ILUSTRAÇÃO: ANDREW MAC_2014_@SCOTINDCONV
Rebeldes e reverentes
O que move os defensores da independência escocesa
Alan Bissett | Edição 96, Setembro 2014
No dia 18 de setembro a Escócia, pequeno país do norte da Europa, vai tomar uma das decisões mais importantes da sua longa história: tornar-se ou não uma nação independente. Em 1707, os Parlamentos da Escócia e da Inglaterra se uniram, formando o Reino Unido da Grã-Bretanha, ato que enriqueceu os comerciantes escoceses, mas colocou o país sob o controle de Londres. A população escocesa, que durante 400 anos havia defendido sua soberania contra os ingleses, era tão oposta a essa União que houve tumultos nas ruas. Desde então, a ideia de um referendo sobre a autodeterminação foi uma fantasia alimentada nas profundezas do imaginário nacional.
É verdade que o Parlamento da Escócia foi restaurado em 1998; mas as políticas do país em relação a economia, defesa, assistência social, imigração, relações exteriores, direitos trabalhistas, comunicação, comércio, indústria e energia continuam sendo ditadas pelo Parlamento britânico. O Parlamento escocês tem poder para determinar a destinação de apenas 7% do que os escoceses pagam em impostos. O que impulsiona o movimento de independência é o sentimento de um projeto inacabado. Nos últimos três anos, o Não à independência vinha tendo uma vantagem confortável nas pesquisas de opinião, mas os números mais recentes mostram um avanço do Sim e indicam uma votação apertada.
A Escócia tem 5,2 milhões de habitantes, 8,2% da população do Reino Unido, mas a independência seria um evento de proporções sísmicas. Juntos, quatro países – Escócia, Inglaterra, Gales e Irlanda (da qual hoje apenas a Irlanda do Norte é parte do Reino Unido) – formaram o Império Britânico, que no seu auge, em 1922, dominava um quarto da população mundial. Muitos unionistas gostam de se referir à Grã-Bretanha como a parceria entre nações mais bem-sucedida da história. Para os partidários do Sim, contudo, o casamento é unilateral: comandado a partir de Londres, para o benefício da rica região do sudeste da Inglaterra e das classes altas. Se a Escócia sair da União – retirando, de um só golpe, um terço da massa terrestre do Reino Unido, a sede de suas armas nucleares e a parte do leão das suas receitas de petróleo –, isso seria um grande golpe para o prestígio internacional da Grã-Bretanha.
Para acalmar os mercados, o Tesouro britânico assumiu a responsabilidade por toda a dívida nacional de 1,2 trilhão de libras esterlinas, ou 4,45 trilhões de reais, o que significa que a saída da Escócia poderia deixar esse passivo para o Reino Unido (apesar de Londres questionar isso, dizendo que os mesmos mercados considerariam o novo país em moratória). A Grã-Bretanha, cuja autoimagem foi formada pela conquista colonial, sucesso fiscal e poderio militar, já foi ferida pelo fracasso das guerras do Iraque e do Afeganistão e pela crise financeira de 2008. Não surpreende que todos os que acreditam num papel dominante do Reino Unido no mundo queiram manter a União como um emblema de força.
Desde que o referendo foi anunciado, em 2011, as campanhas do Sim e do Não trouxeram à tona duas Escócias opostas e quase totalmente incapazes de compreender uma à outra. Amizades e relações familiares são postas à prova. Minha família, por exemplo, que em sua maioria votará Sim, foi chamada de “traidora” pelo meu tio partidário do Não, que serviu no Exército britânico. Ele fala brincando (acho), mas sua lealdade à rainha e à União é verdadeira. Parentes na Inglaterra não conseguem entender nossos motivos. Quando tentei explicar à minha afilhada inglesa, ela disse: “Mas nós somos um só povo e um só país.”
Os partidários do Não, de modo geral, cultivam uma identidade britânica e veem os defensores do Sim como separatistas, que querem dividir uma família de nações em nome de objetivos estreitos, nacionalistas. Eles duvidam dos supostos benefícios econômicos de uma nova Escócia, preferindo a “segurança” conhecida do Reino Unido à incógnita da independência. Por essa razão, a campanha do Não, intitulada “Melhor Juntos”, identifica as pessoas avessas ao risco como seu alvo principal, e trata de bombardeá-las com perguntas sobre as incertezas da independência – a manutenção ou não da libra como moeda, a permanência automática ou não do país na União Europeia e na Otan, a aliança militar ocidental.
A campanha do Sim acredita estar do lado da justiça social e do progresso. Para seus integrantes, o Reino Unido está fraturado pela desigualdade e elitismo. Caracterizam o Não como um voto de medo, cinismo e resignação, e a si mesmos como agentes da esperança e da imaginação. A Campanha Independência Radical, a ala mais à esquerda do movimento, busca mobilizar os trabalhadores e as minorias, que se sentem alienados pelo capitalismo britânico. A campanha do Não, dizem os partidários do Sim, é financiada e gerida por milionários, por grandes empresas, pela aristocracia rural e pelo Partido Conservador, tipificados por Ian Taylor, da trader de petróleo Vitol. Acusado de sonegação de impostos, Taylor doou mais de 500 mil libras (ou 1,85 milhão de reais) para a “Melhor Juntos”.
Isso nos leva a duas teorias diferentes sobre a verdadeira natureza do debate sobre a independência: a primeira diz que se trata de uma batalha entre dois nacionalismos, o escocês e o inglês; a segunda, que é um conflito de classes disfarçado.
É verdade que o maior partido pró-independência, o Partido Nacional Escocês, ou SNP, na sigla em inglês, tem caráter “nacionalista”, já que a criação de um novo Estado escocês é o seu objetivo desde que foi formado, em 1934. De fato, foi a segunda vitória consecutiva do SNP nas eleições para o Parlamento escocês, em 2011, que abriu caminho para a convocação do referendo. No entanto, há muita gente no movimento do Sim que não se considera nacionalista – entre eles verdes, socialistas, feministas e artistas –, mas são chamados assim pelos oponentes porque o termo “nacionalista” evoca a Alemanha nazista ou a Guerra dos Bálcãs. Figuras importantes da campanha do Não, como seu líder Alistair Darling, do Partido Trabalhista, sugeriram que o Sim representa um nacionalismo retrógrado, de “sangue e solo”. A escritora J. K. Rowling, que apoia o Não, comparou alguns defensores do Sim aos “Comensais da Morte”, criaturas monstruosas da sua série Harry Potter.
Na verdade, o SNP – cujo líder, Alex Salmond, comanda a campanha do Sim – é um partido de centro-esquerda, a favor da imigração e da diversidade étnica, que se opôs à invasão do Iraque. Sua posição é a de que todos os residentes na Escócia devem ser tratados como escoceses, seja qual for a sua origem. Isso significa que as pessoas nascidas na Escócia, mas que vivem no exterior, não votarão, enquanto quem nasceu fora e vive aqui terá esse direito. É difícil equiparar isso a um nacionalismo de “sangue e solo”.
Em contraste, o Partido pela Independência do Reino Unido, Ukip, que tem uma posição antieuropeia e anti-imigrantista, emergiu como uma força importante na política britânica ao vencer as eleições de maio para o Parlamento Europeu. Isso levou o governante Partido Conservador a prometer um referendo sobre a saída da União Europeia em 2017. Os escoceses não querem saber dessas tendências. Enquanto o Ukip recebeu 27,5% dos votos no Reino Unido como um todo, na Escócia sua votação foi de 10,4%.
A oposição entre o Sim e o Não também é marcada por uma divisão ideológica. Os simpatizantes do Não são majoritariamente de direita, enquanto os do Sim tendem à esquerda. A campanha do Sim tornou a pobreza e a desigualdade seus temas centrais; o movimento adquiriu um sabor de radicalismo, e tem recebido apoio de intelectuais como Noam Chomsky e Tariq Ali.
Não há mais nenhum partido substancialmente de esquerda no Reino Unido. Os governos dos trabalhistas Tony Blair (1997–2007) e Gordon Brown (2007–10) tomaram emprestado o manto de Margaret Thatcher (a quem os escoceses desprezavam) e deixaram um forte sentimento de desencanto. Na Escócia, o SNP acabou ocupando o espaço deixado aberto pelo Partido Trabalhista, que historicamente sempre fora o favorito no país. Isso reforçou a opção de muitos escoceses pela independência.
O papel dos dirigentes do Partido Trabalhista no debate sobre a independência é difícil de entender. Estão em campanha ao lado dos seus inimigos históricos do Partido Conservador para negar a autonomia à Escócia. Mesmo assim, o trabalhismo já atacou o SNP (na retórica, se não em atos) com argumentos de esquerda, afirmando que o caminho para a justiça social não é a separação, mas uma classe trabalhadora britânica unida.
O movimento do Sim, por sua vez, vê essa estratégia como fracassada: “estar juntos” só conduziu a choques econômicos, desigualdade, austeridade, queda no nível de vida, salários estagnados, leis antissindicalistas, privatizações e a um arraigado sistema de privilégios para os que nascem ricos. Depois de 300 anos de União, a esquerda britânica nunca esteve tão fraca. Uma Escócia independente, promete a campanha do Sim, iria redistribuir a riqueza, abolir as armas nucleares, adotar uma política externa ética e proteger o Serviço Nacional de Saúde; seria uma inspiração para o restante do Reino Unido, desafiando a inércia da política britânica.
Os defensores do Sim acreditam ter à vista um modelo viável. Há muito o SNP observa a Escandinávia, onde o fosso entre ricos e pobres é menor, e o nível de vida mais elevado. A Noruega descobriu petróleo em seu mar territorial na mesma época em que a Escócia, nos anos 70, e o utilizou para investir no setor público. Hoje é um dos países mais estáveis do mundo economicamente. Tem um enorme fundo constituído pelas receitas do petróleo.
Isso pode ser comparado ao que aconteceu na Escócia: nos anos 70 os conservadores e trabalhistas em Londres conspiraram para esconder o Relatório McCrone, o qual constatou que, se a Escócia se tornasse independente e viesse a nacionalizar sua indústria petrolífera, ela se tornaria uma das nações mais ricas do mundo. O ex-ministro das Finanças Denis Healey reconheceu recentemente que Londres mentiu para a Escócia sobre a extensão das suas reservas. A partir daí a história fica ainda mais sórdida: o governo de Margaret Thatcher (1979–90), que os escoceses rejeitaram nas urnas, mas os ingleses levaram ao poder, utilizou as receitas do petróleo escocês – hoje de 8,4 bilhões de libras esterlinas por ano, ou 31 bilhões de reais – para subsidiar cortes de impostos para os ricos e pagar o aumento de gastos com assistência social decorrente do seu programa de desindustrialização.
Esse programa prejudicou a Escócia, país manufatureiro por excelência, dizimando nossas indústrias – aço, carvão, alumínio, automóveis. Desde então a Escócia sofre com bolsões de pobreza, desemprego, alcoolismo, dependência de drogas e problemas de saúde. Em 1997, o secretário do Tesouro britânico foi obrigado a reconhecer que desde a descoberta do petróleo a contribuição da Escócia para o Reino Unido havia sido maior do que ela recebeu – uma diferença de 27 bilhões de libras (100 bilhões de reais hoje).
As campanhas do Sim e do Não duelaram sobre o tamanho das reservas que restam no mar do Norte. O governo escocês as estimou em 24 bilhões de barris, enquanto o magnata da indústria sir Ian Wood afirma que o número está mais próximo de 16 bilhões. O SNP promete usar o petróleo para financiar uma revolução verde, explorando a energia dos ventos e das marés. Enquanto isso, o governo do Reino Unido acaba de abrir vastas áreas da Escócia para a exploração de gás de xisto, criticada por ambientalistas. A campanha do Sim rejeita o capitalismo ao estilo americano adotado desde Thatcher em favor do modelo nórdico de responsabilidade coletiva. Que o Partido Trabalhista, o chamado “partido do povo”, rejeite esse modelo é incompreensível para muitos partidários do Sim.
De fato, a “esquerda” que defende a União acabou enfrentando um amplo movimento popular. Pessoas há muito tempo alienadas da política – porque os partidos tradicionais as abandonaram – estão agora lotando centros comunitários e igrejas, com fome de ideias radicais sobre como transformar seu país. A antiga tradição das deliberações públicas foi revivida, depois de décadas de apatia dos cidadãos.
A campanha pela independência despertou algo há muito enterrado na psique escocesa: o desejo de fazer uma traquinagem. Um lado rebelde ressurgiu no povo escocês, apesar da firme oposição dos eleitores do Não. Esses dois aspectos concorrentes do caráter escocês – um desafiador e revolucionário, o outro leal e respeitoso – estão agora bem visíveis na escolha binária oferecida pelo referendo; mas sempre coexistiram ao longo da história escocesa, numa tensão irreconciliável. A Escócia sempre se definiu pela medida com que desafiou as ambições da Inglaterra, ou cooperou com elas.
O mito fundador da nacionalidade escocesa são as Guerras da Independência de 1296 a 1357, quando os escoceses foram repetidas vezes invadidos e colonizados pelos ingleses. Esse período é mais conhecido no exterior pelo filme de 1995 Coração Valente, de Mel Gibson (aliás, baseado num texto que também é controverso na Escócia). Antes desses conflitos, Escócia e Inglaterra tinham relações relativamente pacíficas, até que o rei inglês Eduardo I – que ficou conhecido como “o Martelo dos Escoceses” – começou a olhar com ambição para o norte depois da morte em 1290 da rainha infanta escocesa Margarida I.
Havia treze candidatos ao trono, criando uma situação de guerra civil iminente, e Eduardo I foi chamado pelos escoceses para arbitrar a disputa. Ele se aproveitou da situação, decretando que o escolhido deveria lhe jurar lealdade. Quando John Baliol ascendeu ao trono, a Escócia se tornou na prática uma possessão inglesa. Ao descobrir que rebeldes escoceses planejavam desafiá-lo, Eduardo I ordenou o saque da cidade de Berwick em 1296, o que deu início a um longo período de guerra entre as duas nações. O conflito terminou sessenta anos depois, com o Tratado de Berwick, pelo qual os ingleses concordaram em reconhecer a integridade da Coroa escocesa.
Naquele período emergiu o que entendemos hoje por alma escocesa. A nação conquistou suas mais célebres vitórias militares – a Batalha da Ponte Stirling (1297) e a Batalha de Bannockburn (1314) – contra todas as previsões, e os heróis dessas batalhas, William Wallace e Robert Bruce, são reverenciados até hoje. A Declaração de Arbroath, escrita em 1320, fez esta poderosa afirmação:
… pois enquanto uma centena de nós continuarem com vida, jamais, sob quaisquer condições, seremos subjugados pelo domínio inglês. É, na verdade, não pela glória, nem pela riqueza, nem pelas honras que estamos lutando, mas sim pela liberdade – apenas por isso, algo que nenhum homem honesto abandona se não com a própria vida.
O clero escocês, que lutava para manter sua Igreja livre do controle inglês, concordou em apoiar a aspiração de Robert Bruce ao trono desde que ele se comprometesse a lutar pela independência. Com isso, o objetivo da Coroa deixou de ser o poder pelo poder para se tornar a defesa do reino. Uma ideia foi forjada na insurreição: se o rei não cumprisse o dever de proteger seus súditos, estes tinham o direito de substituí-lo. No contexto da Europa medieval, isso era nada menos que revolucionário, criando as fundações para uma tendência política de esquerda que prevalece até hoje na Escócia.
Os monarcas ingleses, ao contrário, tinham na época poder absoluto, o que talvez explique por que a pompa e a circunstância da família real continuem hipnotizando os ingleses mais que os escoceses (ainda assim, a proposta da campanha do Sim é manter a monarquia, com a rainha Elizabeth II como chefe de Estado, a exemplo do que acontece em países da Comunidade Britânica, como o Canadá).
A mitologia das Guerras da Independência plantou uma semente de teimosia que voltou a florescer no debate sobre o referendo. Também é por isso que o Ato de União de 1707, quando a autonomia escocesa foi novamente perdida, ainda é uma ferroada na alma nacionalista.
O Ato de União é provavelmente o momento mais controvertido de toda a história da Escócia, sujeito a várias leituras. A linha unionista é a seguinte: a Escócia fora levada à falência pelo Plano Darien, uma tentativa de criar uma colônia escocesa no istmo do Panamá, na década de 1690, que fracassou devido à má sorte e ao mau planejamento. A Inglaterra ofereceu ajuda, compensando os escoceses por seus prejuízos e abrindo para eles, generosamente, suas rotas mercantes, desde que o país concordasse com uma fusão. A Escócia, empobrecida, concordou com gratidão. A criação deste novo Estado britânico pôs fim ao conflito entre os dois países e permitiu que ambos florescessem como um império.
A leitura nacionalista adota uma interpretação um tanto diferente: sem conseguir subjugar militarmente os escoceses durante 400 anos, a Inglaterra usou a política no lugar das armas. Para poder realizar suas ambições de expansão colonial, numa época em que as potências europeias competiam pelo “Novo Mundo”, a Inglaterra precisava controlar sua vizinha do norte e acabar com a instável aliança que havia entre a Escócia e a França. Ao negar aos escoceses o acesso às rotas do comércio, obrigou a Escócia a tentar fundar sua própria colônia, que fracassou em parte por causa da intransigência dos ingleses, que se aproveitaram desse fracasso. Ofereceram a União, mas não sem subornos, sanções e a ameaça velada de força militar. O acordo foi assinado sem a anuência da população escocesa; para ela, o tratado significava a dissolução do seu Parlamento e a ampliação do Parlamento inglês. Recentemente, o governo britânico divulgou um parecer que encomendou a dois juristas: segundo eles, a Escócia foi “extinta” pelo Ato de União. A União, em outras palavras, foi uma aquisição hostil, um casamento forçado.
Essa perda da soberania paira como um fantasma sobre a psique nacionalista. Em 1791, Robert Burns escreveu o famoso poema “A parcel of rogues” (“Bando de patifes”), vituperando contra os nobres escoceses que foram “comprados e vendidos pelo ouro inglês”. O Ato de União está hoje em primeiro lugar na lista das grandes tragédias da Escócia, que inclui a traição, tortura e execução de William Wallace pelos ingleses em 1305; a decapitação de Maria, rainha da Escócia, por sua prima inglesa, a rainha Elizabeth, em 1587; a absorção da Coroa escocesa pela Coroa inglesa, em 1603; e a derrota na Batalha de Culloden, em 1745, dos rebeldes jacobitas, que lutavam para devolver o trono britânico à Casa de Stuart, de origem escocesa. Por considerar que as Terras Altas eram um reduto dos jacobitas, os britânicos desmantelaram o antigo sistema de clãs ali vigente e proibiram a língua gaélica. Isso levou, em última instância, ao episódio do fim do século XVIII em que os camponeses das Terras Altas foram expulsos em massa pelos proprietários rurais para dar lugar à criação de carneiros.
Esse catálogo de derrotas, porém, é apenas uma parte da história, considerando que numerosos escoceses se beneficiaram muito do Império Britânico. Foram super-representados na administração e no sistema educacional nas colônias. Glasgow se tornou “a segunda cidade do império”, graças à construção naval e ao comércio do tabaco. Até hoje há áreas de Barbados e da Nova Zelândia conhecidas como “Pequena Escócia”. Se isso significa que as canções de Robert Burns e os romances de Robert Louis Stevenson são conhecidos no mundo todo, e que há uma enorme diáspora mundial que sente afinidade com sua pequena pátria, não há como fugir do lado negro de algumas ações do país.
Escoceses eram donos e administradores de plantações de tabaco e açúcar no Caribe e nos Estados Unidos, que funcionavam com a mão de obra de escravos africanos. Imigrantes escoceses e irlandeses formaram a Ku Klux Klan, e ajudaram a expulsar os índios americanos e os aborígines australianos das suas terras. Embora seja importante notar que muitos operários escoceses brancos moravam em favelas naquela época, ou foram despachados para o além-mar no esquema de escravidão por dívida, também não há como negar que boa parte da riqueza da Escócia se acumulou, direta ou indiretamente, graças ao comércio de africanos. É esse o cálice envenenado do Império Britânico, transbordante de riquezas e também de culpa.
O efeito de atração e repulsa observado em toda a história da Escócia – entre o culto do poder e o desafio a ele – ressurgiu sob a forma do Não e do Sim. A influência do Império Britânico na alma escocesa pode ser detectada nas constantes referências da campanha do Não ao “palco mundial”, no qual eles sentem que a Escócia tem influência maior do que o seu peso real graças ao Reino Unido.
Seria tolice negar esse traço do caráter escocês, dado que os turistas acorrem todo mês de agosto para assistir ao Edinburgh Military Tattoo, uma homenagem barulhenta e agressiva às glórias coloniais da Escócia. É também por isso que os aristocratas que possuem vastas propriedades nas Terras Altas estão votando no Não. Ao mesmo tempo, muitos trabalhadores hesitam em votar Sim, temendo as visões apocalípticas alardeadas pela campanha do Não – a Escócia não poderia manter o pagamento das aposentadorias, dizem, e sua indústria naval acabaria. Lorde George Robertson, um trabalhista, afirmou que a independência escocesa teria um efeito global “cataclísmico” e representaria a vitória das “forças do obscurantismo”. A campanha do Não explora o medo que os escoceses sentem. Se o Não vencer, será por causa do mesmo falso sentimento de segurança que os levou à União.
Talvez seja por isso que a campanha do Não teve dificuldades em atrair artistas para a sua causa. Qual escritor ou cineasta que se preze deseja defender o status quo ou fantasias imperialistas? Boa parte do mundo das artes da Escócia aderiu ao Sim com fervor, incluindo os escritores Liz Lochhead, Irvine Welsh e Alasdair Gray, os atores Sean Connery e Alan Cumming, os pintores Ken Currie e Alexander Moffat, e as bandas The Proclaimers e Franz Ferdinand. O Coletivo Nacional, que reuniu os artistas pelo Sim, organizou uma excursão, o Yestival, que percorreu toda a Escócia, e tem despejado na internet um fluxo constante de ideias e vídeos. A campanha do Não, por sua vez, apresentou uma carta sincera e bem-intencionada assinada por 200 celebridades inglesas, entre elas Mick Jagger, Sting e o físico Stephen Hawking, que pediram:
Queremos que saibam o quanto valorizamos nossos laços comuns de cidadania, e expressar nossa esperança de que vocês votem para renová-los. O que nos une é muito maior do que o que nos divide.
Mas essas celebridades foram incapazes de oferecer argumentos mais profundos sobre as questões políticas em jogo, ou de reconhecer por que os escoceses estão insatisfeitos.
Os artistas escoceses que votam Sim são parte de uma longa tradição de envolvimento com a causa nacionalista representada por grandes poetas do passado, como Robert Burns, Hugh MacDiarmid e Edwin Morgan, que ajudaram a refinar e aprofundar o que a Escócia poderia ser, na falta de poder político. Como o próprio SNP reconhece, foi a cultura que manteve vivo o conceito de “Escócia” depois do Ato de União.
O movimento pró-independência também deu origem a uma nova mídia. Muitos escoceses passaram a ignorar jornais, rádios e tevês pertencentes aos grupos que se beneficiam da União. Sites como Bella Caledonia, Wings Over Scotland e Newsnet Scotland agora têm mais leitores do que alguns grandes jornais.
O que está ocorrendo na Escócia é um florescimento: o maior debate em nível nacional que o país jamais teve; uma participação em massa, sem precedentes, na democracia. Todo mundo está conversando sobre o referendo – nos bares, nos locais de trabalho, nas salas de estar, nas prefeituras, no Twitter, no Facebook. Questões como reforma agrária, energia sustentável, creches, desarmamento nuclear, salário digno e habitação social de repente estão no topo da agenda política. Há uma sensação de que, em caso de vitória do Sim, o ritmo se manteria, com muitos dispostos a se envolver na construção de uma nova nação.
Entretanto, os eleitores do Sim se preocupam com os efeitos de uma vitória do Não, mesmo que por pequena margem. Os unionistas estão contando com uma vitória do tipo tudo ou nada, já que lutaram para retirar da cédula eleitoral a opção intermediária de “autonomia máxima”, que transferiria mais poderes para a Escócia. Londres já está fazendo ameaças de limitar o poder dos deputados escoceses e fazer cortes no orçamento da Escócia, sob o pretexto de dar ao país novos poderes de tributação.
Os ingleses, a julgar pelas últimas pesquisas de opinião, querem ver a Escócia punida pelo seu atrevimento. Se o Não vencer, a ameaça de independência – que há muito tempo é a única ficha que a Escócia tem como poder de barganha – será eliminada, ou seja, os partidos de Londres podem fazer com a Escócia o que quiserem, sem medo das consequências.
O mais extremo deles, o Ukip, já disse o que os outros partidos apenas se atrevem a imaginar: que a consequência final da vitória do Não seria uma nova abolição do Parlamento da Escócia. Boris Johnson, o prefeito de Londres e provável futuro líder do Partido Conservador, disse que não vê nenhuma razão para recompensar os escoceses por um voto de lealdade. A maioria dos ingleses – alimentada pela propaganda da imprensa direitista – considera que os escoceses recebem subsídios demais e não são gratos por isso. O secretário de Estado para a Escócia apontado por Londres, Alistair Carmichael, disse recentemente:
Estamos nesta situação hoje em parte porque permitimos que os nacionalistas esvaziassem o papel do governo do Reino Unido na Escócia nos últimos sete anos. Da mesma forma que a Olimpíada serviu para lembrar as pessoas de sua identidade britânica, a Secretaria da Escócia ou o governo do Reino Unido têm que estar lá, lembrando as pessoas que elas têm dois governos. Depois da votação, temos que fazer o dever de casa. O governo do Reino Unido não foi suficientemente visível na Escócia, e não podemos permitir que isso continue assim no futuro.
Essas palavras parecem a de um governo disposto a relaxar o controle? Ou vêm de uma classe governante que, condicionada pela história a ver a Escócia como sua possessão, prepara medidas para garantir que nunca mais será posta nesta situação embaraçosa diante dos olhos de todo o mundo?
Os escoceses sabem que o mundo está nos observando. A independência poderia ser o catalisador para uma autonomia maior de outras partes negligenciadas do Reino Unido, como o norte da Inglaterra e a Cornualha, bem como para a independência ou mais autonomia para o País de Gales. A Escócia poderia fortalecer movimentos separatistas em toda a Europa – na Catalunha e no País Basco, na Espanha, ou em Flandres, na Bélgica. O que acontecer na Escócia no dia 18 de setembro – sem um único tiro disparado nem uma gota de sangue derramado – poderá mudar não só a Grã-Bretanha, mas o mundo todo.