ILUSTRAÇÃO: © THE SAUL STEINBERG FOUNDATION / AUTVIS, BRASIL
Ratos no labirinto
A escrita restritiva do Oulipo
Bernardo Esteves | Edição Ratos no labirinto,
“Esta noite, ‘roubar’”, anunciou Paul Fournel à plateia que, numa quinta-feira da primavera passada, ocupava o grande auditório da Biblioteca Nacional da França, em Paris. O escritor dividia o palco com outros sete colegas sentados em semicírculo. “Roubar”, no caso, era o mote dos poemas e contos que o grupo havia preparado para ler.
O primeiro a falar foi Ian Monk, britânico de 55 anos que escreve em inglês e francês. Naquela noite leria “Meus anos de ladrão” – as reminiscências de um sujeito que começa furtando os pais, até virar um ladrão de apartamentos e se converter em cibergatuno –, um poema cíclico, composto com uma regra que só mais tarde seria revelada.
Após a leitura, Fournel explicou o método de escrita: Monk havia inventado uma forma poética derivada da sextina, poema medieval de estrutura fixa marcado pela permutação das palavras no final dos versos. O francês ficou tão impressionado que decidiu se apropriar do exercício do colega, com o álibi do mote daquela reunião. “Roubei a fórmula que Ian nos propôs alguns dias atrás”, admitiu. (Na antevéspera, num encontro reservado o grupo discutira os textos que seriam apresentados.)
Nascido em 1947, Paul Fournel é calvo e tem uma bigodeira branca. Vestido com um paletó vermelho meio largo, ele conduzia aquela edição das Quintas-Feiras do Oulipo, leitura pública mensal organizada desde 1997 por esse coletivo de escritores, cujo nome é o acrônimo de Ouvroir de Littérature Potentielle, oficina ou ateliê de literatura potencial.
O que caracteriza a literatura potencial e une os membros desse grupo criado em 1960 é o compromisso de submeter as criações literárias a regras formais. Jogos de palavras como anagramas ou palíndromos, bem como poemas de forma fixa – rondós, haicais, sonetos e sextinas –, são um exemplo de restrições literárias (em francês, contraintes) em curso há séculos. Os autores do Oulipo praticaram vários desses exercícios e propuseram uma série de novas imposições, muitas delas derivadas de princípios matemáticos. Segundo uma imagem recorrente entre eles, os oulipianos são como ratos que se obrigam a construir labirintos dos quais eles próprios tentarão sair.
Os textos lidos são em geral inéditos, escritos para a ocasião, embora excepcionalmente possam já ter sido publicados. Foi o caso da narrativa que Jacques Jouet escolheu: “Vou ler um conto cult”, anunciou o francês. “É de um autor húngaro do século xx chamado Dezsö Kosztolányi”, completou, acrescentando que só ao final diria o nome do conto.
Jouet leu a história de um ladrão compulsivo que, após cumprir dois anos de prisão, tentou se reinserir na sociedade como tradutor. Um editor o incumbiu de verter um romance histórico inglês. Com olhar minucioso e soluções engenhosas, o ex-presidiário fez um trabalho aparentemente impecável – até que, ao cotejar os textos, o editor deu falta de certos elementos do original. Onde no texto em inglês havia 36 janelas num castelo, na versão húngara já não eram mais que doze; um pagamento em dinheiro vivo de 1 500 libras esterlinas se transformara numa transação de 150 libras; uma condessa que ostentava joias de família surge austera, apenas “trajando vestido de noite”. Ao cotejar os textos, o narrador traça um inventário detalhado dos bens subtraídos – um butim impressionante que incluía, entre outros, 177 anéis de ouro, 181 relógios de bolso e mais de 1 milhão e meio de libras. Ao fim da leitura, pontuada por risos da plateia, Jouet revelou o título do conto: “O tradutor cleptomaníaco.”
Jacques Jouet tem 68 anos e desde os 44 compõe um poema por dia. Nos últimos tempos tornou-se adepto de performances literárias, durante as quais escreve diante do público – o texto é projetado num telão conforme vai sendo elaborado. É sobretudo com trechos criados nessas condições que ele vem preparando La République de Mek-Ouyes, que descreve como “um romance-folhetim burlesco, irresponsável e sem fim” (a tradução fonética do título, de sonoridade oriental em francês, poderia ser A República das Minhas Bolas). O tomo ix da saga foi produzido em Beirute, numa maratona de escrita pública que durou três dias, num total de 24 horas.
O conto húngaro lido por Jouet inspirou a contribuição do argentino Eduardo Berti, o último a falar. Berti leu seu conto policial, cujo início era muito parecido ao de Kosztolányi. Um detetive tenta desvendar uma série de crimes cometidos em várias cidades francesas, nas quais alguém sempre pega da biblioteca um livro e o devolve com a capa adulterada, inserindo mudanças que podem passar despercebidas aos olhos incultos. O romance de Gabriel García Márquez virou Vinte Anos de Solidão; a distopia de George Orwell agora se passa em 1844; o clássico infantil Os Três Porquinhos tem seus protagonistas reduzidos a dois – à medida que enumerava as histórias, Berti projetava num telão as capas alteradas. Registrado nas diferentes bibliotecas com o nome do narrador de “O tradutor cleptomaníaco”, o gaiato continuou a brincadeira mesmo depois de saber-se procurado. Tomou emprestado 2666, de Roberto Bolaño, e o entregou com o título pela metade, 1333; reduziu a Dois e Meio os Seis Personagens à Procura de um Autor, de Luigi Pirandello. O investigador termina por resolver o enigma – o crime vinha sendo praticado por quatro cúmplices – e rouba para si alguns dos livros adulterados, não sem ter ele próprio um volume subtraído pelo narrador da história. O conto se chamava – claro – “O leitor cleptomaníaco”, e foi um dos mais aplaudidos da noite.
OOulipo nasceu da obsessão de Raymond Queneau e François Le Lionnais em aplicar princípios matemáticos à literatura. Queneau ganhava a vida como escritor e editor da Gallimard; o engenheiro químico Le Lionnais, apaixonado por literatura, trabalhava com divulgação científica. A dupla reuniu escritores e matemáticos interessados na proposta e fundou o grupo em novembro de 1960.
Naquele momento, Queneau se dedicava a um exemplo extremo de aplicação da matemática à literatura: os Cem Mil Bilhões de Poemas, um exercício de poesia combinatória que convida o leitor a permutar os versos de dez sonetos diferentes escritos pelo autor – o total de possibilidades geradas pela combinação perfaz os 1014 poemas anunciados no título. Ao elaborar os dez sonetos de base, Queneau cuidou de preservar as rimas, a estrutura gramatical e a concordância de número e gênero em cada verso. Cada um dos poemas originais também apresentava coerência conceitual – o mesmo não se pode dizer dos derivados. O terceto final de uma das combinações, numa tradução sem preocupação com rimas ou métrica, é o seguinte:
As relações transalpinas são biunívocas?
Desculpe-nos, não há baleias nem focas
o mamífero é rei, nós somos seus primos.
O livro foi lançado em 1961, numa edição em papel de alta gramatura com as páginas cortadas em tiras, uma para cada verso, permitindo que o leitor compusesse manualmente cada soneto. Não que uma vida baste para montá-los todos: Queneau se deu ao trabalho de calcular e concluiu que uma pessoa, sem comer ou dormir, levaria 190 milhões de anos para esgotar todas as possibilidades de leitura. (A espécie humana existe há menos de 200 mil anos.) Morto em 1976, Queneau não viu a popularização dos computadores pessoais e a chegada da internet. A rede abriga um gerador automático que, com um clique, compõe ao acaso um dos bilhões de sonetos (http://x42.com/active/queneau.html).
Para os oulipianos, a escrita com restrições estimula a criatividade e liberta o espírito. O escritor Italo Calvino costumava compará-la com o atletismo: assim como existem atletas que correm bem os 100 metros rasos e outros que se destacam mais nos 110 metros com barreiras, certos autores parecem render mais quando escrevem sob restrições.
Com o cabelo preto espetado enquadrando a testa vasta, a barbicha sem bigode e os olhos arregalados, Georges Perec é o rosto mais conhecido do Oulipo. Nascido em 1936 e vitimado por um câncer aos 45 anos, Perec era um inventarista obcecado pela minúcia, da estirpe dos que abominam o et cetera. Era capaz de escrever uma narrativa extensa e envolvente enumerando os objetos que repousavam sobre sua escrivaninha, contando a história de cada um deles. Maníaco por xadrez, palavras cruzadas e quebra-cabeça, trafegava com desenvoltura no universo da escrita com restrições. Notabilizou-se por textos elaborados com um número restrito de letras do alfabeto, os lipogramas.
Em 1969, dois anos depois de entrar no Oulipo, Perec lançou o primeiro romance da literatura potencial, La Disparition, traduzido como O Sumiço. O livro foi escrito inteiramente sem a letra E, a mais frequente no francês – impossibilitando ao autor recorrer a um sem-número de artigos, preposições, locuções e desinências verbais, além de excluir boa parte das palavras no feminino. Para os oulipianos, um texto perfeito deve mencionar a restrição que fundamenta sua construção. O Sumiço segue a regra à risca: o desaparecimento em questão é o da própria vogal eliminada, que surge em inúmeras imagens e referências. O romance pode ser lido como uma aventura policial – a investigação do sumiço –, mas ganha camadas de sentido à luz da ausência dos pais na vida de Perec, perdidos na Segunda Guerra Mundial. O escritor também arriscou o exercício inverso: criou um romance em que a única vogal permitida era o E. Lançado em 1972, Les Revenentes soa como uma realização menos completa que La Disparition, pelo abuso de subterfúgios para contornar as limitações impostas.
A obra maior de Perec e do Oulipo não é um lipograma, mas um romance de fôlego, A Vida Modo de Usar, de 1978, composto a partir de uma miríade de restrições de inspiração matemática – quase todas registradas num caderninho, algumas poucas jamais reveladas. O romance traça um retrato exaustivo dos moradores de um prédio do 17º distrito de Paris. As regras que regem sua composição determinam desde a ordem em que cada apartamento seria descrito – definida pelo movimento do cavalo num tabuleiro de xadrez – até elementos centrais da trama, distribuídos conforme um arranjo matemático específico. Cada capítulo obedece a 42 regras, que podem incluir “a posição ocupada por uma pessoa, a presença de um animal, uma cor, uma citação, uma forma geométrica, referências a livros e quadros”, segundo Jacques Fux, matemático, romancista e estudioso da literatura potencial.
Mas o rigor do esquema não transparece na leitura: A Vida Modo de Usar se deixa atravessar com deleite por qualquer leitor. Para Calvino – morto há trinta anos –, o livro de Perec talvez fosse “o último verdadeiro grande acontecimento na história do romance”. O italiano era ele próprio um oulipiano desde 1973 – seus romances mais afins à literatura potencial são O Castelo dos Destinos Cruzados, uma máquina narrativa cuja estrutura é determinada por um baralho de tarô, e Se um Viajante numa Noite de Inverno, um metarromance que enfileira uma sucessão de inícios de livro, ordenados segundo princípios combinatórios.
Com 55 anos celebrados em novembro último, o Oulipo é dos grupos literários mais longevos da França. Quarenta escritores fazem parte da confraria – os vinte que já morreram ainda são considerados membros em título integral, mas “dispensados [de praticar a literatura potencial] por motivo de óbito”. Há também integrantes que já não produzem mais ou que se afastaram da modalidade. “Somos cerca de quinze em atividade”, estimou Paul Fournel numa conversa nos bastidores do auditório, após a leitura pública na Biblioteca Nacional.
O grupo é bastante seleto – a admissão de novos participantes se dá apenas por convite, conforme explicou Fournel, presidente do coletivo desde 2003. Que ninguém se arvore a lançar a própria candidatura. “Quem pedir para entrar no Oulipo não entrará nunca. É uma regra de ouro.” Fournel contou que, além das leituras públicas das quintas-feiras, a associação realiza regularmente, desde 1960, um encontro mensal restrito aos membros. “Nunca pulamos um mês”, afirmou, satisfeito. A reunião em geral acontece na casa de um oulipiano, em torno de uma refeição – a daquele mês ocorrera dois dias antes no apartamento do escritor e quadrinista Etienne Lécroart.
Desde sua criação, as atividades do grupo têm gerado uma profusão de registros documentais, incluindo estatutos, atas de reuniões e comunicados internos, sem contar as centenas de publicações coletivas e individuais de seus membros – pelas contas de Fournel, só em 2014 foram 39 livros.
Camille Bloomfield, uma estudiosa franco-britânica da literatura potencial, teve acesso aos arquivos do grupo na pesquisa para sua tese de doutorado – um volume de quase 1 300 páginas, dedicado a traçar a história e a sociologia do Oulipo. Aos 33 anos, Bloomfield é pesquisadora da Universidade Paris 13 e continua a trabalhar com o arquivo, agora num projeto de digitalização do material. Recentemente, foram disponibilizados na internet os documentos referentes aos primeiros trinta anos de atividade do grupo, num total aproximado de 25 mil imagens.
Numa conversa por Skype – que seu gato insistia em interromper em busca de atenção –, Bloomfield disse que os procedimentos do Oulipo seguem alinhados com seus princípios fundadores: o que mudou foram os integrantes. “Sobrou um único membro fundador” – Jacques Duchateau, nascido em 1924. Segundo a pesquisadora, o grupo envelheceu bem “na medida em que conseguiu se apropriar das contribuições das duas primeiras gerações, de Queneau e Perec, e renovar algumas práticas”. Bloomfield citou como exemplo desse processo a imposição de restrições sobre os procedimentos de escrita, a busca de diálogos com a arte contemporânea e a atualização das referências do grupo, um processo que ela chamou de “renovação dos ancestrais”.
A novidade mais recente no coletivo foi admitir, em 2014, autores hispanófonos – o argentino radicado em Paris Eduardo Berti e o espanhol Pablo Martín Sánchez. Bloomfield contou que teve acesso a uma reunião fechada do grupo – deferência estendida a poucos. No encontro, o primeiro ao qual Pablo Martín Sánchez comparecia, a acadêmica se surpreendeu com a naturalidade de suas intervenções. “Ele apresentou trabalhos, foi aclamado, participou das propostas dos outros”, contou. “Parecia estar no grupo desde sempre.”
A estudiosa identifica um interesse maior do público pelo Oulipo desde seu cinquentenário, em 2010. Uma antologia recém-publicada, a audiência crescente dos programas de rádio e das leituras públicas, além do sucesso de uma exposição sobre o movimento (realizada na Biblioteca Nacional na virada de 2014 para 2015), seriam alguns indicadores desse fenômeno. “Há uma onda em torno do grupo”, afirmou.
No Brasil, a moda do Oulipo pode ser aferida pelo interesse de editores e tradutores. Com o lançamento de O Sumiço no final de janeiro, o português se tornou o 12º idioma a ter uma versão para La Disparition. A tradução publicada pela editora Autêntica é assinada por Zéfere – nom de plume do mineiro José Roberto Andrade Féres, estudioso da literatura potencial. Sua foto de perfil no Facebook o mostra calvo e de barbicha, olhando para a câmera, como se fosse o próprio Perec.
Féres fez uma escolha polêmica. A opção intuitiva para a versão em português seria provavelmente restringir o uso do A – a letra mais frequente do idioma, a vogal do feminino, sem a qual não há pai nem mãe. Essa foi a decisão adotada pelos tradutores do romance para o espanhol, El Secuestro, que o brasileiro admira com ressalvas. “A tradução perdeu toda a ligação com o E, que é a letra do nome do autor, e Perec cria toda uma rede simbólica em torno dela”, disse Féres, falando de Salvador, onde faz seu doutorado na Universidade Federal da Bahia. O papel simbólico do E na obra de Perec pareceu ao tradutor brasileiro demasiado importante para ser negligenciado. Féres alegou em seu favor a taxa de ocorrência das duas principais vogais em nosso idioma: a frequência do A é da ordem de 14%, e a do E, de 12%, com pequenas variações dependendo da fonte do dado. “A diferença me pareceu insignificante se comparada à simbologia do E na obra do Perec”, disse o tradutor. “Preferi tirar o E.”
Opção diferente fez o gaúcho Vinicius Carneiro, que incluiu a tradução de cinco dos 26 capítulos de La Disparition em sua tese de doutorado sobre o romance (ele verteu outros nove, não publicados). O caminho natural, para ele, foi cortar o A. “Perec subtraiu a letra mais usual do idioma”, explicou Carneiro. “É como se tirasse um elemento essencial do universo linguístico. Temos que fazer esse jogo em português: eliminar a letra fundamental, primordial. Seria, no caso, o A”, alegou.
No meio do processo, o gaúcho soube que os direitos da obra já haviam sido negociados. Mesmo assim, Carneiro pretende concluir o trabalho e depositar sua versão na Associação Georges Perec, em Paris, que reúne outras traduções não publicadas do romance, disponíveis para consulta (só para o inglês existem três além da oficial, A Void). Carneiro considera complementares sua tradução em progresso e a de Féres – a coexistência de ambas beneficiaria a compreensão da obra. Que os dois tenham escolhido pontos de partida diferentes torna a comparação especialmente interessante.
O Oulipo nunca teve um membro lusófono. Alguns brasileiros flertaram com a escrita restritiva e com a aplicação de princípios matemáticos à criação literária, mas não a ponto de reivindicar qualquer filiação oulipiana. “Talvez chegue a hora”, desconversou Paul Fournel, quando toquei no assunto.
Numa conversa em Paraty durante a Flip de 2015, perguntei a Jacques Fux, o especialista brasileiro em literatura potencial, quais de nossos escritores mais se aproximariam do grupo. Ele citou Osman Lins, de Avalovara, romance de 1973 cuja narrativa é determinada por um recurso matemático conhecido como quadrado mágico, da mesma família do adotado por Perec em A Vida Modo de Usar. Lembrou-se também de O Movimento Pendular, de 2006, de Alberto Mussa, que relata uma sucessão de casos de adultério cujo encadeamento é definido por análise combinatória. Evocou ainda Ribamar, de José Castello – um romance em que a estrutura em capítulos e a extensão dos mesmos são determinadas por uma partitura musical. O próprio Fux disse ter se submetido a restrições na composição dos dois romances que lançou – Antiterapias, de 2013, e Brochadas, do ano passado. Em ambos, as regras (não reveladas aos leitores) obrigavam-no a citar ou reencenar passagens de grandes obras da literatura.
Afora esses exemplos, será sempre possível encontrar na internet exercícios bissextos em português, feitos por diletantes. É o caso da Pentalogia Monovocálica, um conjunto de contos em que só é permitido usar uma única vogal. “A bacanal”, escrito apenas com a vogal A, foi o primeiro deles a vir a público, numa edição da Playboy de 2000. Trata-se do relato de uma orgia entre amigos, que descamba para uma briga generalizada, motivada por um dinheiro inesperado que surge durante a sessão de sexo grupal. Sob o pseudônimo Samantha Las Casas, um grupo de amigos (dentre os quais me incluo, junto com a poeta Ana Martins Marques, o editor Paulo Werneck e outros) o escreveu num feriado prolongado. Naqueles tempos anteriores às redes sociais, compartilhamos o conto por e-mail. O publicitário (mais tarde convertido em neurocientista) Cristiano Simões, provocado pelo exercício, respondeu na semana seguinte com “Belém derrete” – uma história de traição e vingança assinada por Jeff Menezes e na qual o E é a única vogal autorizada. O terceiro conto da série, somente com a vogal O – outra produção coletiva –, foi “Nos ovos do Colombo”, uma história de sexo, drogas e crime organizado, ambientada no SoHo, em Nova York, e assinada por Ron Fox. Os três contos saíram na revista Ácaro, criada e extinta na década passada. A Pentalogia Monovocálica segue inacabada: embora os autores tenham compilado um punhado de frases para compor Inibir Ingrid, os contos só com I e U nunca foram escritos.
Na Quinta-Feira dedicada ao roubo, além de ler “O tradutor cleptomaníaco”, Jacques Jouet apresentou ao público textos de sua lavra – ou quase. “Escrevo de vez em quando poemas de bandido”, explicou. “São versos geralmente roubados de um texto em prosa. Não se muda nada do original, que é apenas disposto de forma versificada, muitas vezes com versos livres, de forma que não é um trabalho considerável”, completou. O francês leu um poema roubado de um romance de 1860 da escritora George Sand, e outro surrupiado de uma carta que um tenente no front enviou à família.
O que mais divertiu a plateia foi uma série de poemas pinçados de um manual de agronomia do século xix, que tratava do combate à praga de um parasita das videiras conhecido popularmente como “escritor” (porque o padrão irregular das folhas atacadas pelo pequeno inseto às vezes lembrava o desenho de letras). Na rubrica “Traços e costumes do escritor”, Jouet leu que
O escritor no estado de inseto perfeito
é rústico; não teme
o calor ou a chuva.
Sofre
várias transformações no curso de sua existência.
Mais adiante, acrescentou:
O escritor em estado perfeito
cai no chão com grande facilidade
se for tocado, ou se
alguém for em sua direção.
Nesse caso ele se contrai,
aproxima as patas do corpo
e se finge de morto.
—
Versão reduzida do texto publicado em março de 2016.
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