O anjo caído (detalhe), de Alexandre Cabanel: a ideia de que eleitores de extrema direita defendem privilégios é politicamente ruim, pois coloca no mesmo nível quem se beneficia da ordem econômica e quem vive em situação de precariedade social CRÉDITO: O ANJO CAÍDO (DETALHE)_1847_ALEXANDRE CABANEL (1823-89)_SIGNAL PHOTOS_ALAMY_FOTOARENA
A psicologização da política e os limites do ressentimento
Recorrer à psicologia para explicar por que a extrema direita atrai seguidores só mascara a impotência em apresentarmos ações para problemas de vulnerabilidade social
Vladimir Safatle | Edição 206, Novembro 2023
Um dos fatos mais marcantes das análises sociais dos últimos anos é a profusão de conceitos psicológicos usados para descrever dinâmicas políticas. Tanto nas universidades quanto na imprensa não é difícil deparar com textos sobre política perpassados por termos como “ressentimento”, “narcisismo”, “pulsão de morte”, “emoções”, “ódio”, “ansiedade”, “paranoia”, “regressão”, “sadismo”, “sentimento de superioridade ameaçado”. Esse extenso vocabulário, usado como se desvelasse um segredo, procura indicar causas ou motivações para os desafios atuais da política, em particular a ascensão da extrema direita em várias partes do mundo.
Se nos fiarmos em tal vocabulário, parece que, para entender esse fenômeno que também assombra o Brasil, só mesmo apelando para a psicologia. Como se a adesão à extrema direita fosse resultado de reações patológicas das sociedades contra a democracia ou derivasse de processos irracionais que só podem ser compreendidos como “regressões”, sendo que a principal delas seria aquilo que normalmente se entende por “populismo”. Pois mesmo não sendo um termo propriamente psicológico, não é difícil perceber como “populismo” é atualmente utilizado para descrever pretensas regressões próprias a grupos e populações que teriam abandonado a argumentação racional para sucumbir a sistemas de crenças arcaicas, representações infantis de amparo e relações baseadas em emoções. Ou seja, tudo se passa como se descrevêssemos uma pretensa regressão psicológica de massa, e não um conjunto de ações articuladas e coerentes de questionamento político.
É preciso se perguntar, porém, se tal psicologização do campo político tem uma real força explanatória. O que realmente explicamos quando dizemos que pessoas envolvidas em ataques terroristas são impulsionadas pela pulsão de morte? Ou que políticos indiferentes às mortes da pandemia são sádicos? Ou que eleitores de Donald Trump, Jair Bolsonaro e companhia são ressentidos? Será que esses conceitos nos permitem enxergar algo que não conseguimos ver de outra forma? Ou será que acabam por ocultar o que não conseguimos (ou não queremos) entender? Estamos diante de um ganho analítico ou apenas da explicitação de certa debilidade da análise?
Recorrer a conceitos psicológicos para descrever dinâmicas políticas não é exclusividade de nossa época. A psicologia social nasceu em meados do século XIX dessa forma, analisando processos revolucionários, como a Comuna de Paris (1871) e outras insurreições populares na Europa, como decorrentes de regressões cognitivas e comportamentais. A reflexão sobre fenômenos político-sociais se apoiava na noção, hegemônica à época, de doença mental como degenerescência, como regressão a estágios anteriores ao desenvolvimento psicológico e à maturação.
Em sociedades nas quais a noção de “progresso” era o horizonte normativo fundamental, a doença e a loucura eram vistas como uma espécie de marcha a ré do desenvolvimento. Daí as associações, tão aceitas no passado, entre o “selvagem” e a criança, entre as massas políticas e o doente mental. Todos eles teriam, supunha-se, o mesmo tipo de raciocínio pré-lógico – movido mais por imagens que conceitos, por associações indevidas entre os fatos e as ideias e por projeções de suas próprias emoções no mundo. Assim, para o século XIX, a ascensão das massas à cena política (na maioria das vezes por meio de movimentos revolucionários) não era mais que a expressão violenta de formas de regressão social, similares às regressões psíquicas e cognitivas, levando as populações a agir como crianças, “selvagens” ou “loucos”.
Algo dessa concepção alcançou o século XX, que será prodigioso em recorrer a conceitos psicológicos para explicar o fascismo, o nazismo e o autoritarismo em geral, assim como os processos de segregação social. É o que vemos, por exemplo, em Psicologia de massas do fascismo (1933) de Wilhelm Reich, nos Estudos sobre a personalidade autoritária (1950), feitos por Theodor Adorno e o grupo de pesquisadores e pesquisadoras da Universidade da Califórnia em Berkeley, assim como nas obras de Erich Fromm, Georges Bataille e Bruno Bettelheim sobre o fascismo, nos trabalhos de Otto Fenichel sobre o antissemitismo, entre tantos outros. Essas ideias alcançaram até mesmo os franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, que analisaram o corpo social fascista a partir de categorias clínicas, como a paranoia, em livros como O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (1972).
Nesses casos, numa inversão de sinais em relação ao que se fez no século XIX, as associações entre violência social e regressão psicológica foram aplicadas não a processos de emancipação popular, mas a contrarrevoluções conservadoras. No entanto, essas análises não se limitam a compreender o fascismo e suas múltiplas formas de segregação como reações patológicas ao pretenso progresso social e moral promovido pela democracia liberal. Há uma proposição ainda mais inquietante em muitos dos trabalhos: eles mostram que as formas de autoritarismo, violência e segregação do fascismo faziam parte dos processos de socialização e individuação das próprias sociedades democráticas. Em outras palavras, o sujeito “normal” dessas sociedades tendia a normalizar comportamentos autoritários.
Reich, por exemplo, insistiu nos vínculos orgânicos entre personalidade e os modos de socialização próprios à família patriarcal autoritária. Tais vínculos eram ainda mais preocupantes quando lembrávamos que a referida família patriarcal autoritária era simplesmente a família normal das sociedades burguesas. Ou seja, longe de ser resultado de uma regressão, a personalidade autoritária era fruto do funcionamento normal de nossas famílias. O que já apontava o tamanho e a complexidade da questão. Analisar a psicologia das massas do fascismo não significava descrever um corpo estranho ao funcionamento padrão da sociedade, mas, sim, algo que fazia parte das relações correntes, nos obrigando a repensar, de maneira estrutural, os processos de formação da personalidade nas sociedades burguesas.
Quando tentamos entender as escolhas e os comportamentos de setores da população identificados hoje com a extrema direita, um termo vem logo à mente: ressentimento. A partir dessa ideia cada vez mais corrente, estaríamos atualmente vendo se manifestar o ressentimento da classe média contra novas formas de ascensão social, o ressentimento de patrões que perderam suas empregadas domésticas, o ressentimento de brancos contra pretos, o ressentimento sexista contra mulheres e pessoas LGBTQIA+. A maneira que o ressentimento se tornou uma espécie de explicação padrão mostra o quanto esse termo se tornou útil. Mas a questão que interessa é esta: útil exatamente para quê?
Surgiu nos últimos anos uma vasta literatura que explica o ressentimento como reação ao progresso social e às lutas por direitos no interior da democracia liberal. Um exemplo é fornecido pela cientista política americana Wendy Brown, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, que analisou as motivações que levaram amplos setores da população dos Estados Unidos a aderirem a Trump. Em seu livro Nas ruínas do neoliberalismo, podemos encontrar afirmações como:
A vingança anima o impulso de revogar todas as conquistas da era Obama, dos pactos climáticos ao acordo com o Irã, mas também o de destruir aquilo que essas políticas visavam proteger ou preservar: a Terra e suas muitas espécies, os direitos e as proteções dos vulneráveis (LGBT, mulheres, minorias), assim como a saúde dos americanos assegurada pelo Obamacare […]. Sofrimento, humilhação e ressentimento não sublimado tornam-se uma política permanente da vingança, do ataque àqueles culpados por destronar a masculinidade branca – feministas, multiculturalistas, globalistas, que tanto a destituem quanto a desdenham.
A colocação de Wendy Brown é interessante pelo que tem atualmente de muito típico: o voto dado à extrema direita é analisado como a expressão de um sentimento de vingança social. Da mesma forma, a masculinidade branca, com suas fobias, é entendida como causa fundamental do trumpismo e da insensibilidade com relação às ditas “conquistas da era Obama”. Conquistas que, parece, devem ter sido tão importantes e evidentes que só mesmo grupos com reações patológicas conseguem ignorá-las. Assim, o ressentimento aparece, na reflexão de Brown, vinculado ao sentimento de um grupo social que perdeu seus privilégios e sua posição segura – posição que, porém, se sustentava na insegurança de muitos.
Dessa forma, a explicação com base no ressentimento acaba por definir uma identidade de grupo, separando os que “não são como nós” (os ressentidos) dos eleitores progressistas e abertos às mudanças políticas, comportamentais e culturais. Essa explicação acaba por funcionar como fundamento para uma distinção moral. Pois, ao servir para traçar uma linha divisória clara entre “vingança” e “justiça” a partir de sistemas de motivações individuais, entre violência injustificada e reação justa, o ressentimento permite uma moralização extensiva do campo político.
Para entender como chegamos até aqui, vale a pena uma lembrança de ordem genealógica. O bispo anglicano Joseph Butler (1692-1752) é o autor de um dos primeiros textos sobre o ressentimento (Sermão 8: sobre o ressentimento e o perdão das injúrias). O fato de um pastor ser o primeiro a pensar sobre isso já é sinal de algo. Na visão de Butler, o ressentimento seria o oposto da raiva impulsiva, pois exprimiria o desejo de revidar uma violência recebida e injustificada. Ou seja, para ele, haveria no ressentimento uma avaliação que só seres racionais e capazes de julgamentos morais poderiam fazer, pois se trata de definir parâmetros de justiça e injustiça. Ressentimento não seria simples reação, mas um sentimento fundado no desejo que sujeitos têm de que a sociedade reconheça as violências das quais foram vítimas, injustamente. Em larga medida, é assim que o ressentimento será entendido também por Adam Smith (1723-90), em Teoria dos sentimentos morais (1759).
O que faz Wendy Brown é inverter essa lógica e sustentar que o ressentimento se manifesta em uma pessoa depois de ela ser alvo de certa forma de violência, que é justa, pois resulta da luta contra privilégios sociais baseados em opressões reiteradas. O ressentido, porém, não encara assim a violência que o atingiu – ele é um opressor incapaz de se ver como tal.
Isso explica por que a tese do ressentimento é importante. Ela assegura que são injustificadas as reações contra lutas de certos grupos sociais e ações dos governos, garantindo a superioridade moral dos que não estão alinhados com a extrema direita. E, como se trata de uma tese moral a respeito de “extremistas”, ela nos autoriza a realizar uma série de ações com relação a essas pessoas, que vão da punição legal à reeducação. Ou seja, a tese do ressentimento não afeta as estruturas sociais, nem conduz a ações nessas estruturas: é uma tese sobre o comportamento de indivíduos, o que nos leva, como todo julgamento moral, a focar as ações nos indivíduos. O foco moral faz com que o ressentido não seja visto como um sujeito com demandas sociais que merecem ser ouvidas no campo político, uma vez que ele apenas manifesta reações patológicas, que, na melhor das hipóteses, devem ser tratadas. Ou, na pior, precisam ser exorcizadas.
É interessante observar a diferença entre essa concepção de ressentimento e a do pensador mais célebre da questão, Friedrich Nietzsche. É a partir da análise crítica de nossos sentimentos morais que Nietzsche reflete sobre o ressentimento, que, para ele, é o componente fundamental da subjetividade moldada pelo cristianismo. A moralidade cristã e a repressão libidinal que ela promove só poderiam se manter vivas graças ao sentimento de vingança contra todos os outros que não se submetem ao seu sistema de regras, normas e restrições. Essa vingança se exprime na imposição do sentimento de culpa a esses outros e a tudo que em nós ainda guarda as marcas da insubmissão.
Ou seja, na cultura formada pelo cristianismo, o ressentimento é o modo de funcionamento normal dos sentimentos morais. Em nossas sociedades, sem ressentimento não há moralidade. Nós somos os ressentidos. Esse é, para Nietzsche, um julgamento que devemos aplicar a nós mesmos, como um profundo exercício de suspeita de si, de suspeita de nossa própria moralidade e da violência que internalizamos e exprimimos. Por isso, se seguirmos o caminho de Nietzsche, será impossível fazer um uso político do ressentimento, já que ele não serve para distinguir “nós” e os “outros”. Ele serve apenas para aprofundar nossa crítica sobre nós mesmos, sobre o que nos tornamos. É uma estratégia de autoinspeção, e só.
Nesse ponto, podemos nos perguntar para que serve essa leitura moral e psicológica das demandas sociais, pressuposta no uso contemporâneo da noção de ressentimento. Não se trata de negar fenômenos como a masculinidade branca, sua violência e questões afins, mas de perguntar se essa leitura é realmente capaz de explicar o comportamento político das massas. Será que o ressentimento explica o extremismo de eleitores tanto da classe baixa quanto da alta? Retomando o exemplo de Wendy Brown, será que a desconsideração pelas “conquistas da era Obama”, em vez de ser psicologizada, não deveria ser compreendida como resultado da ineficácia de tais conquistas e da sedução exercida por discursos de ruptura estrutural nesse contexto de frustração? E não será o caso de colocarmos esta questão fundamental, a saber: a frustração das classes baixas deve ser objeto de julgamento moral?
A ideia de que eleitores de extrema direita estão sempre defendendo alguma forma de privilégio é politicamente ruim, pois coloca no mesmo nível pessoas beneficiadas pela ordem econômica e pessoas em situação de extrema precariedade social. Com isso, só se amplia a nossa incapacidade para entender a natureza do sofrimento social, que alimenta a expansão da extrema direita em setores economicamente vulneráveis da população.
Outros estudos, como os do filósofo alemão Max Scheler (1874-1928), propuseram que o ressentimento decorre de expectativas de igualdade social não realizadas. Esse é um ponto também sublinhado pela psicanalista Maria Rita Kehl no livro Ressentimento, uma das análises mais ricas e significativas feitas no Brasil sobre essa questão. Kehl foi quem mais avançou na compreensão da proximidade entre o ressentimento e as formas patológicas de fixação na perda ou no dolo, que prendem o outro em exigências de reparação infinita e de vinganças imaginárias.
Ela trata nas páginas finais de seu livro de situações nas quais as pessoas, ao perceberem que são irreais as promessas de igualdade social, em vez de lutarem para a transformação das estruturas da sociedade, ressentem-se de sua situação e buscam alguma forma de compensação e reconhecimento por meio de figuras autoritárias. Elas não se voltam contra representantes de força, como militares, banqueiros e grandes industriais. Antes, procuram compensação na raiva contra aqueles que foram pretensamente dotados de “privilégios” e amparos, que, em sua concepção, lhes teriam sido negados. E então esperam de figuras autoritárias a licença para descarregar essa presunção de injustiça nos que teriam sido escolhidos no lugar delas – que, porém, estão marcados por experiências iguais de precariedade.
Esse é um bom exemplo de como o ressentimento consegue explicar certos circuitos de violência e de falta de solidariedade social, mas é importante notar que não estamos falando de causas, mas de efeitos de decisões e escolhas políticas. Por isso, não faz sentido agir politicamente sobre o ressentimento, embora seja possível agir sobre suas causas.
No ano passado, quando me candidatei a deputado federal por São Paulo pelo Psol, me chamou a atenção a colocação de um motorista de aplicativo em um de nossos trabalhos de focus group sobre comportamento de eleitores de extrema direita. Indagado sobre a razão de suas escolhas, ele disse: “Sabe por que não voto na esquerda? Porque sou homem, branco, hétero, trabalho doze horas por dia, não tenho seguro de nada, se adoecer ou se meu carro quebrar vou ter que me virar sozinho, e vocês falam comigo só como se eu fosse um opressor?”
Poderíamos entender essa fala como uma forma de racionalização de sentimentos profundos de ressentimento. Ou poderíamos entendê-la como a expressão da incapacidade real da esquerda atual em apresentar ações robustas e críveis para problemas de precarização e vulnerabilidade social. A extrema direita tem uma resposta coerente para esse problema: “Deixem cada um por si e tirem governos que atrapalham com regulações e privilégios.” Não é certo que as correntes progressistas tenham respostas para efetivamente realizar o que prometem.
Em seu mais recente livro, A angústia do precariado: trabalho e solidariedade no capitalismo racial, o sociólogo Ruy Braga apresenta o resultado de uma pesquisa feita com trabalhadores brancos de comunidades rurais na Pensilvânia que se converteram ao trumpismo. O que se depreende desse cuidadoso trabalho é uma imagem dos trabalhadores muito distinta das que circulam atualmente: precarizados e empobrecidos, eles percebem que as promessas progressistas não resultam em transformações efetivas que lhes garantam qualidade mínima de vida.
Exemplar é a história que Braga relata dos trabalhadores de uma indústria papeleira fechada por ser muito poluente e que, ao ser reaberta sob o comando de uma administração alinhada com as exigências ecológicas, viu a qualidade e a quantidade de seus empregos decair. Quando o Partido Democrata aparece na região acenando com “empregos verdes”, os trabalhadores preferem as promessas de defesa de empregos e da America first de Trump. Porque entendem que os “empregos verdes” foram apenas uma maneira de jogar os custos da transição ecológica e suas precarizações nas costas deles. A experiência que tiveram nesse sentido lhes fez avaliar que a opção trumpista lhes dava mais segurança. E aqui, mais uma vez, poderíamos perguntar: onde está o ressentimento? Ele é realmente necessário para entender o sistema de motivações que levam a adesões políticas?
Certas explicações psicológicas servem mais para esconder a impotência das políticas progressistas do que para analisar as reais motivações que levam parte dos trabalhadores e grupos precarizados a se converterem à extrema direita. Além disso, tais explicações acabam por produzir uma moralização dos conflitos sociais que personaliza focos de ação, em vez de ir às suas causas estruturais objetivas. Elas servem, no máximo, para serem aplicadas a nós mesmos, em um exercício contínuo de suspeita de si e de autoinspeção. Ou então para fortalecer um sentimento de superioridade moral e intelectual que só contribui para mascarar nossa impotência política real.
Esse conteúdo foi publicado originalmente na piauí_206 com o título “Os limites do ressentimento”.
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