem de mim mesmo diferente daquela que o espelho me fornecia. A máscara se personificara, a segunda natureza tornara-se a primeira. Meu rosto original sobrevivera como a civilização asteca depois da conquista espanhola.
Na solidão daquele banheiro, o estranhamento de uma vida inteira desapareceu. Era eu mesmo quem ali estava, refletido naquele espelho – naquelas olheiras, naqueles olhos meio marejados, nos dentes tortos, nariz adunco. A realidade se impunha ali, no espelho. Não havia mais guerra, nem carrascos – éramos apenas o espelho e eu. Era eu mesmo quem tinha vivido tudo o que acontecera naquelas prisões. A vida não morava em outro lugar – era aqui e agora.
Parentes, amigos de meus pais, vizinhos, as visitas iam chegando aos borbotões, brotavam de todos os cantos, entravam pela porta da frente e pelos fundos, enchendo a sala principal e a sala de estar. A notícia de minha libertação percorrera o círculo de relações de meus pais na velocidade com que uns contam para outros os milagres que Deus faz.
Trancado no banheiro, ouvia o burburinho das conversas. Persio, todo mundo veio te ver, vamos. Uma sensação desagradável. Venham ver um animal raro, pela primeira vez exposto à visitação pública. E eu ali, trancado no banheiro, procrastinando minha aparição, escovando os dentes de novo, como se manchados de forma irremediável, olhando meu rosto de novo, aquele rosto que reconhecia finalmente como meu.
Na entrada, um silêncio constrangedor. Uma saraivada de olhares para saber se era eu mesmo quem ali estava; um ou outro Ahlua Salua!, falados de forma tímida. Alguns homens mais velhos me beijaram carinhosamente na face e agradeceram a Deus. Você está bem, meu filho? As conversas retomaram seu ritmo discreto, ninguém contava um caso engraçado ou falava alto. Apenas café e água, não se tocava nos pedaços de bolo ou nos doces. Um velório acontecia naquela sala, eram visitas de pêsames pelo que morrera, na minha pele outro se escondia e todos nós sabíamos disto.
Falava-se de assuntos quaisquer para matar o tempo – amenidades, negócios ou política. Aonde quer que fosse não conseguia escapar daqueles olhos inquisidores, perguntando e perguntando. Olhos femininos, misto de piedade e prazer mórbido, perguntando, meu filho, me diga, você foi torturado, meu filho? Te fizeram mal lá, meu filho? É verdade, meu filho, que te fizeram coisas horríveis? Uma senhora, querendo evitar a pergunta direta e mais dolorosa, dizia, em um tom de curiosidade quase antropológico, como é que é ser preso e torturado, meu filho?
As perguntas eram facas entrando em minha carne. Vinham de pessoas amigas, solidárias, muitas me conheciam desde que nascera, mas mesmo assim havia algo de malévolo. Como é ser torturado, meu filho? É como acordar em uma manhã qualquer e se perceber uma barata, tia. Uma barata, tia, bem suja e nojenta, daquelas que sobem na perna até lá em cima. Elas entram debaixo da calcinha, tia.
Com que direito me perguntavam? Ninguém ousaria perguntar de chofre, e então, você foi enrabado naquela prisão cheia de marginais? Mas imagino que o enrabado se sinta como o torturado – diminuído por uma violência à qual ele jamais poderá retrucar. O torturado sente-se maculado em sua reputação, degredado para uma subespécie que o fará para sempre objeto de pena e comiseração. Não lhes ocorria que o assunto fosse delicado? Que tudo estivesse ainda vivo demais dentro de mim para que pudesse narrar sem reviver?
Claro que sabiam. Insistiam no assunto com o mesmo prazer mórbido e secreto com que muitas vezes pedimos notícias sobre um conhecido doente, só para usufruir melhor da nossa boa saúde. A minha vontade primeira era mentir. Dizer que nada havia acontecido, a não ser um ou outro safanão. Mentir descaradamente. Fazer da mentira e da negativa a armadura que me protegeria.
Logo desisti. Meus pais certamente já haviam falado tudo para as visitas. Era impossível que não tivessem contado em detalhes o estado em que me encontraram na saída do quartel no Rio.
Poderia não responder nada. Dizer singelamente: prefiro não falar sobre isto. As visitas respeitariam meu silêncio. Mas imaginariam que passei coisas muito piores do que aquelas que de fato passei. O trauma foi tanto, coitado, que ele não suporta nem falar do assunto. No silêncio, as fantasias correriam soltas.
Ou então poderia dizer que estava cansado e me trancaria no quarto. As visitas compreenderiam. Mas voltariam no dia seguinte. E em tantos dias quantos fossem necessários para me ver. E se ficasse muito tempo no quarto, diriam, coitado, além de torturado, ficou abalado. Sussurrariam: o menino está em depressão. Seria pior ainda.
Resolvi fingir sobre os sentimentos sem mentir sobre os fatos. Contei a todos exatamente o que me havia acontecido – só que com espírito leve, quase como quem conta suas peripécias de férias. É, levei uma surra. Foi isso. Coisas da vida. Poderia ter levado a mesma surra em uma briga no quarteirão. A internação no pronto-socorro para curar da asma? Bem, é algo ao qual estou acostumado desde criança. Não foi a primeira internação e lamentavelmente talvez não seja a última. Meses de prisão? Bem, é sempre uma experiência a mais que a gente ganha. Ano escolar perdido? Entrei na universidade antes da hora, não vai retardar minha carreira.
As respostas eram dadas mecanicamente, sem entrar em detalhes, com certo menosprezo pelos fatos. Queria deixar claro que nada havia me abalado, que tinha sido um acidente, uma batida de automóvel com danos apenas materiais. Estava inteiro e em ótima forma (magreza à parte). Sorria, conversava animadamente com todos, perguntava pela escola dos filhos e pela saúde dos mais velhos. Várias visitas expressaram seu contentamento em saber que eu havia superado com tanta tranquilidade o episódio. O Persinho é realmente fora de série, disseram.
Meu teatro prosseguiu triunfante até a chegada de Maria Aracy, uma amiga da vizinhança, um ou dois anos mais velha do que eu. Nos conhecíamos desde criança, nadávamos juntos no Paulistano. Ela primava pela doçura e sua presença naquela sala destoava da velharada falante.
Maria Aracy ficou em um canto, sozinha e observando. Quando houve oportunidade, chamou-me de lado, sem alarde, e segredou-me baixinho: “Estou muito orgulhosa de você, Persio. Você fez muito pelo país. Estas pessoas – e olhava para todos os outros, com um ar risonho de cumplicidade comigo – são bobas. Não ligue para elas, não.”
Perdi a fala. Na fineza de seu amor, ela, que mais tarde dedicaria sua vida, prematuramente encerrada, aos índios xavantes, tocara, apenas pelo olhar e em poucas palavras, o núcleo da vergonha e constrangimento que havia se instalado dentro de mim.
A vergonha é um mistério. Quando criança, via pessoas humildes ficarem de pé na sala de visitas da casa dos meus pais, intimidadas com os tapetes persas, os Gallés e óleos. Não ousavam sentar-se, como se suas calças e saias pudessem macular o tecido dos sofás. Tinham vergonha de serem pobres. Pensava que elas sentiam vergonha naquela sala da mesma forma que eu me envergonharia de fazer xixi na calça.
Pois eu, aos 18 anos, longe de ser criança, tinha novamente vergonha. Não era vergonha por ter sido de esquerda, nem por ter sido preso, nem por ter tido meu nome no jornal tachado de terrorista. Não era vergonha por ter feito algo de errado ou por ter conseguido sair da prisão quando tantos lá permaneciam. Era um constrangimento por ter passado por uma experiência vexaminosa, como se, de alguma forma, fosse minha a culpa por tudo o que me aconteceu. Não falava do assunto. Quando alguém que sabia do meu passado de esquerda perguntava, eu tratava de desconversar.
Demorei muito para entender esse sentimento. Havia a lembrança desagradável da tortura – da dor em si, certamente, mas sobretudo do meu papel ali, implorando clemência ao torturador, mendigando um aparelho de asma, engolindo em seco meus ideais. Eu não era nada perto da puta na garçonnière.
Havia também uma revolta surda que não se cristalizava em rosto algum. Os rostos da repressão mudavam o tempo todo – quem me prendeu não foi quem me interrogou; quem saía comigo para os encontros fictícios não era quem me interrogava; quem me transportou ao Rio não me torturou; dos rostos dos torturadores minha santa memória apagou boa parte das imagens; e no Dops novas faces surgiam o tempo todo, faces burocráticas, investigadores de plantão, escrivães, guardadores de celas. Eu não poderia vingar-me de um sistema, toda vingança é pessoal e aquele era um jogo que eu tinha perdido.
Mas aquele sentimento ia além da memória da humilhação em momentos difíceis e da impossibilidade de zerar o marcador em alguma contabilidade oculta da psique. No fundo, sentia-me constrangido por não ter sido capaz de cuidar bem de mim. Envergonhado feito o barrigudo que ostenta na sua pança um testemunho público da sua incapacidade de cuidar da sua saúde. Mas com um agravante: o barrigudo se envergonha do resultado da gula, mas come com prazer. Minha vergonha era mais próxima àquela do estuprado, a vergonha por não ter sido capaz de se proteger da maldade do mundo.
Quando disse a meu pai que ele estava com leucemia, tinha sobrevida prevista de um a cinco anos, seu rosto ficou corado instantaneamente, como se tivesse sido pego em flagrante ao fazer algo errado. Ficou em silêncio por alguns minutos, ruborizado. Tinha 59 anos. Não me perguntou por que nem duvidou do diagnóstico. Disse apenas, Persio, só vou lhe pedir uma coisa. Jure por tudo o que há de mais sagrado que você não vai contar isso para ninguém. Absolutamente ninguém. Fica entre nós dois e o médico.
Meu pai não teve raiva do mundo nem lamentou a velhice feliz que poderia ter tido. Não culpou a genética, um vírus maligno ou os efeitos cancerígenos dos corantes. Ficou apenas com vergonha, vexado como se tivesse sido ele o responsável pela leucemia. Não queria que ninguém soubesse para não ter que aguentar o falatório e os olhares de piedade e comiseração. Olhares que o acusavam do crime de não ter cuidado bem de si mesmo.
A notícia virou de ponta-cabeça a ideia que até então tinha tido de sua vida. Naqueles minutos de silêncio, achou que ficou com câncer porque se amargurou, porque não teve o sucesso que deveria ter tido, porque represou suas emoções, porque se deu uma vida infeliz – porque, enfim, não soube cuidar de si mesmo. Sua alma estava envergonhada, e vergonha era tudo o que sentia. A notícia do câncer veio carregada de significado. Frustrações e amarguras há muito esquecidas adquiriram relevo extraordinário, e momentos felizes do passado perderam o brilho. O câncer era mais do que uma doença séria – era um atestado dos maus-tratos, das torturas a que havia submetido sua alma, uma espécie de punição tardia de um deus vingador.
Passou-se algo similar comigo depois da prisão. Eu havia escolhido o caminho que me levara à tortura por decisão própria. Não soubera medir as consequências de meus atos; a quem culpar pelas consequências a não ser a mim mesmo? Para muitos, a militância revolucionária havia sido um momento heroico, algo engrandecedor que lhes renderia dividendos o resto da vida, um motivo de orgulho por ter contribuído para um futuro melhor para o país, um atestado de seu altruísmo cívico. Eu não me sentia assim. Para mim, tinha sido algo errado do começo ao fim, e não havia quem culpar pela encrenca na qual havia me metido, a não ser eu mesmo.
Tal como vítimas de câncer, também reinventei minha vida a partir do trauma. Por que não havia desistido da luta revolucionária a tempo? Pelo mesmo motivo pelo qual não conseguira terminar um namoro mesmo quando não gostava mais da namorada. Minha alma dirigia um táxi que ia a qualquer destino que o passageiro pedisse, menos ao meu. E eu ainda por cima aceitava como pagamento apenas o elogio de ser um motorista confiável e pontual.
Foi em um domingo à tarde, modorrento. A visita teria sido apenas mais uma das tantas visitas de solidariedade que recebíamos nas semanas imediatamente posteriores à minha libertação. Duas professoras do colégio, acompanhadas dos maridos, casais solidários na dor e também nos ideais, judeus europeus que viam no socialismo a fórmula de um mundo mais justo, sem pogroms ou campos de concentração. Acho que militavam no velho PCB, ou eram simpatizantes. Falaram com entusiasmo da esquerda e da revolução. Minha mãe, que havia perdido um irmão assassinado pelos integralistas antes da Segunda Guerra, conversou animadamente com eles. Ela nada entendia de socialismo ou revolução, mas era legalista convicta, detestava regimes opressivos de qualquer natureza e, acima de tudo, era mãe de um filho torturado.
No dia seguinte, os dois maridos foram presos e interrogados a respeito do que disseram em casa. Tudo negaram, por sorte nem chegaram a passar uma noite na prisão, mas saíram assustadíssimos. Foram ameaçados caso estivessem mentindo ou difamando o regime militar.
A situação era horrivelmente embaraçosa. Meu pai tornou-se o suspeito número 1. Quem sabe se ele, capaz de mover mundos e fundos para salvar o filho, não teria se tornado um dedo-duro, denunciando os amigos para obter as boas graças dos militares? Meu pai, por seu lado, suspeitou da empregada que havia servido o café. A mulher poderia ter sido subornada pela Oban para vigiar a família. A pobre moça, demitida sumariamente, chorou ao perder o emprego. Fingida, disse ele, eu sei que você é fingida.
Passamos a viver um clima de perseguição. Se a empregada era inocente, então havia microfones ocultos nas paredes da casa. A coisa teria acontecido durante a reforma empreendida depois da minha volta. Eletricista, pintor e gesseiro, estavam todos a serviço da repressão. Decidimos não falar mais nada que pudesse remotamente nos comprometer. As refeições transcorriam em silêncio. Qualquer palavra poderia ser interpretada como ameaça ao regime. Conversas mais delicadas só na rua. Eu estava novamente clandestino, só que dessa vez dentro da minha própria casa.
Um dia, descobrimos a verdade. Um parente do lado paterno, reacionário feroz, estivera na sala durante a visita das professoras. Acompanhara as conversas em silêncio e saíra convicto de que eu correria riscos seríssimos se continuasse convivendo com aqueles perigosos comunistas. Ato contínuo, denunciou os dois casais a um militar de alta patente que conhecia, no intuito de dar um susto naqueles comunistas. Perguntado, confirmou a denúncia sem qualquer arrependimento.
– Delator é Judas, que traiu Cristo por dinheiro, e não eu, que protejo minha família das más influências e defendo minha pátria. E digo mais: o menino foi desencaminhado, enganado, iludido mesmo, pelos comunas infiltrados na Universidade de São Paulo e no Colégio de Aplicação. Meu sobrinho, primeiro neto da família, um Arida, parente do Patriarca do Líbano, comunista por convicção própria? Jamais.
Fiquei estupefato. O dedo-duro tinha orgulho da sua condição de reacionário militante. Continuou falando da destruição das igrejas na Rússia, da repressão aos monges do Tibete invadido pela China Comunista, do paredón de Fidel Castro, da Intentona de 1935, da degradação dos costumes e da moral em uma peça de Chico Buarque.
Diante da sua orgulhosa profissão de fé, o Líbano dilacerou-se, imerso em uma guerra civil fratricida que ocorria deste nosso lado do mundo. Minha mãe impediu o dedo-duro de pôr os pés em casa e aproveitou o gancho para criticar a família de meu pai como um todo. Meu pai revidou tripudiando sobre os podres da família dela. Aos berros, livres finalmente dos microfones ocultos, repisavam ressentimentos familiares antigos e novos, acumulados por décadas, em que se misturavam idiossincrasias das aldeias, religiões e partidos do Líbano, coisas que haviam ficado na garganta, entaladas por tantos anos, uma torrente de emoções enxovalhando qualquer traço de bondade ou amizade genuína que até então existisse nas duas famílias. Uma briga de proporções bíblicas.
Durante meses, fiquei acuado dentro de mim mesmo. Tinha receio de conversar com meus amigos de prisão, temeroso de que pudessem interpretar nossos encontros como uma tentativa de remontar a organização revolucionária; e não havia outros com quem pudesse falar de peito aberto.
O drama maior era a confusão de sentimentos. Já não sabia de mim. Olhava-me e não me reconhecia. Não poderia abdicar de meus ideais. Nada de luta armada, é claro, mas eu não deveria deixar barato aquilo que vira e sofrera. Tinha que encontrar outra forma de militância, tinha que dar o troco. Mas será que tinha mesmo que dar o troco? Eu não queria trocar as paredes de tijolo da prisão pelas paredes invisíveis do sentimento de vingança, não queria virar o Ahab de Moby Dick, prisioneiro da baleia branca maligna que o mutilara e lhe tomava todos os pensamentos em uma obsessão doentia.
Aos poucos, fui emudecendo. Evitava conversas, com medo que me influenciassem. Avisei que faltaria às refeições, pedi que fossem servidas em meu quarto. Fiquei só, eu e meus pensamentos. Saía apenas para dar voltas no quarteirão, ou tomar um ônibus até o Centro, para visitar livrarias. Lia obsessivamente horas a fio, meio que fugindo, meio que tentando encontrar alguma inspiração, a porta de saída do labirinto em que me encontrava.
Finalmente, um clarão: um estranho poema. Reflexões suscitadas por uma escultura antiga que se salvara, em parte, da destruição dos tempos. O poema me fascinava no ritmo, nas ideias que saltavam como lascas de uma pedra, como se cada palavra tivesse sido esculpida da matéria bruta, tal qual a escultura. Tinha o caráter de uma dedução, misteriosa em seus passos, mas que desembocava em uma conclusão cristalina: “Precisas mudar de vida.”
Nada sabia do “Torso arcaico de Apolo”, do Rilke parisiense que acompanhava Rodin. Para mim, a frase era a síntese de um raciocínio sensibilíssimo, incompreensível em qualquer outra linguagem que não a poética, profundo no seu entendimento da vida e das pessoas. O imperativo calava fundo no meu coração porque era o que eu queria ouvir. Lia em voz alta: precisas mudar de vida. Tens que mudar de vida. Deves mudar de vida. Afastar-se de tudo que possa lembrá-lo daquele período, desaparecer sem deixar traço algum, metamorfose de taturana em borboleta. Recomeçar do zero. Não olhes para trás, Persio – uma Medusa te espera.
As visitas gradualmente desapareceram e a rotina da vida se reinstalou em casa. Aspirador na segunda, feira na terça, almoço reforçado nos sábados e domingos, sorvete depois do jantar nas noites quentes de verão. Meu pai retornou ao trabalho e seu espírito brincalhão e gozador voltou em plenitude. De vez em quando, é bem verdade, ficava com o olhar perdido, hipnotizado por algo do além, como se suas energias tivessem sido esgotadas. Nessas ausências, a única coisa que o distraía era picar fumo e preparar seu cigarrinho de palha, hábito que aprendera no interior nos tempos de caixeiro-viajante. Explicava: Sou meio biruta mesmo, de quando em quando me distraio e esqueço do mundo. Jamais revelou o que lhe passava. Eu fazia de conta que não tinha nada a ver comigo.
Com minha mãe a situação era outra. Seu olhar piedoso me perseguia. Onde quer que estivesse aquele olhar enternecido me acompanhava, me perscrutando e lendo a linguagem silenciosa das minhas expressões faciais e da coluna vertebral, um olhar que falava assim, coitado do menino, sofreu muito. Honrando a cultura libanesa, cuidava de mim por meio da mesa farta. Nas refeições, um exagero nos pratos de que gostava. E entre as refeições, uma avalanche de ofertas. Persinho, coma estes sequilhos. E estes suspiros, então, estão divinos. Que tal um cafezinho fresco, acabou de sair? Mal virava os olhos e pronto – lá estavam à minha frente pera, laranja e caqui, cortados em pedacinhos pequenos para que eu não tivesse trabalho algum.
Aquela solicitude me deixava enfurecido. Eu queria renascer do zero, esquecer tudo aquilo que tinha me acontecido, deixar tudo para trás, mas a vida não poderia voltar ao normal com aquele excesso de mimos culinários, um atestado, repetido inúmeras vezes ao dia, de que eu era um sofredor, um coitado que precisava compensar através dos prazeres materiais os maus-tratos da vida. Adotei todas as estratégias de recusa, do cortês não, muito obrigado, à grosseria de jogar a comida no vaso sanitário. Nada abalava minha mãe. Fazia uma cara amuada, esperava passar um tempinho e lá vinha ela de novo, cafezinho em punho, acompanhado de um bolo de fubá, quem sabe se desta vez o menino se anima? Para minha mãe, eu não comia de tristeza e estava irritadiço devido às sequelas da prisão. Eu era um sofredor e ponto final.
O pior de tudo era vê-la contar minha prisão a alguma amiga. Seus olhos se enchiam de lágrimas; a fala adquiria um tom pausado, solene. Contava do meu sofrimento com tal convicção que um marciano diria que na verdade falava do sofrimento dela. Esmerou-se ao guardar, com capa de plástico de proteção e cabide especial, o blazer azul que eu vestia quando fui preso, como se fosse um suvenir dos seus tempos de prisão, e não dos meus; ficou mortalmente ofendida quando o doei ao filho da empregada do vizinho. Nos fins de tarde, era tomada de melancolia profunda, mater dolorosa. Ficava em silêncio, olhando o sol que se recolhia, entristecida com o que havia acontecido com seu filho.
E eu queria ir embora dela, dizer a senhora se despede de mim agora, mãe, a senhora não me conhece, não aconteceu nada a não ser me aquecer por um tempo no quentinho do seu útero, e por isso eu vou tomar meu caminho e não voltarei nunca mais. Mas não queria magoá-la, seria uma injustiça horrorosa. E no final era mesmo inútil dizer qualquer coisa, ela jamais entenderia. Melhor me trancar diante dela, defendido por uma couraça silenciosa de irritação e mau humor.
Uma única vez tentei conversar diretamente com minha mãe sobre o que sentira naqueles anos. Queria avivar minha memória, mas também me reconciliar com ela, registrar em palavras o que sentira e pedir-lhe desculpas. A conversa não prosperou. Minha mãe evitou o assunto, era-lhe mais doloroso do que eu pensava. Além da compaixão, é difícil para uma mãe suportar o sentimento de que o filho escolheu um curso de ação que poderia ter levado à sua própria destruição.
Rilke dedica uma série de poemas à vida de Maria. No episódio da transformação da água em vinho, Maria se junta à festa após o milagre sem sentir que, no fundo de seus olhos, a água de suas lágrimas se transformara em sangue. No poema seguinte, Maria antevê a Paixão. Se esta era a sua vontade, diz, você não deveria ter nascido do corpo de uma mulher, e sim ter sido extraído de uma montanha, onde se talha pedra com pedra. Se você precisava de tigres para lhe despedaçar, por que usar a túnica que lhe teci, sem costura alguma que pudesse machucar sua pele? Esta foi toda minha vida, e agora subitamente você vira a natureza ao contrário.
Recebi cartas de amigos exilados elogiando meu comportamento. Ninguém foi preso por sua causa, disseram, você nada confessou. Num ímpeto de honestidade, rascunhei uma resposta dizendo que, embora fosse verdade, tinha sido por conta de um ardil, de uma malandragem que pegou, e não de bravura. Eu não cuspira na cara do torturador ou o xingara como a puta na garçonnière. Carta escrita, julguei arriscado demais enviá-la para Paris por um portador, e mais arriscado ainda mantê-la comigo. Foi para a lata de lixo juntamente com qualquer outra explicação que empanasse o brilho da minha reputação.
Um dia também me ligou o simpatizante que só eu conhecia, e cujo nome ocultara na noite de tortura no Rio. Éramos amigos do movimento secundarista, vinha de origem humilde. Emocionado, gaguejou ao agradecer não ter “aberto” seu nome mesmo sob tortura. Retribuí com certo desleixo, sem entrar em detalhes, como se aguentar torturas fosse algo trivial para uma pessoa tão extraordinária quanto eu. Não há o que agradecer, apenas cumpri meu dever, nada mais.
O outro militante cujo nome também poupei fugiu em pânico para o exterior quando soube das prisões. Seu nome havia sido revelado por alguém do grupo, foram à casa de seus pais. Permaneceu no exterior mesmo depois da nossa absolvição. Um dia, cansado das agruras do exílio, voltou ao Brasil e mergulhou na clandestinidade. Sua vida era um inferno, mudando incessantemente de casa e de emprego, indo de uma cidade a outra, fugindo e fugindo. Não deu sinal de vida durante anos.
Encontrei-o por acaso, em um restaurante da moda, em São Paulo. Todas as mesas estavam tomadas, havia uma longa fila de espera, o bar estava apinhado de gente. Entrei na competição selvagem por um segundo de atenção do barman. O infeliz, atarefado ao extremo, se desdobrava lavando copos, preparando drinques e atendendo vários pedidos ao mesmo tempo. Mendiguei: Meu senhor, um copo de vinho tinto, por favor.
Era ele. Um passado assombrado e há muito silencioso destacou-se daquele ambiente barulhento. Ficamos sem nada dizer alguns instantes, imóveis, o tempo em suspenso. Eu de blazer e ele de avental branco. Um do lado de cá, outro do lado de lá do balcão. A restauração da luta de classes.
Contou-me sua saga ali mesmo, entre uma e outra piña colada, drinque da moda naquele verão. O medo de ser preso e torturado havia tomado conta dele. Evitara ligar para qualquer dos amigos, mesmo depois da libertação e do julgamento, por medo de uma armadilha. Falou-me das agruras do autoexílio, das fugas perante perigos imaginados, da gradual descoberta de que talvez estivesse fugindo à toa. Tremia a cada carro de polícia que passava, a cada passo mais próximo, diante de qualquer conversa na qual algo de pessoal lhe fosse perguntado. Uma vida perdida fugindo de uma quimera.
Voltei para casa pensando que talvez fosse melhor ser torturado de uma vez a conviver com um medo daqueles. Lembrou-me a saga dos soldados japoneses que se ocultaram por anos a fio nas florestas das ilhas do Pacífico após o fim da guerra, certos de que a notícia da rendição do imperador era falsa. Alguns deles chegaram a emboscar os invasores. Na inutilidade do sacrifício ao menos havia um consolo: haviam sido leais ao imperador ainda que o imperador não tivesse honrado esta lealdade.
A sabedoria popular consagra expressões estranhas. Fulano ficou com o cabelo em pé, por exemplo. Como poderiam células mortas desafiar a lei da gravidade?
Pois vi meu pai com cabelo em pé um dia, meses depois da minha libertação. O telefone tocou após o almoço e ele atendeu mecanicamente, de passagem, como que se desincumbindo da última tarefa antes de sair de casa. Atendeu de pé, chaves do carro na mão. Salim, posso te ligar do escritório?
Não podia. Seu corpo arriava à medida que ouvia a notícia. Liquefeito, sentou-se numa cadeira e aos poucos foi se horizontalizando, nocauteado.
Do outro lado do fio, meu tio advogado contava, alarmado, as más notícias. Interrompera suas férias no litoral, acabava de chegar a São Paulo e estava indo às pressas para o Fórum. Acontece, Riad, que o delegado do Dops, formalmente encarregado de preparar o inquérito, enquadrou o menino na Lei de Segurança Nacional. E pediu ao juiz sua prisão preventiva, a bem da ordem pública. O julgamento definitivo, Riad, pode demorar anos.
Na minha frente vi um espantalho. Sei, sei, estou entendendo, o.k., entendi. Olhos esbugalhados, a boca seca e o cabelo empinado, sem corte ou estética. Ainda estão por inventar um gel que faça os cabelos ficarem em pé daquele jeito. Cada fio de seus cabelos brancos era um ser vivo, agindo por conta própria, erguendo-se elétrico na vertical, clamando aos céus por ajuda.
Deu certo – o pedido de prisão preventiva foi indeferido pelo juiz e pude aguardar em liberdade até o julgamento.
Meu tio advogado era o exemplo do conservador democrata. Antigetulista ferrenho, apoiara relutantemente o golpe de 64 porque Jango Goulart subvertera a ordem. Tinha horror ao AI-5, mas não nutria simpatia alguma pelas minhas inclinações de esquerda. Achava que eu não passava de um menino perdido no mundo e os culpados eram meus pais, que não souberam me orientar na vida. Deixado sozinho, dizia, o jovem despreza a sabedoria dos velhos e só aprende quixotescamente, à custa de suas próprias cicatrizes. Aquele, no entanto, não era o momento para discussões familiares ou querelas ideológicas – a família prevalecia acima de tudo e ele, criminalista, se sentia no dever de me defender como se eu fosse seu próprio filho. É a causa mais importante de minha vida, dizia.
Sua estratégia de defesa era dupla. De um lado, mostrar que eu não me encaixava no perfil de um perigoso terrorista. Tinha endereço conhecido e havia sido criado em uma boa família. Meu tio reuniu depoimentos de pessoas notórias da sociedade falando bem a meu respeito – juízes, desembargadores, promotores. Obteve um teste psicológico que mostrava que eu tinha índices normais de agressividade. Insistiu com meu pai para que me arrumasse um emprego, coisa que não era fácil naquelas circunstâncias – ninguém queria se expor contratando um ex-terrorista. O tribunal, disse ele, respeita quem trabalha. Para eles, a USP é um antro de subversivos.
Por outro lado, buscava desmoralizar a acusação. Meu tio gostava de se descrever como um simples advogado, um humilde artesão do direito positivo, sem tempo para elevar os olhos para os alcantis da filosofia do direito. Talvez fosse modéstia, mas o fato é que era infernal no conhecimento dos detalhes processuais. Experiente, percebeu através da leitura comparada dos vários depoimentos que, no afã de colher assinaturas, o delegado responsável pelo inquérito coletivo no Dops se esquecera do relógio. Havíamos assinado em bloco, um atrás do outro, rubricando mecanicamente as páginas. E o escrivão, no ritual burocrático, registrou corretamente a hora e os minutos em que os depoimentos tinham sido assinados. Resultado: os horários dos depoimentos diferiam uns dos outros em apenas alguns minutos. Ora, dizia meu tio, como é possível que alguém tenha tomado depoimentos tão extensos em dois ou três minutos? Mal daria tempo para iniciar as perguntas, quanto mais para que o interrogado respondesse, o escrivão batesse à máquina, tirasse cópias em papel carbono etc.
Não era a única falha da peça de acusação. Confrontando os depoimentos, meu tio notou que as testemunhas eram sempre as mesmas: dois investigadores antigos do próprio Dops, encostados na burocracia e já próximos da aposentadoria, que assinaram aquela montanha de depoimentos tão mecanicamente quanto nós. Não eram testemunhas isentas que pudessem avalizar o que ali se escrevera.
Tratou também de desqualificar o crime. Acusavam-me de ter transportado em meu carro meus companheiros que colocaram a faixa. Ora, dizia ele, onde estão as provas materiais do crime? Não se condena alguém por furtar uma carteira que seja, quando não há notícia de que uma carteira tenha sido furtada. Como então condenar o menino por ter colocado uma faixa quando não havia nos autos nenhum registro de apreensão de alguma faixa com aqueles dizeres?
Do primeiro emprego a gente nunca esquece. Mulheres bonitas, carros esporte, gente criativa, livre, leve e solta. Mas também executivos engravatados, tensos nas relações com clientes, e horas de estresse no cumprimento dos prazos para entrega dos anúncios e das campanhas.
Meu primeiro emprego foi na DPZ. Era difícil encontrar trabalho naquelas circunstâncias – ninguém queria se expor contratando alguém cujo nome constara dos jornais como terrorista preso. Seguindo a recomendação do meu tio, meu pai foi à luta. Voltou um dia satisfeito. Persio, ainda há empresários de coragem e bom coração neste mundo. O Duailib vai te dar um emprego.
Era um emprego em tempo integral, compatível apenas com um curso universitário noturno. Mas eu já havia perdido o primeiro ano da faculdade de história, por faltas, e portanto não haveria custo algum em virar um trabalhador. E estava decidido a cumprir a orientação do meu tio. Apresentei-me no dia marcado, sem noção do que iria fazer. Não sabia nada de propaganda. Acabei virando um revisor de português, aquele que dá a palavra final, checando a ortografia e a regência verbal antes de a peça ir para a publicação.
Logo percebi que me faltaria o talento, ou a vocação, para seguir carreira. Mas me senti acolhido na agência. Ninguém me olhava com comiseração ou piedade. Os sócios eram democratas, horrorizados com a violação dos direitos humanos que se praticava no país. O redator-chefe, um antigo simpatizante da esquerda comunista, tinha um olhar cínico sobre o capitalismo. Persio, mulher alguma compra um sabonete Lux. Ela compra o sonho de ser uma estrela de cinema ao módico preço de um sabonete. Acredita tanto que vai virar estrela de cinema quanto uma criança acredita que sua boneca tem vida própria.
Havia um truque na defesa. Meu tio Salim em nada criticava os militares; ressalvava o zelo e ardor com que defendiam a pátria. No tribunal, explicou-me, há um único juiz civil, encarregado apenas de instruir o processo, e o corpo de jurados é formado todo ele por militares. A estratégia, Persio, é carregar as baterias contra a inépcia do Dops, formalmente encarregado do inquérito, apelando para o senso de justiça do tribunal contra os desatinos do delegado que presidira o inquérito e solicitara minha prisão preventiva.
E mais. Ao preparar a defesa, trocara ideias, através de um intermediário, com o juiz civil togado. Adepto da absolvição do grupo de estudantes como um todo, o juiz havia sondado os militares que dispunham do poder de voto no tribunal. De certa forma, estava tudo prejulgado. O próprio promotor havia confidenciado a meu tio que pediria minha (e nossa) absolvição. Os estudantes não haviam praticado ou colaborado com nenhum ato terrorista, eram muito jovens (vários não foram sequer processados por terem menos de 18 anos) e já estavam reintegrados à sociedade. Tudo se encaminhava para a absolvição – salvo se eu denunciasse, em juízo e nos autos, a tortura que havia sofrido.
Sentado em sua mesa de trabalho atulhada de papéis e processos, meu tio iniciou a conversa olhando-me por cima dos óculos de leitura.
– Persio, você já sofreu muito. Seus pais e familiares também. Seja responsável com você mesmo e com quem te quer bem. Foi um milagre terem libertado você e seus amigos. Não abuse da sorte fazendo bravatas. Veja bem: você não precisará mentir porque ninguém vai te perguntar nada. Consiga de vez sua liberdade. Caso contrário, prefiro nem pensar no que pode te acontecer.
Vacilei alguns instantes. Eu sabia do que ele estava falando. E ele sabia da dúvida que me consumia. Denunciar nos autos a tortura seria a oportunidade de registrar para sempre meu protesto. Um documento para os historiadores. Um testemunho a mais para despertar a consciência coletiva sobre os absurdos do regime militar. Uma vingança contra aqueles que tentaram me silenciar. Eu seria um Graciliano que, ao sair da Colônia Correcional, disse ao médico-superintendente que iria pagar a hospitalidade recebida com um livro de 200 páginas contando tudo o que lá vira e sofrera. Era meu dever, meu compromisso com a verdade. Uma demonstração pessoal de coragem, a chance de recuperar a altivez ofendida, de advertir urbi et orbi que não havia tortura que me levasse a deixar de lado os ideais de uma sociedade livre e justa.
Ou não. Quem sabe, talvez, não devesse ficar em silêncio, ser absolvido e ver-me livre de vez? Já tinha dado minha quota de sofrimento. Desde a soltura, batia ponto todo mês no prédio da Justiça Militar para mostrar que não havia fugido, e tinha que pedir autorização toda vez que saía dos limites da cidade. Não eram rotinas que me incomodassem muito, mas estava sempre sujeito à espada de Dâmocles do julgamento. Tinha agora uma chance de ouro para obter uma liberdade incondicional. Repetia para mim mesmo os argumentos, para me convencer bem do que iria fazer. De que valeria o enésimo depoimento confirmando a tortura no Brasil? Eu não era político, nem advogado, nem escritor famoso, o mundo iria ignorar solenemente minhas denúncias. De que valeria um depoimento calcado em apenas uma sessão de tortura? Meu único trauma era certa dificuldade de dormir com luz acesa, algo ridículo perto das sequelas dos torturados de verdade. Para que se arvorar em grande revolucionário, denunciando a ditadura, se minha militância tinha sido modestíssima? Denunciar torturas, no meu caso, seria uma desproporção, uma usurpação de glória indevida. Em resumo: para que provocar os militares do tribunal? Todo mundo sabia o que se passava nos porões da ditadura. Por conta de uma única, mísera noite de tortura?
Além do mais, adorava ouvir meus discos e ler minha literatura. Descobrira, talvez por algum obscuro escapismo da mente, um gosto insuspeitado pelas matemáticas, pela mais bela aventura do espírito no espaço da pura forma. Dez minutos de valentia cívica valeriam mais do que anos a fio preso?
Chegou o dia. Era um julgamento coletivo – lá estavam todos os meus colegas, acompanhados de pais e familiares. O julgamento da meninada, como disse um dos guardas. Meninada no banco dos réus, mas aparato de gente grande. O prédio da Justiça Militar estava cercado de policiais e militares armados até os dentes. Puseram um tanque na entrada da avenida Brigadeiro Luís Antônio. Um tanque de guerra de verdade, pronto para o combate. Será que temiam um ataque terrorista para nos resgatar? Ou será que queriam apenas reafirmar o poderio do status quo?
Para manter-me calmo, raciocinava. Quem votava no tribunal eram militares indicados a dedo. O julgamento que contava era feito pelos próprios militares do aparato repressivo. A sentença era proferida na prisão mesmo: este deve morrer, aquele ficar preso, este outro libertado. Se haviam me libertado, não faria sentido algum me condenarem agora. O julgamento formal, dois anos após a soltura, era uma máscara de legalidade processual, destinada a ratificar a sentença que emanara do único poder que contava – o poder dos quartéis. O julgamento há de ser um ritual vazio, destinado exclusivamente a preservar a fachada do estado de direito.
Repetira para mim mesmo o raciocínio milhares de vezes, antes e durante o julgamento, tentando encontrar alguma falha. Era um raciocínio lógico, inquestionável. Mas na frente daqueles juízes não havia reflexão que me tranquilizasse. O acaso existe e sempre pode surpreender para pior. Shit happens, uma das frases mais sábias da língua inglesa. De outra forma, como explicar que o delegado do Dops pedira por conta própria minha prisão preventiva mesmo após ter sido libertado pelos militares? Não havia eu mesmo sido um joguete das rusgas entre os centros de tortura? E se a defesa de meu tio estivesse equivocada? E se os militares quisessem aproveitar a oportunidade para enviar uma mensagem inequívoca aos adolescentes de todo o país? Sairíamos então do banco dos réus diretamente para o pesadelo da prisão e, sabe-se lá por quanto tempo, vida e planos destruídos.
A acusação foi lida. Persio Arida – vulgo Renato, ocasionalmente Abel ou Daniel – teve intensa atividade no campo da subversão. Era o coordenador de uma célula do Movimento Estudantil da VAR-Palmares. Tudo indica ser um Dom Quixote de fancaria que pensou derrubar moinhos de vento. Fez pichações e ergueu uma faixa com dizeres pregando a desorganização moral da sociedade.
A seguir, meu tio iniciou a defesa. Baixinho, voz de tenor poderosa, corpo encorpado por muitos anos de boxe, meu tio sustentou-a oralmente, lendo apenas um ou outro documento. Ridicularizou a peça acusatória, invocou o bom nome da Justiça, elogiou malandramente a isenção do tribunal e lembrou o porte das testemunhas de defesa que havia arrolado. Falava com a oratória dos julgamentos criminais – impecável, articulada, cheia de frases de efeito, assertiva e determinada, com todos os recursos disponíveis para manter a atenção dos jurados. Em qualquer outro tribunal, teria sido uma atuação notável, um discurso daqueles no qual ninguém ousa espirrar para não perder cada palavra dita.
Mas não ali. O único que o escutava era o juiz civil. O corpo de jurados, todo de uniforme, conversava animadamente entre si. Esfregavam seu desprezo pela defesa falando abobrinhas e contando estórias – houve um momento em que todos riram, provavelmente no fim de alguma piada. Um escárnio à justiça, comentaria meu tio mais tarde. A plateia também não colaborava, embora por outra razão. Falava-se o tempo todo para aliviar a tensão, circulando de boca em boca a informação de que todos seriam absolvidos. Ninguém sabia ao certo a fonte de tal notícia, mas todos a contavam como se verdadeira fosse, e a ouviam novamente de terceiros como confirmação daquilo que já sabiam.
Meu tio ignorava tudo e todos, concentrado nas figuras de retórica e na articulação dos argumentos. E eu o ouvia, embevecido pela fala grandiloquente e estupefato pela condução do raciocínio. O Persio daquele discurso era falso feito uma nota de 3 dólares, um jovem cristão inexperiente, filho exemplar, caseiro, trabalhador, quase um coroinha de gravata-borboleta e calça curta. Coisas do direito, pensei, tudo o que importa é arrancar a sentença de absolvição.
A surpresa maior aconteceu no finale. Seu discurso terminaria com uma frase de efeito, síntese e arremate daquele arrazoado todo. Deveria ser falada com solenidade, de forma pausada e cadenciada, culminando com o pedido de que fosse feita justiça. Ouço-o ainda bem:
– E é este mesmo Persio Arida, fruto primeiro de uma família exemplar, patriota, extraordinário aluno, trabalhador, no frescor da juventude, que…
Lágrimas nos olhos, voz embargada, meu tio subitamente silenciou. Chocado pelo inesperado, consegui por um momento deixar de ser o centro de tudo para prestar atenção nele. Não no seu discurso a meu respeito, mas nele mesmo. O terno de linho 120 amassado, camisa suada, rosto cansado, tudo nele demonstrava o esforço que havia sido falar naquelas circunstâncias, defendendo o sobrinho querido, justo ele que não tinha filhos, uma árvore sem frutos, dedicado a mim como se eu fosse seu filho.
O silêncio embargado demorou uma eternidade. Quando retomou o discurso era outro homem. Falava para dentro, murmurando, mal e mal concluiu a frase pedindo que fosse feita justiça para seu sobrinho. Voltou da tribuna com passos lentos, como se precisasse sentir exatamente onde estava pisando.
A sentença foi ouvida em silêncio. A absolvição em primeira instância selava a sorte do processo. Ainda mais uma absolvição coletiva, aplainando de vez quaisquer nuances de envolvimento de uns e de outros, quase que criando uma jurisprudência, se é que tal conceito pode ser aplicado àqueles vestígios de ordenamento jurídico. Ainda restava uma apelação, por dever de ofício, do procurador, mas era pura formalidade. Melhor resultado, impossível.
Na porta do prédio, pais se confraternizavam entre abraços emocionados e parabéns recíprocos. Tentavam combinar uma pizza no sábado à noite para comemorar a absolvição dos filhos. Os ex-réus, no entanto, estavam com pressa. Ninguém queria saber de cantina do Bixiga, ninguém queria comemorar nada. Só queríamos dar o fora daquele local o mais rapidamente possível, longe daqueles soldados e do tanque, como se, partindo, pudéssemos nos ausentar daquela experiência traumática também.
Podia, finalmente, encarar a vida como futuro. O único senão do qual não me arrependia, mas sinceramente lamentava, era não ter podido denunciar a tortura publicamente. Em 1974 veio a abertura, lentíssima como se veria depois, e com ela a esperança de registrar por escrito o que vira nas prisões. Resolvi pôr tudo no papel. Não mudaria a substância do que já se sabia, mas, pensava comigo mesmo, talvez seja no acúmulo de depoimentos que se romperá a cortina de silêncio com que o regime autoritário tentou isolar os centros de tortura. Claude Lanzmann não teria conseguido no tempo normal de um filme transformar o espectador em uma testemunha dos crimes que o nazismo pretendeu tornar invisíveis. Precisou de 350 horas de entrevistas, condensadas em nove horas, para fazer Shoah. Pois eu queria que o meu depoimento fosse o da 351ª hora: que ajudasse a romper, pelo mero acúmulo e saturação, o torpor das consciências, expondo de forma crua o que se praticou no Brasil.
E imbuído desse espírito transcrevi meu depoimento, sendo o meu próprio escrivão, um depoimento exato, livre de adjetivos e superlativos: “… que o fulano no dia x sofreu no quartel da Tijuca uma série de torturas físicas e psíquicas, dentre as quais espancamentos generalizados, inclusive choques elétricos na mãos e nos testículos, tendo desmaiado várias vezes em consequência; que, asmático, ficou sem tratamento médico adequado…”
O resultado? Um texto curto e pobre, mal e mal preenchendo duas páginas, vagabundo mesmo, incapaz de suscitar qualquer indignação, frio como os relatos dos suplícios da Inquisição que lia no meu curso de história. Talvez me faltasse talento literário. Ou talvez meu fiasco resultasse de um defeito das palavras. Pois não há texto escrito sobre os crimes contra a humanidade que desperte no leitor o horror que teria se os presenciasse. Camus bem dizia que quem tolera crimes contra a humanidade não deveria ser poupado do espetáculo da humanidade em sofrimento e agonia.
Tentei, uma ou outra vez, expandir o texto, me perguntando sobre o que faria alguém perpetrar atrocidades como as que presenciei. O texto, impublicável naqueles anos ainda sombreados pela opressão, não tinha nada de extraordinário, mas a questão me intrigava. Pensava não em mim, mas no Bacuri e em tantos outros. Pensava nos relatos dos dias iniciais do golpe de 1973 no Chile – Victor Jara teve os punhos quebrados para que não tocasse mais violão, Eugenio Ruiz-Tagle, antes de ser fuzilado, teve o olho arrancado, o nariz esmagado, lhe extraíram as unhas dos pés e das mãos, e terminou com a coluna vertebral quebrada em três partes. E quanto mais pensava, menos conseguia escrever.
Depois da absolvição, larguei a faculdade de história e o emprego na agência de publicidade. Desisti da música, perambulei por várias faculdades e acabei me fixando em economia. Meu pai ficou satisfeito – era uma profissão sem o prestígio da medicina, advocacia ou engenharia, mas que me prepararia para ganhar dinheiro e sustentar uma família. No fundo, gostaria que eu o sucedesse nos negócios, que o acompanhasse na vida de comerciante, mas respeitava meu pendor acadêmico.
Segui assim meu caminho. Estudaria no Brasil, depois nos Estados Unidos e me tornaria independente. Havia somente que cumprir um dever de gratidão. Não que meu pai cobrasse ou pedisse algo. É que eu nunca havia conseguido dar um abraço de peito aberto nele, chorar com ele de gratidão e, incapaz de corresponder ao seu amor em espécie, precisava retribuir de alguma outra forma. Agíamos, eu e ele, como se fosse natural da parte dele, como pai, cuidar de mim como sempre cuidou. Mas sabíamos ambos que havia no seu afeto paterno algo que transcendia a figura de um pai comum. E eu não queria ser um filho comum, daqueles que considera quitadas suas obrigações no almoço dominical na casa dos pais.
Um dia tive um estalo: poderia ajudá-lo trabalhando com ele nas férias. Meu pai desdobrava-se entre suas lojas de pequeno comércio, cronicamente deficitárias, e suas atividades como negociante independente, preparado para aproveitar toda e qualquer oportunidade que se lhe atravessasse o caminho. Comprava e vendia firmas falidas, se metia em sociedades com escrituras em nome de terceiros, intermediava operações sem capital algum, numa sucessão vertiginosa de altos e baixos que narrava em detalhes em todas as refeições. A casa participava daquele turbilhão – ora comprara uma fábrica de mentol e passava horas falando da importância do mentol para o mundo; em outro momento se metera em um reflorestamento com eucaliptos; logo depois dava lances para comprar um terreno encalhado que servira de depósito de bolinhas de gude que estava com preço subavaliado em um leilão judicial. Quando ganhava dinheiro, trocava de carro, viajava e deixava minha mãe comprar quadros e objetos de arte; quando as coisas iam mal, reclamava do custo da assinatura do Estadão, evitava pisar em restaurantes, ficava deprimido e diminuído perante si mesmo. Na maré baixa contava suas agruras a qualquer um e coroava o relato com seu mote predileto: Rakudianai.
Não havia quem não risse com o Rakudianai. O som da palavra era hilário e o riso suavizava a fase ruim dos negócios, pondo o mundo dos feitos materiais em seu devido lugar. Ela lhe havia sido ensinada por um japonês do bairro da Liberdade. Explicava que a palavra em japonês quer dizer “não é fácil”. Meu pai não sabia nada de japonês, detestava peixe cru e não sabia jogar Go, jogo que me apaixonava desde moleque. Mas o Rakudianai se integrou de forma permanente ao seu vocabulário.
Foi numa daquelas fases Rakudianai que resolvi ajudá-lo na reorganização de suas lojas. Não havia nada que pudesse fazer quanto a seus negócios independentes, um mundo de blefes e espertezas que me era estranho. Mas nas lojas havia um negócio estável, ao qual poderia aplicar o que aprendera na faculdade. Vendia-se material escolar, artigos de papelaria, apliques de Natal, mas sobretudo discos populares, os hits da ocasião. Pensei em calcular a demanda por discos, descobrir qual era o preço ótimo pelo qual ele poderia maximizar seus lucros, avaliar o valor de cada ponto de comércio. Coisas que havia aprendido nas aulas de microeconomia e, agora, do alto dos meus 21 anos, me faziam poderoso, capaz de ajudar o próprio pai e retribuir, de uma torta maneira, tudo aquilo que ele havia feito por mim.
“Brasília” era o nome do escritório no qual ficavam meu pai e seus dois sócios, um irmão e um cunhado. Ficava num prédio velho na ladeira General Carneiro, lado esquerdo de quem desce. A localização havia sido escolhida a dedo – o escritório, que serviria para centralizar a contabilidade das cinco lojas, ficava praticamente em frente à loja matriz, responsável pela maior parte das vendas. Era uma rua exclusiva para pedestres, de grande movimento, caminho natural para o Parque Dom Pedro onde estacionavam os ônibus que vinham da Zona Leste.
Não sei quem batizou aquele escritório de Brasília. A ideia era lançar os germes de um futuro auspicioso, tal qual Juscelino havia feito com a sua Brasília. Um nome cheio de esperança, mas também carregado de autoironia, presença de um espírito capaz de caçoar de suas próprias criações.
Nessa Brasília viviam-se as realidades do pequeno comércio. Eternos problemas com os fiscais escorchantes, mercadorias que encalhavam, contabilidade sempre atrasada, talonários de nota fiscal empilhados no chão (um a mais ou um a menos não fará diferença), a eterna confusão entre o “por dentro” e o “por fora”. Raro era o dia em que se conseguia conciliar o caixa no fim do expediente sem grandes atropelos ou sobressaltos. O negócio era deficitário, o capital investido nos estoques diminuía ano a ano, suavemente erodido pela inflação. Os sócios viviam às turras. O irmão de minha mãe era de gênio difícil e reclamava que o irmão do meu pai era burro. Meu pai achava ambos incompetentes, mas não havia Cristo que se interessasse em comprar sua parte naquela sociedade. E os outros dois, que se dedicavam inteiramente às lojas, tinham inveja dos seus negócios independentes. A política também não contribuía para a concórdia societária – o irmão de minha mãe era do Partido Comunista, e o irmão do meu pai entusiasmara-se pela Marcha por Deus e pela Família antes do golpe de 64.
Os sócios não se entendiam nem mesmo sobre questões estritamente operacionais. Deveriam vender discos ou cadernos escolares? Seriam uma loja de discos velhos, de sobras, ou uma papelaria? Deveriam abrir mais uma loja no Brás ou na Mooca? Tudo era motivo para discussões infindáveis e inconclusivas. Nos momentos mais acirrados, meu pai pronunciava a frase de efeito: Capitalismo é bom, a concorrência é que é uma desgraça. Aprendi isto com meu primeiro sócio, explicava. Fundamos juntos a Arida & Korn Ltda. Uma pacífica tinturaria em que judeus e árabes tinham partes iguais, e que na melhor tradição semita dedicava-se ao lucro e não à guerra. Lá também aprendi, meu filho – piscava malandramente ao citar outro de seus ditados prediletos –, que nada cria tamanha intimidade quanto manter o caixa em comum.
Foi daquele escritório que acompanhei o lançamento do disco de Sidney Magal. Baseado no número de pessoas que transitava diariamente em frente de sua loja, meu pai convencera a gravadora a fazer ali o lançamento do novo disco do cantor cigano. Cartazes espalhados pelo Centro velho anunciaram a presença de Sidney Magal no dia do lançamento. Um fim de tarde inesquecível – Venham e levem seu disco autografado. O lançamento do disco seria a hora da virada, a oportunidade de ouro para se impor no mundo do disco paulistano.
O cantor era um tipo garboso, forte e moreno, dotado de espessa cabeleira negra. Camisa aberta no peito e calça preta justa de couro, o sujeito encarnava à perfeição o amor enlouquecido e a trangressão que o imaginário feminino associa aos ciganos.
Não sei como meu pai, homem tarimbado na psicologia feminina, pôde errar tão bisonhamente. Na hora anunciada, a mulherada, enlouquecida pelo símbolo da masculinidade, avançou loja adentro como um rolo compressor. Queriam tocar no ídolo, abraçá-lo, beijá-lo, sentar no colo dele, sabe-se lá mais o quê. O balcão de madeira que serviria de apoio para que escrevessem seus nomes antes do autógrafo foi triturado pela massa ensandecida. Tiveram que chamar a polícia. Uma multidão frustrada ficou do lado de fora. Quando tudo se resolveu, a loja era só cacos. Quase nada havia sido vendido e o restante da mercadoria estava danificado ou inutilizável. Rakudianai.
Meu pai entendeu quando expliquei que precisava seguir meu caminho, terminar a faculdade e estudar nos Estados Unidos. Siga seu caminho, meu filho, este mundo do comércio não é sua vocação.
Viajantes calejados já haviam me alertado: você irá passar a manhã inteirinha lá, eles demoram para atender, a fila é enorme, chegue cedo. Leve toda a documentação senão eles mandam você voltar noutro dia. A resposta só vem depois de três dias, não adianta dizer que você vai perder o avião ou que precisa ir de qualquer maneira.
Segui à risca a recomendação. Era a primeira vez que solicitava visto de entrada nos Estados Unidos. Preparado para a longa espera, levei comigo vários jornais. Mal tive tempo de abri-los. Fui chamado para uma entrevista em uma sala reservada logo depois que entreguei os formulários solicitando o visto.
– Have you ever been a member of the Communist Party or one of its front organizations?
A pergunta feita de chofre, sem sequer um good morning, deixou-me perplexo. Saltara diretamente de um documentário que havia visto uma semana antes sobre os julgamentos macarthistas em Hollywood, nos anos da Guerra Fria. O acusado era Bertolt Brecht. O procurador começava o interrogatório exatamente com a mesma frase: “Have you ever been…? Ever?”
Mas eu não era Bertolt Brecht nem São Paulo era Los Angeles. Era óbvio que minha ficha do Dops estava nos arquivos do consulado. O cônsul era jovem e direto, lidava com a situação com a objetividade de um businessman. A resposta deveria ser rápida e sem hesitação. Meu visto (e, por tabela, o doutorado) estava em risco. Menti.
– No. Never.
– You are lying. Consta aqui que o senhor foi preso por atividades comunistas.
– Sim, mas fui absolvido pela própria Justiça Militar.
– Traga então o certificado de absolvição que lhe darei o visto.
Deal.
Antes de viajar aos Estados Unidos, minha mãe fez um pedido. Queria que eu me batizasse. Ela e meu pai não me haviam batizado porque não entraram em acordo sobre o ritual – se católico romano, como ela queria, ou ortodoxo, predileção de meu pai. Mas ele não tinha deus algum, e certamente emburricou na escolha da igreja como uma maneira de dar liberdade ao filho para escolher, mais tarde, sua própria religião. Ou ficar agnóstico, como ele, descrente de qualquer poder terreno que se nomeie porta-voz de um Deus que talvez nem exista.
O fato é que, já com mais de 20 anos, ainda não contava com a graça divina. Não era algo que me incomodasse ou fizesse falta. Na escola primária, saía da classe nas aulas de catecismo junto com judeus e protestantes, e aquilo me fazia especial, diferente dos outros, era quase que um atestado de personalidade, de alguém que sustenta suas convicções mesmo sob o olhar de censura da sociedade.
Mas minha mãe rezara muito por mim enquanto estivera preso. Além disso, sua amiga Geny, a mesma que havia alertado sobre o perigo da minha remoção para o Rio, fizera uma promessa: se eu escapasse com vida, haveria de tentar converter-me à fé católica. Minha mãe foi delicada – não quero impor nada a você, meu filho. Você tem ideias excêntricas. Mas é que conheci um frei sofisticado. Formação estrangeira, dominicano e progressista. Marque uma conversa com ele.
Cheguei ao convento às oito da noite, a caminho da casa de uma namorada aonde iria passar a noite. Carregava uma pequena mochila com roupas e um despertador para não perder a aula na manhã seguinte. Parei o carro e fui a pé. O lugar estava deserto. O convento era mal iluminado, paredes frias e marcadas pela tragédia dos padres dominicanos que apoiaram Carlos Marighela. O convento de frei Tito. Fui encaminhado para uma sala, o silêncio daquelas paredes entrecortado apenas pelo tique-taque do relógio dentro da mochila.
O padre era um intelectual sofisticado e de bom coração. Falava português com sotaque, mas fluentemente. Conversamos sobre a existência de Deus. Mostrou-me sua correspondência com Lévi-Strauss, conhecia Greimas, tinha livros publicados. Falou-me da fé e do sentimento cristão perante o mundo. Mas, lá pelas tantas, interrompeu o elaborado fio de raciocínio e olhou longamente a mochila. Na verdade, desde o começo da conversa não tirava os olhos dela. Rosto tenso, chegou a um ponto em que não aguentava mais aquele tique-taque. O que você tem aí dentro?
A pergunta dispensava explicação. Um tique-taque só poderia evocar, naqueles anos e naquele lugar, uma bomba-relógio. Um atentado terrorista da extrema-direita, destruindo fisicamente um convento que era símbolo do engajamento político da Igreja Católica. Constrangido, fiz questão de abrir a mochila e mostrar o malfadado relógio. O assunto deslizou para coisas da vida cotidiana, namoradas e estudos.
A mochila tinha um passado heroico. Transportara documentos revolucionários, programas partidários, panfletos, já me dera tantos sustos diante de qualquer carro de política que se aproximava e, quem diria, acabou sendo revistada justamente no convento dos dominicanos. Por um padre e pelo motivo oposto ao que deveria ter sido. Revistada por alguém que me falava de um Cristo que veio ao mundo para sofrer por nós, como se eu nele acreditando pudesse transferir-lhe todo o meu sofrimento. Que seria então dele, e não meu, e por isso mesmo me reconfortaria. Um Deus que, no entanto, não estava ali, quase pascaliano, abscôndito nos céus. Teria eu entendido bem? Apesar de dominicano, aquele padre nada tinha de marxista. Acompanhou-me até a porta. Teu ateísmo ou agnosticismo é típico dos jovens de hoje em dia, disse-me na despedida. Deus exige certo desapego. Você encontrará a fé na maturidade, quando empreender um voo solitário dentro de você mesmo.
Continuo ateu.
Foram anos a fio de cartas. Cartas que transbordavam afeto e falavam das saudades e do vazio que minha partida havia deixado. Meu pai escrevia com facilidade e bom humor, embora de quando em quando os reveses dos negócios o deixassem bloqueado, inapetente para escrever, como me explicava depois. As cartas versavam sobre a vida familiar, a política e os negócios, em especial as novas oportunidades de ganhar dinheiro que vislumbrava a cada momento. Uma delas, em particular, precisava da minha colaboração e envolvia um dos seus personagens prediletos: Dom Carlos.
Dom Carlos era um português de 84 anos, que se gabava dos seus feitos sexuais. Meu pai adorava conversar com ele – é o mentiroso número 2 do mundo, dizia, cada conversa rendia horas e horas de risada depois. (O mentiroso número 1 era um patrício bem mais velho que ele e que, mesmo diabético, não passava dia algum sem que supostamente desse de mil a 1 500 vaivéns, verdadeiras bigornadas, em alguma mulher desassistida.) Pois um dia meu pai leu no Estado de S. Paulo um anúncio pelo qual alguém se interessava em adquirir, pagando muito bem, cartas aéreas que tivessem sido transportadas pelo Zeppelin, DO-X, Catapultados e Scadta, como também menus, bilhetes de passagem ou medalhas de aeronaves alemãs. Pagavam em dólar, marco alemão ou franco suíço: PO Box em Port Jefferson, NY, USA.
E eu tenho aquele amigo, um velho amigo de 84 anos, que ainda funciona, o Dom Carlos, aquele português que você, acredito, também conhece. Bem, ele viajou no Zeppelin de São Paulo, ou do Rio, até o Recife, e emoldurou a passagem num quadro pendurado na parede de seu apartamento. Quando li o anúncio, me lembrei, fui visitá-lo, e depois de algumas mutretas resolvi propor uma troca, deixaria uma xerox autenticada da passagem na moldura e ficaria com a original, e em contrapartida ofereceria um litro do Vat 69 (por razões óbvias), e depois de muito regatear ele concordou com a troca por três litros de bebida, mas só na hora, pois no dia seguinte telefonou dizendo a sua mãe que era muita bebida, e que ele tinha bebida de graça na casa dos amigos, e que só se desfaria da passagem mediante o pagamento de 5 mil cruzeiros – ou seja, 250 dólares. Nada respondi, eu acredito que V. tenha facilidade em saber qual a cotação desta passagem, que tem o número 346, toda escrita em alemão, expedida pela Cia. Condor, que seria a representante do dirigível aqui. Aguardo notícias. Não queime muito tempo com isso, só por telefone, é claro que não tenho muito interesse nisso, mas achei estranho que alguém mandasse publicar no jornal de maior tiragem da América do Sul, mesmo sabendo que foram pouquíssimas pessoas, relativamente, que fizeram tal viagem, e raríssimas pessoas guardariam, emoldurado, o bilhete de passagem. Pode ser que valha “uma nota”, não tenho, nem faço a menor ideia.
A carta deixou-me estupefato. Imaginava o tempo gasto em descobrir a notícia, negociar a troca de um bilhete que ele não sabia o valor por garrafas de uísque, na esperança de garimpar um dinheiro extra para a família. Eu torcia por ele, me divertia com suas estórias, mas na minha vida norte-americana a distância entre nossos mundos era quase tão grande quanto o afeto que nos unia.
Meu pai contava nas cartas do gradual enfraquecimento do regime militar. Eu nada perguntava, mas tudo entendia –era sua maneira de me dizer que meus ideais de um Brasil melhor iriam vingar. Narrou com satisfação e detalhes a destituição do ultradireita Sylvio Frota, no dia 12 de outubro de 1977, “um presente de Geisel às crianças de todo o Brasil”; elogiou a carta dos advogados de 1978, pedindo a volta do estado de direito; torcia pela crise econômica (governo algum, dizia ele, aguenta crise econômica prolongada); sofria com o drama do poeta Thiago de Mello, que, exilado em Portugal, resolvera voltar a todo custo, preferindo o risco de ser morto no seu país à certeza de morrer por dentro naquele desterro. Dedicou uma carta quase inteira à morte por afogamento do delegado Fleury. Sua conclusão: “Deus, na sua infinita sabedoria, escreve por linhas tortas, dizem, e como também diz o velho ditado italiano, de uno a uno se sfonderan tutos…”
Nas suas notícias do Brasil, me intrigava a obsessão com o Corinthians, há duas décadas em jejum do campeonato brasileiro. Eu havia sido um corintiano fanático até a faculdade, o único naquela família de palmeirenses, convertido espontaneamente ao Campeão dos Campeões desde tenra idade, encantado por seu hino glorioso. Quando pequeno explicava o inexplicável com a candura das crianças: meu time é o do hino bonito. Acompanhava os jogos pelo rádio só para ouvir o hino. O corpo ficava todo arrepiado e meus olhos se enchiam de lágrimas quando as notas iniciais do hino, majestosas e lentas, emanavam do radinho: Do-si-sol-mi-mi… Mi-fa#-sol-la-sol-fa#…
Já aos vinte e tantos anos, no entanto, o fanatismo era coisa do passado. Cansei-me de atrelar meu destino e meus humores aos caprichos dos 25 em campo. Meu pai, palmeirense roxo, sabia que a sorte do todo-poderoso timão era agora um assunto distante para mim, mas mesmo assim narrava as sofridas campanhas do Corinthians como se eu fosse o mais fiel dos torcedores. Gastou várias páginas descrevendo em detalhes os preparativos para as semifinais no Maracanã, em 1976, invadido por 100 mil mosqueteiros. Eram cartas e mais cartas descrevendo a comoção de um jogo que se afigurava histórico – uma caravana cívica, meu filho, como não se vê desde a Revolução de 1932 – e mais outras tantas contando da catarse coletiva depois da derrota. Curiosamente, apenas uma ou duas linhas sobre o jogo propriamente dito.
Foi somente quando da conquista do título em 1977 que entendi aquela sua obsessão. Anunciou o placar glorioso deixando um recado eufórico na secretária eletrônica do meu apartamento em Cambridge. A vitória encerrava vinte anos de jejum. Escreveu naquele mesmo dia:
Querido Filho,
Somente agora tenho condições de lhe escrever, pois todo o país estava sob a emoção da guerra que precedeu a vitória do Corinthians e do delírio que a cidade se viu possuída após a vitória tão desejada. Houve gente que dormiu enrolada na bandeira do Coringão, que deixou de fumar, que deixou de prevaricar, que não come mais carne, as mais esquisitas promessas estão sendo cumpridas pela “graça” alcançada pelo campeonato. Logo após o jogo, correram ao mastro onde tremulava a bandeira do Brasil, que foi sumariamente retirada e, em seu lugar, hasteada a bandeira do Corinthians. O estoque de velas acabou na praça, em Aparecida do Norte houve uma romaria e mais de 30 mil – 30 mil, veja bem – camisas do Corinthians foram colocadas como ex-votos aos pés da Santa. O mais pitoresco é que quase a totalidade dos aficionados de outros clubes torceu e se alegrou com a vitória, com exceção de uma minoria, por sinal de reacionários, fascistoides, egoístas e filhos da p., que comentavam cheios de despeito e asco que “essa manifestação selvagem destes varzeanos nesta alegria bárbara nos causa profundo nojo”, e a mim era esta, exatamente esta, a impressão que me causavam esses desajustados, insensíveis e profundamente egoístas, incapazes de interpretar que essa explosão, esse extravasamento de euforia, é motivado por todo um complexo de frustrações deste nosso povo oprimido e sem direitos, que a cegueira os impede de ver, e que eu nem quero comentar.
E nem precisaria. O seu Corinthians era o povo brasileiro inteiro. Via nas suadas campanhas mosqueteiras uma metáfora da difícil marcha do país até a democracia. Naquela histórica vitória de 1977 raiava o amanhã que vai ser outro dia, como na música do Chico Buarque, e resgatava-se o Brasil pelo qual seu filho tanto sofrera.
Com o passar dos anos o vigor das memórias se esmaeceu. Lembrava, mas já não revivia. Vergonha, rancor, raiva, constrangimento em falar do assunto, tudo desapareceu – o tempo é um santo remédio. Meu status de ex-preso político em nada obstava minha carreira, à parte um ou outro pequeno incidente – um pedido de bolsa de estudos à Organização dos Estados Americanos, a OEA, negado (alguns brasileiros, você há de entender, são mais benquistos do que outros), a contratação como professor da USP retardada por pedido de vistas de um dos observadores do SNI instalados na reitoria. O tempo trouxe também o amadurecimento e a reflexão, muitas vezes quase tão penosas quanto as memórias do sofrimento. Passado o trauma, sobreveio o desencanto.
Eu não me reconhecia mais nas ideias de juventude. Ficava arrepiado ao me lembrar quão naturalmente aceitara esfarrapados argumentos em prol da economia planejada e da propriedade coletiva dos meios de produção, ou da inevitabilidade da implosão do capitalismo. Meu muro de Berlim desmoronara muito antes do de concreto e arame farpado. E, mesmo colocando entre parênteses minha formação de economista, o que pensar do Lênin que lia com tanta avidez em castelhano? Os totalitarismos são todos assemelhados. Aquele rapaz de 17 ou 18 anos que considerava a democracia uma ideologia de dominação burguesa, percebi pouco depois, era de uma ignorância abissal, além de pretensioso.
E o que teria acontecido com os direitos humanos se aquele movimento tivesse dado certo? Baseado na aliança de militares do baixo clero e jovens estudantes de classe média, se bem-sucedido,o movimento guerrilheiro teria provavelmente feito do Brasil uma grande Cuba. Era um movimento que, como tantos, pensava encarnar a própria razão. Sua dinâmica continha o mesmo vírus que fez, em outros momentos da história, militantes de excepcional pureza revolucionária se transformarem, quando chegam ao poder, em mandantes de mortes em massa e de torturas. Havia algo jacobino no olhar resoluto daqueles revolucionários – sacrificariam sem pestanejar os direitos do indivíduo no altar dos interesses do povo, devidamente decodificados por eles mesmos, é claro. O terror legitimado pela utopia revolucionária. Em resumo: teríamos trocado seis por meia dúzia.
Eram pensamentos que embrulhavam o estômago. Demoliam sem piedade meus anos de militância comunista. Tinham o efeito de uma traição, tiravam o chão dos meus pés. Mas não havia como evitá-los, não havia canto no qual pudesse armazená-los – eles se impunham por si mesmos, clarividentes. Não se tratava mais da operação insidiosa daquele estranho sentimento de vergonha e constrangimento que tivera ao voltar para casa, aquele sentimento que faz recair sobre a vítima a responsabilidade do mal que lhe foi feito. Tratava-se agora da razão, cristalina e insofismável, mostrando o equívoco daquele esforço revolucionário nutrido de tão boas intenções. A militância contribuiu, por vias tortas, para a volta da democracia – mas nisso se esgotara todo o seu sentido. O mundo de ideais ao qual eu dedicara o melhor de mim perdeu qualquer encanto.
Algo assim: Perpétua se confessa cristã diante do juiz em Cartago, no início do século III. Ignora as súplicas do pai, deixa de lado o filho que está amamentando, escreve um diário e registra seus sonhos. Percorre, altiva e segura de sua fé, o caminho da prisão até a arena na qual enfrentará os animais selvagens e terminará decapitada. Mas se Perpétua, rediviva, perdesse a fé após o sacrifício de seu corpo, que sentido poderia atribuir ao seu próprio gesto? A quem poderia pedir perdão por ter abandonado o filho, o pai e sua própria vida?
Pois a verdade era uma só: tinha sido levado de roldão pelo movimento coletivo, abdicado da minha própria capacidade de me situar no mundo, arrastado feito uma maria vai com as outras. E nada havia que pudesse fazer a respeito, a não ser curar as feridas com o tempo e aprender com a experiência. Aprender a prezar a independência de pensamento; a não se iludir com o conforto e amparo que os movimentos coletivos infundem a quem deles participa; e a desconfiar daqueles que invocam a História, o Social, o Interesse Público, o Interesse Nacional ou a pureza e suas boas intenções para violar as liberdades e os direitos individuais.
A evolução do país também não ajudou a curar as feridas daqueles que participaram dos movimentos de resistência ao regime militar. A Lei da Anistia foi promulgada em 1979. Prescreveram então, antes mesmo de iniciados os processos de julgamento, os crimes dos torturadores. A oposição saudou a lei por possibilitar a volta dos exilados políticos; a situação por poupar os torturadores. Em um gesto de conciliação, sepultou-se, de comum acordo, o passado autoritário em nome de um futuro democrático. A política tem suas armadilhas, exige concessões e talvez não houvesse outro caminho para restaurar as liberdades civis. Seu significado, no entanto, foi muito além de livrar uns e outros da imputação criminal. Ao rasurar do mundo dos possíveis a investigação formal sobre o que se passou, perdeu-se a chance da reconciliação efetiva e do aprendizado na memória nacional. Não se fez como na África do Sul, onde a Comissão da Verdade e Reconciliação anistiou, dentro de certos parâmetros, aqueles que confessadamente perpetraram crimes políticos, permitindo ao mesmo tempo que as vítimas relatassem o que sofreram e fossem reparadas pelo Estado. Não, aqui no Brasil o lixo foi varrido para debaixo do tapete. Faz de conta que não aconteceu.
Alguns torturadores não conseguiram permanecer no anonimato e arcaram com o ônus da reprovação moral da sociedade. Mas a teia de cumplicidade, covardia e oportunismo que se forjou em torno do Estado torturador, a teia de militares, políticos, empresários e tecnocratas que o sustentava, desmanchou-se no ar como se fumaça fosse.
A história foi sendo gradualmente recontada e sempre no mesmo sentido: eliminar a responsabilidade daqueles que viviam no poder. Os políticos, biônicos ou eleitos, que votavam ordenadamente no Congresso de acordo com os interesses do regime militar, na verdade teriam sempre sido contrários à prática de torturas. Os setores da mídia que veiculavam as notícias de acordo com os interesses do regime constituído, e prosperavam materialmente por conta disto, teriam na verdade atuado em uma franja de sutileza imperceptível aos censores para divulgar, de forma subliminar, o conteúdo que de fato espelharia suas convicções democráticas. O establishment militar, por sua vez, teria obedecido a ordens do alto-comando por disciplina, e não por convicção. O alto-comando, por sua vez, teria tido divisões internas de largo espectro que inocentariam boa parte de seus participantes.
Nessa pasteurização adocicada do passado ocorreu também um curioso empurra-empurra dos vivos para os mortos. Os vivos que integravam o núcleo do poder, ou em torno dele viviam, recontaram o que se passou mostrando como eles, na verdade, operavam a favor da democracia de dentro, quintas-colunas habilíssimos. Por exclusão, a sustentação da ditadura teria sido obra exclusiva dos mortos, e mesmo assim somente daqueles que não contaram com a simpatia dos vivos para lhes salvar a memória, ou que não foram previdentes o suficiente para deixar algum escrito ou papel que servisse de base, por mais precária que fosse, para sua reabilitação posterior.
A Lei da Anistia operou no plano da memória política nacional como monumentos frequentemente o fazem. Permitem que se deposite a memória na paisagem, servem de referência ocasional em datas históricas e pronto – a vida continua como se nada tivesse acontecido, como se a dolorosa verdade que emerge dos períodos difíceis não precisasse mais ser elaborada pela coletividade que neles viveu. Com uma diferença: amnesiados os crimes, no nosso caso sequer monumento há.
Meu primeiro livro de filosofia foi La Filosofia, de Karl Jaspers – uma tradução para o espanhol de um pequeno livro introdutório, escrito para leigos. Comprei-o na Mestre Jou, livraria do centro de São Paulo onde o mundo da cultura se abria a qualquer jovem que se aventurasse por suas prateleiras. Guardo-o até hoje, menos pelo conteúdo do que por uma espécie de afeto. É que a vida de Jaspers sempre me impressionou. Depois da Segunda Guerra, o filósofo excluído, sobrevivente do período hitlerista, exilou-se na Suíça indignado com Adenauer e com a incapacidade dos alemães em enfrentar a responsabilidade pelo que havia ocorrido. Exilou-se por decisão sua, e não porque alguém o perseguisse. A indignação foi-lhe razão bastante.
Outro era o contexto, incomensuráveis os crimes, duvidosa qualquer comparação. Mas tal capacidade de indignar-se é um dom quase divino, um poder à parte. Platão tinha lá sua sabedoria quando distinguiu três faculdades (ou espécies) da alma: a racional, a irracional e a irascível, aquela que se indigna e luta por aquilo que a razão julga justo. Jaspers tinha nele, vivo e presente, esse poder de indignar-se.
Quando penso no que aconteceu depois da Lei da Anistia, me pergunto: onde se escondeu o terceiro poder da nossa alma? Operado o esquecimento, feita a rasura na memória, a indignação morre pela ausência de objeto, e as vozes isoladas que mantêm viva a memória daqueles anos acabam soando como ressentidas e de mal com a vida.
Quase caí de costas ao ouvir o pedido de meu pai. Estávamos em Boston, anos depois da Lei da Anistia, à procura de um tratamento alternativo qualquer que lhe concedesse uma esperança de cura. Tinha sido tudo em vão, e a leucemia progredia exatamente de acordo com os livros-texto de medicina que eu comprara em Nova York na esperança de entender melhor a doença que o afligia. A peregrinação chegara ao fim, e com ela qualquer esperança efetiva de reversão do quadro. E ele queria conhecer a Disney!
Pois fomos. E naquele mundo de fantasia, ele se divertindo com os Piratas do Caribe e a Space Mountain, o mundo ficou de ponta-cabeça. Era eu quem falava inglês, quem comprava os bilhetes e organizava a viagem; e era ele quem se maravilhava como uma criança, incrédulo naquele mundo perfeito. Chegou a entrar várias vezes na fila do mesmo brinquedo só para acompanhar um novo amiguinho de 7 anos. Do lado de fora, vi os dois se divertindo a valer na xícara que roda, se esmerando em imprimir máxima velocidade aos rodopios e soltando uma exclamação de lástima quando soava o gongo. Em Orlando, era eu quem o carregava de cavalinho no ombro, dando voltas na praça do Magic Castle para fazer com que o ar fluísse naquele sangue cada vez mais enfraquecido. Ele não queria terminar de mal com a vida.
– Eu morri, meu filho. A morte é escura. Horrorosa. Eu estava lá, vi de perto. Pesadelos sem fim, um se encadeando no outro. Não queira nem saber.
Meu pai emergia do estado de coma. Enfraquecido, cheio de feridas na boca, voz fraca, quase um sussurro, recobrara surpreendentemente a consciência após ter ficado desacordado por quase uma semana. Por acaso, eu estava ao lado e havia visto o movimento dos olhos se abrindo, olhando o branco asséptico da parede do hospital. Vendo-o voltar a si, diante daquele branco que eu não sabia se era o branco da baleia do Moby Dick ou o branco das pedras de Jerusalém, perguntei: Pai, como está você?
– Eu morri, meu filho…
O que dizer para alguém que viu a morte de perto? Para alguém que se apercebeu, como dizia o padre Vieira, que não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa? Antes de ficar doente, meu pai costumava divertir-se com o assunto morte, repetindo a blague: Eu sei que vou morrer, meu filho, só não sei por quanto tempo vou ficar morto… E ria gostosamente do jogo de palavras e da ideia de uma morte temporária. Mas naquele leito, saindo do coma, a morte era outra, escura e horrorosa, um sofrimento perpetuado. E a mim, vendo os seus olhos se abrindo, persentindo o peso das suas palavras, ocorreu-me apenas perguntar se agora, que ele estava melhor, renascido mesmo, não gostaria de ir para casa. Foi o jeito que encontrei de criar alguma perspectiva boa para aquela vida crepuscular. Se vier a falecer por agora, pensei, que seja à moda antiga, com suas próprias roupas e a família a seu lado. Uma morte sem aquele avental de doente dos hospitais, aquele deprimente avental amarrado apenas por um lacinho nas costas que deixa a bunda de fora e o corpo livre para ser picado por injeções e manipulado pelos médicos.
– Não, meu filho, quero ficar aqui mesmo. Estou fraco demais. Não consigo ficar de pé, minha mão não tem força nem para segurar um copo vazio. É melhor que me recupere aqui no hospital mesmo. É mais seguro.
Ele ainda tinha alguma esperança. Alguma. Como tantos à beira da morte, tratou de cuidar, naquele breve interlúdio de vida, que o mundo ficasse em ordem depois de sua partida. Pediu aos irmãos que fizessem as pazes; passou-me detalhes confusos de seus dinheiros para ter certeza de que minha mãe teria uma vida confortável; perguntou pelas netinhas; e mergulhou novamente na escuridão.
Telefonemas na madrugada são sempre terríveis. Eu não estava ao seu lado quando o corpo se aquietou na cama. Durante algum tempo pensei que deveria ter ficado lá, grudado ao seu lado, porque o coração é um sino que quando deixa de bater ainda permite que o ouvido atento acompanhe as ondas sonoras de seu último acorde. Não há coragem maior, pensei, do que acompanhar o momento exato da morte de alguém querido. Se tivesse tido esta coragem, ou esta sorte, poderia ter-lhe dado algum conforto na passagem para aquele mundo que ele já visitara uma vez, um mundo escuro e horroroso. Mas depois, com o passar dos anos, conformei-me. Escapismo ou acaso, o fato é que eu não estava lá e não havia nada que pudesse fazer a respeito.
Em outra vida eu jamais teria sido um cão perdigueiro. Meu nariz, eternamente congestionado, tem uso inversamente proporcional ao tamanho, uma barreira quase intransponível aos cheiros deste mundo. Mas não resistiu às flores do velório. Naquela altura eu vivia minha primeira encarnação como figura pública, imerso naquela persona que inevitavelmente engrandece seu ocupante aos olhos alheios. E chegavam imensos arranjos de flores, ondas avassaladoras de flores, muitas vezes enviadas por pessoas que pouco me conheciam e dele, meu pai, certamente não haviam ouvido falar.
O cheiro daquelas coroas de flores me nauseava, trazia uma morbidez, um realismo excessivo. A gente fica sensível nesses momentos, prestando atenção a cada detalhe, aos amigos que chegam e aos que não aparecem, contando e recontando sem cansar a saga do morto que ali jaz envidraçado dentro do caixão. A persona pública se impunha, não pude em nenhum momento recolher-me e olhar de frente, quieto mesmo, para meu pai, abstrair-me daquele turbilhão de pessoas e flores malcheirosas chegando.
Em uma dada altura surgiu um padre. Meu pai jamais teria aprovado alguém a ministrar uma reza, era anticlerical ao extremo, mas minha mãe chamou um padre assim mesmo. A presença do padre dividiu as águas, todos se afastaram do caixão, abrindo espaço para que a oração se iniciasse. Ficamos, ela e eu, junto ao padre, na linha de frente. Fui então fulminado por aquele olhar severo que tão bem conhecia desde criança – Persio, evite o vexame em público, deixe para lá estas suas esquisitices, eu não sei por que você foi nascer tão cheio de manias e idiossincrasias. A mãe me conhecia bem, intuía minha vacilação. Deveria ser coerente e ignorar o apelo daquela que mais uma vez precisava apresentar com orgulho seu filho à sociedade? Ou acompanhá-la nas preces, por deferência e respeito a ela e a todos os demais crentes ali presentes?
Resolvi rezar. Eu rezo, tu rezas, ele reza, aonde iam todos já que se ia a esperança? Perdido nos pensamentos, o inconsciente me desguardou. Tropecei no Pai-Nosso. Estás no céu ou estais no céu? O sinal da cruz vai da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda? E no final não sabia com que palavras agradecer ao padre, sequer se algum agradecimento lhe era devido. Mas minha mãe, visivelmente aliviada, fingiu nada perceber.
Meu pai tinha horror aos vermes, recitava de cor um poema do Augusto dos Anjos chamado “O Deus-Verme” e me fez jurar que o cremaria. Para mim, a cremação seria uma cena de cinema, na qual o corpo arde no fogo da madeira empilhada e o ar fibrila como se você pudesse ver a alma partindo. No mundo das providências práticas, cuidamos para que a cerimônia fosse feita no único crematório de São Paulo existente naquela época. O nome inspirava – Crematório da Vila Alpina – e eu queria atender seu desejo.
Foi um choque de realidade. Vila Alpina era um bairro longínquo da Zona Norte, mistura desordenada de concreto e telhas de zinco, um forno. De alpino apenas o nome – o crematório era uma construção de mau gosto em um descampado, nenhuma árvore por perto. Demoramos uma hora e tanto para chegar lá. Fazia um calor infernal, os carros não tinham ar-condicionado, suava-se por todos os poros. O caixão apareceu fechado, no meio de uma arena com bancos corridos de concreto. Ligaram o som: uma Ave-Maria melosa executada em um órgão no melhor estilo das churrascarias. A cafonice era constrangedora. Alguns rezaram. Fiquei aliviado quando levaram o caixão e fomos embora.
Depois tive que lidar com as cinzas. Um funcionário do crematório entregou-me um saquinho.
– Assine o recibo aqui, por favor, são de seu pai.
Diante do meu silêncio, o sujeito continuou. Entrega de cinzas, explicou-me, só com protocolo assinado. Decreto municipal.
O saquinho cabia na palma de minha mão. A frase dele ecoava dentro de mim: Assine aqui, são de seu pai. Assinei. São de seu pai – poderia referir-se a cartas, roupas ou objetos de meu pai. Mas não cinzas, as cinzas eram meu pai, meu pai resumido, transmudado e condensado naquele saquinho, tão irreal quanto um fumante que se esvaísse por inteiro na mera baforada do seu cigarro e alguém chegasse para seu filho com um tubinho fechado cheio de fumaça dentro e dissesse: é de seu pai.
Guardei por algumas horas aquele saquinho como se guarda uma mecha de cabelo ou um dente de leite de uma criança. O tempo fica, nós é que passamos. Por fim, incomodado, espalhei as cinzas em torno de um pé de rododendro que havia no jardim de minha casa. Espalhei-as sem cerimônia ou testemunhas, quase que mecanicamente. Meu pai sobreviveria na minha memória e era isso o que importava.
– Meu filho, seu pai tem roupas finas. Ternos de linho, gravatas italianas, sapatos de cromo alemão. Está tudo aqui, organizado no armário. Leve essas roupas, seu manequim é igual ao dele, para que gastar dinheiro à toa? E há também este relógio de ouro, que foi de seu avô.
Aceitei pragmaticamente o relógio e desconversei sobre o resto. Eu não me tornaria meu pai ou meu avô por usar o relógio deles. Usar roupas, no entanto, me parecia mórbido, como se elas estivessem impregnadas daquele horrível cheiro de rosas e éter que circunda os mortos. Além do mais, não queria que meu pai voltasse em mim. Queria andar com meus próprios sapatos. Deixei seus paletós dependurados na casa de minha mãe e fiquei apenas com minhas recordações, suas estórias engraçadas e meus sonhos. É um aprendizado este, prestar atenção aos sonhos, levá-los a sério, em cada minúcia.
Um deles sobreveio dias depois da cremação. Meu inconsciente mudou o curso dos fatos, exatamente a misteriosa operação que eu desejara tão ardentemente realizar quando fui preso. Meu sonho retomou a história daquele momento no hospital em que ele dissera que vira a morte de perto. Eu o ouvia e dizia, fique tranquilo, pai, já estamos indo para casa, para que você possa recuperar-se com a comidinha da Odete. A recuperação foi lenta, ficou um bom tempo na sua cama, tomando sopa e comendo batatas cozidas, e por fim pudemos viajar para que ele espairecesse um pouco em outros ares. Fomos a Campos do Jordão. Eu o ajudei a caminhar, apoiado em uma bengala, saúde ainda precária, mas infinitamente melhor do que na agonia dos seus últimos dias. Era outono nas árvores e primavera na atmosfera, caminhávamos em uma colina suave e seu corpo revivia como o verde viceja debaixo da neve no final do inverno.
O segundo sonho só chegou muitos anos depois. Meu pai havia se separado da minha mãe e fora morar na Itália. Tinha outra mulher lá, alva e gordinha como os árabes gostam. Conseguira, finalmente, realizar o sonho que o motivara a inscrever-se na FEB. Eu desembarcava em Roma e ligava para ele, para saber notícias. Meu filho, não se preocupe, estou bem. No Vêneto, bella Italia. Sua voz no telefone trazia uma imagem viva na minha frente: terno, gravata, colete e chapéu Borsalino, signore.
No primeiro sonho eu era Pinóquio. Salvava o pai da baleia assassina, desejo de todo menino, passaporte para a vida de verdade. Mas no segundo sonho o pai que foi me buscar no Rio e me deu banho aos 18 anos não precisava mais que eu o salvasse. Nem que eu usasse suas roupas. Estávamos quites. Podíamos, finalmente, tocar nossas vidas, cada um por seu lado. Eu aqui e ele na Itália dos seus sonhos.
Fui à missa no convento dos dominicanos que marcava os 25 anos da morte de frei Tito. O mesmo convento em que minha heroica mochila havia sido revistada tantos anos antes. Resolvi comparecer não por religiosidade ou solidariedade humana direta – nunca conheci frei Tito –, mas porque sua história sempre me comoveu e, já reconciliado comigo mesmo, não precisava mais ignorar qualquer evento que evocasse, ainda que de forma distante, os momentos difíceis da minha prisão.
Frei Tito foi barbaramente torturado na sua dupla condição de religioso e revolucionário próximo a Marighela. Libertado quando do sequestro do embaixador da Suíça, tentou reerguer sua vida, exilado na França. Acossado por delírios persecutórios, nos quais obedecia a ordens do delegado que o torturara, desesperado por encontrar um Deus que não lhe mostrava a face, e tomado por abulia profunda, terminou por se suicidar, exorcizando assim os demônios que a tortura instilara em seu espírito. Os monges dominicanos que acompanharam sua agonia enterraram seu corpo em uma cerimônia religiosa, apesar do suicídio – um reconhecimento silencioso de que frei Tito tinha sido uma vítima de pecado humano. Sobrevivera fisicamente aos sofrimentos da prisão, mas ali morrera espiritualmente.
No seu limite trágico, sua história ilustra talvez melhor que outras a natureza do mal a que a tortura expõe suas vítimas, o crocodilo em ação. A igreja dos dominicanos estava cheia, vários líderes religiosos compartilharam a mesa e falaram belas palavras sobre seu martírio. Aos poucos, no entanto, a cerimônia descambou para a política. Até dos sem-terra se falou. Vários dos palestrantes se comportaram como se só pudessem honrar a memória de frei Tito resgatando as ideias daquele tempo.
Fui embora antes do final. Todos os que lá estavam viveram, em graus diversos, um mesmo capítulo de nossa história e compartilhavam, pelo efeito daquela experiência tão marcante, algo de sua natureza enquanto indivíduos. Mas como expressar essa identidade sem ter que suportar o fardo de ideias mofadas pelo tempo?
No pequeno texto escrito para a sociedade dos B’nai B’rith, por ocasião da homenagem prestada aos seus 70 anos, Freud diz que o que o ligava ao povo judeu não era nem a religião – na qual descria – nem o nacionalismo, pois sempre desconfiou das identidades construídas a partir do solo pátrio. Freud se refere a forças emocionais obscuras, que apontavam para certa consciência de identidade interna, um sentimento de familiaridade, de estar em casa, na casa de uma construção comum da alma.
Mais de quarenta anos se passaram desde os meses de prisão. Mas, ao longo desse tempo, senti pulsar a mesma identidade a cada encontro com os que compartilharam comigo aquelas aventuras de juventude. Éramos todos muito jovens e a vida levou-nos por caminhos distantes. Alguns têm opiniões firmes sobre como construir um Brasil melhor, enquanto outros acompanham a política à distância, e talvez até com certo desinteresse. Mas basta revê-los para que no seu olhar eu mesmo me reconheça. A conversa retoma em segundos a intimidade de velhos amigos, mesmo que não tenhamos tido notícias um do outro por anos ou décadas. Há aqui também uma identidade secreta – habitamos a mesma casa, nossa alma foi construída da mesma maneira.
É difícil expressá-la. Talvez se possa dizer de uma atitude de vida que desconfia do individualismo, do sentimento nocivo de que cada um cuida de si (e os outros que se danem), que tão frequentemente apequena as pessoas e tolhe sua humanidade. Ter ousado resistir à ditadura em nome de um mundo melhor não é necessariamente a única maneira de incrustar dentro de si essa desconfiança, mas tê-lo feito torna-a marca de alma indelével. Esta é a herança daqueles anos sombrios, aquilo que nos une, uma identidade secreta que faculta o reconhecimento e o autorreconhecimento. Não é mais nem um ideário nem uma plataforma política – mas quem ousaria dizer que é pouco nestes tempos tomados pelo egoísmo?