Legitimado pelo tropicalismo, o modernismo passou a ser o norte de tudo; todas as tentativas de invenção daí por diante seriam quando muito atualizações de suas propostas. Fora disso, tudo era regressivo, conservador, caipira, péssimo ILUSTRAÇÃO: SÃO PAULO_TARSILA DO AMARAL_1924 PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO_AQUISIÇÃO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 1931_FOTO REPRODUÇÃO DE ROMULO FIALDINI
Reféns da modernistolatria
O mito em torno da Semana de 22 distorce a compreensão das letras brasileiras; a USP, o tropicalismo e o triunfo do mercado foram decisivos para legitimar esse equívoco histórico
Luís Augusto Fischer | Edição 80, Maio 2013
Na recente comemoração dos 90 anos da Semana de Arte Moderna, ano passado, veio a público um ótimo livro, com temperamento de reportagem histórica, bem documentado e muito bem escrito. O autor é Marcos Augusto Gonçalves e o título do trabalho – 1922: A Semana que Não Terminou (Companhia das Letras) – se compõe de duas alusões e uma grande astúcia.
As alusões são esclarecidas pelo próprio autor: uma delas, a mais importante, é ao livro de Zuenir Ventura (a quem ele chama de mestre) que fez época – 1968: O Ano que Não Terminou; a outra é ao best-seller 1822, de Laurentino Gomes. Dois autores também jornalistas, como Gonçalves, os dois com fôlego e estofo para livros de grande importância e ampla repercussão. Já a astúcia, tema do presente ensaio, só é visível se o leitor tomar boa distância do traço celebratório que o livro-reportagem carrega, ainda que de modo comedido, e que em geral cerca tudo que se refira ao modernismo, pelo menos desde 1972, quando a semana imorredoura completava seu primeiro meio século e ingressava, até agora em definitivo, para o restrito repertório dos Fatos Transcendentais da história da literatura brasileira, aliás, da cultura letrada brasileira.
Provas materiais desse ingresso e dos efeitos que ele tem causado não faltam. Dez anos atrás, em 2003 – para lembrar um bom exemplo ao qual o livro de Marcos Augusto está ligado –, vinha a público uma Caixa Modernista, organizada por Jorge Schwartz (edição em colaboração entre a Editora da USP, Editora da UFMG e Imprensa Oficial de São Paulo). O ano terminado em três terá sido apenas um retardo na produção, claro, porque a ideia era comemorar data redonda da Semana. A Caixa era mesmo uma caixa, contendo um conjunto expressivo de elementos fac-similares do modernismo paulista, “uma síntese caleidoscópica de nossas vanguardas históricas”, no dizer do organizador. Ali encontramos o programa da Semana, o primeiro número da Revista de Antropofagia, os livros Pauliceia Desvairada e Pau Brasil, e um conjunto de imagens, entre as quais, como Schwatrz alerta, estão quadros, cartazes e capas de livros que não existiam ainda em 1922, mas são de autoria de militantes modernistas e, portanto, frutos dessa árvore brotada em São Paulo. Há, ainda, um CD, produzido por José Miguel Wisnik e Cacá Machado, os dois músicos de grande interesse e acadêmicos competentes da vida letrada. O disco tem o nome aparentemente neutro: Música em Torno do Modernismo.
Mas, se o ouvinte e leitor tomar a cautela de dissipar a fumaça da festa, vai se deparar com um pequeno escândalo: no repertório gravado constam, entre faixas de Villa-Lobos (participante da Semana) e de Camargo Guarnieri (não participante, mas de algum modo conectado com a coisa toda, via São Paulo e Mário de Andrade), compositores como Ernesto Nazareth, Anacleto de Medeiros e Lamartine Babo (além de uma faixa de Darius Milhaud). A pergunta singela, que permite ler criticamente o problema, é: o que fazem na Caixa Modernista esses três brasileiros nascidos no Rio de Janeiro (e igualmente o francês Milhaud)? Estão assimilados, inequivocamente, ao espólio modernista ou, para ser redundante e preciso, ao espólio modernista paulista; mas nada, repito, nada tiveram a ver com a Semana ou com Mário de Andrade ou o que quer que seja. Nada. Então como pode?
Pode porque, depois de estabilizada como Fato Incontornável, a Semana de Arte Moderna paulista pode tudo. Inclusive acumular méritos que não lhe são próprios, como este. Nada contra pensar nos laços entre um Nazareth e o sentido renovador das vanguardas artísticas do começo do século passado; nada contra o esforço de apreciar Nazareth, Anacleto, Lamartine e quem mais seja em cotejo com inovações de outras paragens e estilos; mas tudo contra a absorção liminar deles ao modernismo paulista, ou ao entorno dele, com o qual nada tiveram, de longe ou de perto.
Voltemos: como a Semana de Arte Moderna adquiriu o estatuto de Fato Maior? Simples de dizer, complicado de demonstrar. A Semana foi protagonizada por artistas variados, com saliência para Mário de Andrade e Oswald de Andrade (com o tempo, o primeiro foi canonizado, enquanto o segundo teve seu papel diminuído). Mas é claro que eles todos expressavam, em suas invenções, birras e vontades, um sentido que hoje se pode assimilar sem dificuldade à conta do projeto de poder da elite de São Paulo, província que já se preparava nos anos 20 para dominar o cenário econômico brasileiro – o que ocorreu com clareza dos anos 50 em diante –, província que então se ressentia da força simbólica exercida pelo Rio de Janeiro, mal ou bem o centro político e intelectual do Brasil, capital federal, sede da Academia Brasileira de Letras e residência de todo escritor de prestígio até então.
Os patrocinadores da Semana, gente da dita elite, se nada tinham a ver com eventuais conteúdos esquerdizantes, muito menos com certa alma socialista de parte da vanguarda europeia, estavam sintonizados com o ímpeto mudancista nela figurado. Não custa lembrar que a mesma vanguarda acolheu uma forte corrente de direita, que desembocou no fascismo. Pouco tempo e duas derrotas políticas depois da Semana (em 1930 e 1932), a mesma elite que a patrocinara viria a criar, em 1934, a primeira universidade moderna no país, a USP, com pesquisa, formação de altos quadros e vontade de intervir no mundo, muito distante do ritmo e da ética beletrista dos cursos superiores até então existentes.
Nessa USP, direta e indiretamente, foi que ganhou carnadura o desejo de reinterpretar o Brasil a partir das demandas paulistas, em especial no campo da literatura, mas não só. Na USP, que formou várias gerações de professores dessa disciplina, Mário de Andrade virou santo de devoção obrigatória, por sólidos motivos (de fato foi um intelectual de enorme empenho no estudo do Brasil, a música em especial, sendo também o autor de um livro-síntese daquele tempo, Macunaíma, cuja superestimação estética e ideológica supera de longe, a meu juízo, sua estranha força literária). Sólidos mas, como em tudo e sempre, questionáveis motivos.
O livro de Marcos Augusto Gonçalves não é puro incenso, nada disso: tem vários méritos, entre os quais o mais relevante, repor narrativamente a cena de época com a melhor documentação e sem preconceitos, resultando num excelente Who’s Who da Semana. Mas seu sentido geral se inscreve nessa tradição de celebrá-la, confirmando-a na condição de Fato: além da centralidade absoluta e sem relativização daquela que no dizer da quarta capa foi “a semana mais polêmica do Brasil”, nada menos, seu lançamento ocorre no aniversário de 90 anos. (O que virá no centenário, daqui a pouco?) E, claro, também pelo que vai dito e aplaudido no título – que a Semana não acabou, nove décadas depois. Não acabou nos fatos? Não é para acabar? Ninguém deseja que acabe? É uma fatalidade que não tenha acabado, como a sucessão do sol e da lua?
Vale destacar uma providência do autor, que após o texto da longa reportagem apresenta um “Posfácio desinteressantíssimo”, aludindo no título ao famoso prefácio de Mário de Andrade. Salvo engano, há nele a inversão de um elo histórico de relativo ineditismo, ao menos em livro. Marcos Augusto Gonçalves reporta discretamente sua história pessoal, de jovem que, aos 20 anos de idade, tomou contato com o filme documentário de Glauber Rocha para o velório de Di Cavalcanti, rodado em 1976. Nascido em 1956, jovem universitário no miolo dos anos 70 cariocas, para ele (para nós, os da mesma geração) o modernismo dos anos 20 chegava de mãos dadas com o tropicalismo, de Caetano e Gil, Zé Celso, Júlio Bressane, Hélio Oiticica e outros. Aí vem o enunciado do elo: “Oswald foi a principal projeção do movimento modernista na efervescência cultural daquele período, embora não a única. Villa-Lobos também esteve lá, nos filmes de Glauber, assim como Mário de Andrade, na tela, no palco e nos debates universitários.”
Tese que o autor não enuncia, mas que salta das entrelinhas para ser subscrita pelo presente comentário: foi o tropicalismo que validou o modernismo, que o fez entrar nas casas de família da classe média brasileira e adquirir o valor de Fato Maior. Na sincronia do cinquentenário de 22 (e não antes, nos outros aniversários, por redondos que fossem), a obra de artistas nascidos em torno de duas décadas depois da Semana (Caetano, Glauber, Gil, Zé Celso, Oiticica) colocou em circulação franca a atitude vanguardista, de colar materiais díspares, de obter força estética a partir da fricção de pedras anacrônicas entre si, o telefone e o índio, a Coca-Cola e o casamento convencional burguês, o monumento moderno e a criança sorridente, feia e morta estendendo a mão. Foi o tropicalismo que fez o modernismo entrar na casa da família média brasileira; foi Caetano cabeludo e doce, ousado e tradicional, que criou o âmbito adequado para o modernismo fazer sentido. (A visão linear do vanguardismo poderia dizer, em glória fácil: se demorou cinquenta anos para acontecer o modernismo, foi problema do público, que é conservador.)
E toda aquela novidade gritante, no plano dos enunciados artísticos, passou a ser mastigada, incansavelmente, no cotidiano escolar de todas as salas de aula Brasil afora, pelos manuais de ensino preparados já pela visão modernistocêntrica. Depoimento pessoal do autor destas linhas, que concluiu o ensino médio em 1975 e passou a ser professor de literatura em 1980: até 1975, os próceres do modernismo eram notícia rara e leitura escassíssima na escola brasileira, e os autores apareciam de mistura uns com os outros, sem diferença de tamanho, Mário, Del Picchia, Graça Aranha etc. De 1980 em diante, já havia sido consagrada a centralidade de Mário de Andrade, secundado por Oswald bem de longe, e tudo fazia parte da rotina da aula.
Fechado este abraço que a força histórica comandada por São Paulo ia dando, nada restou fora de seu alcance: o modernismo, aquele exclusivamente ligado à Semana de 22 segundo a depuração que podemos chamar, sem maior rigor, de tropicalista (que excluiu os Menotti del Picchia e os Graça Aranha do cenário), o modernismo agora era a lente certa e única para ler tudo, do começo ao fim: da formação colonial, agora ressubmetida a avaliação, até o futuro, que já tinha sido alcançado e era, então, mera decorrência do que já estaria, para sempre, previsto e mesmo desempenhado pelos mártires do novo panteão. O mundo da invenção estética brasileira passou a viver essa aporia conceitual – tudo que vale é modernista, sendo que o modernismo ao mesmo tempo já aconteceu e é a coisa mais moderna que se pode conceber –, aporia cuja figuração banal aparece nos livros escolares e na crítica trivial com a patética sequência de termos pré-modernismo>modernismo>pós-modernismo, tomados como capazes de descrever tudo que o século XX (o XXI também, claro) já produzira, produzia e viria ainda a produzir. Essa aporia foi plenamente aceita e até naturalizada: todas as tentativas de invenção, em todos os campos, daí por diante, seriam quando muito atualizações de propostas ou de ações ou de desejos já plenamente configurados ou em Mário ou em Oswald. Fora disso, tudo era regressivo, conservador, caipira, regionalista, qualquer coisa assim de péssimo.
Nisso se confirmava, sem citação direta, o argumento central do famoso ensaio de Mário nascido da conferência que fez, em forma de balanço dos vinte anos da Semana, em 1942, no Rio de Janeiro: considerando, retoricamente, que muitos críticos alegavam, naquele momento, que o movimento modernista tinha ficado incaracterístico, dada a extrema variedade das obras que haviam aparecido nos tempos recentes, Mário se valeu de um golpe verbal de extrema eficácia – declarou que isso mesmo é que era a razão de ser do modernismo. Tudo aquilo que se via era, então, modernismo, sendo que modernismo era aquilo que Mário de Andrade dizia que era: proposição fechada sobre si mesma, cobra mordendo o rabo, não para desaparecer, mas para tornar-se tudo, tornar-se o todo.
Não admira que num campo paralelo, o da preservação do patrimônio histórico, tenha ocorrido, com decidida intervenção de Mário ao lado de Rodrigo de Mello Franco e auxílio de outras figuras, como Augusto Meyer, a canonização em vida do modernismo arquitetônico. Sim, por paradoxal que seja, o modernismo na arquitetura foi tomado como patrimônio, ao lado de outro estilo, o Barroco; tudo que não fosse isso ou aquilo tendeu a ser tratado como mera velharia, sem direito a preservação. Assim, mal nascia, a obra de Niemeyer já era monumento histórico, sem passar pelo duro teste da vida, da frequentação miúda, da arguição serena e implacável do tempo. Nessas condições, um talento como o do grande arquiteto encontrou o campo aberto para realizar obra realmente maior.
Questão mais ampla, para meditação posterior: modernismo e tropicalismo passaram a ser os donos do campinho no Brasil, submetendo tudo ao Imperativo do Novo a Qualquer Custo. Tudo se mede então pelo Novo, colagens inesperadas, materiais imprevistos, abordagens inéditas, assuntos raros, tudo acompanhado por caretas e trejeitos para plateias embevecidas, já afinadas, ou plateias contrariadas, gente lamentavelmente antiga; o.k. Então, Mário sentiu-se à vontade para dizer que tudo de bom que havia era modernismo (com a preliminar de que modernismo era o que ele dizia que era), assim como, hoje, alguém – ponhamos aí o nome de Caetano Veloso – pode reivindicar que tudo que há de bom é tropicalismo (tudo aquilo que ele pensar e deliberar que seja tropicalismo).
Temos aí um fenômeno notável: artistas que são também pensadores da arte (os dois citados acima, sem dúvida) se convertem também em validadores de sua própria produção, sem qualquer necessidade de vozes que exponham o ponto de vista da recepção. E, justamente no meio desse caminho histórico, a crítica literária que funcionava em arena pública, o jornal, representando, ainda que mal, o polo da leitura, estiola e praticamente fenece, substituída pelo estudo acadêmico, que de regra circula apenas intramuros, em prosa de iniciados e publicações que pouquíssimos leem. Não aparece ninguém para opor resistência, nem para perguntar, por exemplo, se a gente não deveria desconfiar, pela esquerda, da impressionante afinidade, da irmandade profunda entre o bloco modernismo/tropicalismo e o chamado Mercado, os dois regidos pela mesma lógica do Novo a Qualquer Custo.
Em acessos de euforia, já não falta quem diga que o mundo todo virou tropicalista, os Mutantes sendo cultuados na Europa como precursores, Tom Zé jogando de mão nos Estados Unidos, Caetano escrevendo ensaio a convite do New York Times, assim como o Brasil todo já havia virado modernista. Em entrevista para a revista Azougue, em 2007, o antropólogo e pensador Eduardo Viveiros de Castro fez, ou repetiu, um trocadilho nessa linha: imaginava-se que o Brasil era o país do futuro, mas o que ocorreu foi que o futuro virou o Brasil. Por quê? É porque, de fato, o mundo se rendeu aos encantos brasileiros, como gostamos de acreditar? Porque o tropicalismo oferece uma alternativa estética de baixo custo e alto impacto, na base da mistura de materiais heterogêneos? Porque ele carrega um tanto da doçura brasileira, que é real, em contraste com a secura de outros cantos do planeta, mas também é a contraparte amena de tanta violência?
Ou, mais embaixo, é porque as iniquidades sociais, antes restritas ao Brasil e a certa América, agora se espalharam para centros urbanos que antes eram mais cuidadosos com a decência burguesa das relações republicanas? Ou é porque, como poderia dizer um discípulo de Adorno, em tom grave, pura e simplesmente o sonho socialista foi derrotado e o império da mercadoria alcançou tudo, homogeneizando o que antes era variedade, igualando os objetos, as culturas, as pessoas, sempre pelo mais baixo preço, como ocorre em todas as liquidações?
M
arcos Augusto Gonçalves encerra seu posfácio com um comentário que me parece equivocado, ou por excessivo otimismo ou, talvez, por distorção profissional: para ele, vozes críticas desde os anos 70 se levantaram contra a ascensão mitologizante da Semana, e nos 80 teria havido um questionamento sistemático da “suposta prevalência de uma perspectiva excludente, linear e triunfalista na narrativa histórica do modernismo”. De tal forma essa oposição se ergueu, diz ele, que “novos acadêmicos trataram de rediscutir algumas ‘verdades’ que foram se sedimentando ao longo do tempo, como a ideia de que a pintura anterior a 1922 não passaria de arte ‘acadêmica’ e sem interesse”.
A pergunta que pode expor o equívoco é: ocorreu tal revisão, no duro? Também em outros campos, para além da pintura? No campo dos ensaios interpretativos do Brasil, por exemplo: os modernistólatras deram chance ao merecido protagonismo de uma figura como Manoel Bonfim, digamos? Não. E na literatura, terá se passado a mesma reavaliação? Em termos práticos: os autores anteriores à Revelação Modernista puderam retomar o primeiro plano, nas descrições historiográficas correntes? Ou permaneceram, na melhor hipótese, como precursores, gente com obra meramente tentativa, cuja realização falhada só encontraria redenção, segundo a visão triunfante, na obra dos modernistas mesmos?
De fato, a hegemonia modernista não parou jamais de obstruir e mesmo obstar totalmente a leitura de parnasianos e simbolistas, realistas e naturalistas (os românticos de certa forma ficam fora da restrição, por afinidade específica com os modernistas, todos empenhados na definição do nacional, do brasileiro etc.). E o cretino termo “pré-modernismo”, até hoje de livre trânsito escolar e crítico, continua a demarcar negativamente o terreno de acesso a João do Rio, Simões Lopes Neto, Lima Barreto e tantos outros, gente de obra superior em suas particulares escolhas temáticas e formais, mas gente cuja obra padece de leituras liminarmente distorcidas. A hegemonia modernista avançou e passou a abranger tudo, tornando-se invisível, por isso mesmo, exatamente como Marx disse que ocorria com a ideologia.
A mesma pergunta pode ser feita sobre outro material, da mais alta relevância – Machado de Assis. O que diz o modernismo sobre ele? Uma resposta inicial pode ser entrevista nas leituras e preferências do modernista-mor, Mário de Andrade, que preferia José de Alencar ao genial escritor carioca. Naturalmente, há entre o santo modernista e o romancista cearense uma afinidade grande, ambos construindo, na ficção e nos comentários, interpretações nacionalistas do Brasil na base da coleta da empiria da vida física e cultural do país. É preciso considerar, de outro lado, que quando escreveu um estudo sobre Machado, por ocasião do centenário de nascimento do autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1939, Mário fazia coro com o grosso dos leitores de Machado, que até admitiam sua qualidade, mas não conseguiam entender por quê – com o detalhe de que muitos preferiam Eça de Queirós a ele, numa comparação hoje risível, mas de grande força até os anos 50.
Os que conseguiam captar algo relevante da grandeza de Machado eram poucos; entre eles estava Augusto Meyer, que, mesmo afinado com a visada modernista, soube sair da trama nacional para enxergar no romancista carioca um autor comparável a Dostoiévski. Ainda se passariam muitos anos até que essas escassas vozes conseguissem expor os motivos da superioridade do escritor, até chegarmos à situação atual, em que Machado ganhou lugar entre os maiores do século XIX ocidental, verdadeiro precursor do que de mais interessante se faria na primeira metade do século XX no mundo do romance e do conto.
Mas não se pode livrar totalmente a cara de Mário. Vanguardista militante, ele buscou a renovação das formas, aplaudiu os ousados e vaiou os conservadores. Dispunha, afinal, de lente capaz de enxergar os méritos do velho escritor. Por que em nenhum momento soube saudar algo do valor inventivo de Machado de Assis? Uma parte da resposta talvez provenha de onde Mário não gostaria: o empenho nacionalista do modernismo triunfante era superior ao empenho vanguardista.
Tivéssemos dependido desse modernismo para ler Machado, estaríamos até agora pendurados no pincel (o de José de Alencar ou o de Macunaíma). Machado, que é um grande feito artístico real, não é alcançado pela visada modernista, fato que depõe contra ela de modo inapelável. Como teoria do Brasil, o modernismo deixa essa lacuna vergonhosa. Por uma dessas ironias triviais, a permanência da leitura do grande romancista e contista dependeu dos conservadores da Academia Brasileira de Letras, dos anti e dos não modernistas. Permanência, aliás, é um termo que vale a pena manter em mente para avaliar certo estrago feito pelo modernismocentrismo; permanência, em contraste aberto com a absolutização do valor da renovação, da novidade, da invenção.
Como teoria do Brasil, não sei se será totalmente justo atribuir toda essa pretensão aos artistas de 22, se bem que em Mário parece desde sempre ter havido tal vontade, e no conjunto da obra de Oswald, da mesma forma, se verifica esse trabalho. No fim das contas, assim ocorreu – com sua entronização acadêmica, o modernismo passou a ser a régua de medição de tudo. Não é pouca coisa essa passagem: ela redefine o modo de ver a vida e a arte. Historiadores, críticos, professores, artistas, criadores, em todas as latitudes alcançadas pela escola, pelo rádio, pela televisão, todos passaram a enxergar o mundo por essa lente, com as exceções de praxe. Num processo lento, fluvial, invisível e irreversível, como é o da construção da história e da historiografia de uma cultura, o Brasil virou presa dessa visão modernista, por um lado reivindicadora da identidade nacional, por outro praticante ou postulante da vanguarda. Num país vasto, o único de língua portuguesa em toda a região e que comporta mais de 90% dos falantes nativos dessa língua no planeta – motivos que estão na base da tola autossuficiência mental que acomete regularmente o brasileiro –, está armado um cenário acachapante.
Antes dessa hegemonia havia Machado de Assis; e, no miolo do processo da instauração dela, aconteceu Guimarães Rosa. São, até agora, os dois narradores definitivos do mundo brasileiro, ambos romancistas e contistas de excelência, inventivos, ousados, profundos, amplos. Pergunta: o modernismo, como visão das coisas, alcança explicar, minimamente que seja, esses dois fenômenos? No caso de Machado está óbvio que não; no caso de Rosa, salvo impressões muito genéricas (e triviais ou mesmo equivocadas), como os que veem no Grande Sertão: Veredas uma decorrência dos experimentos joycianos, da mesma forma o modernismo não ilumina muita coisa.
O modernismo servirá para validar Mário e Oswald, assim como para considerar Drummond, Bandeira, João Cabral; mas não cabe para Machado nem para Guimarães Rosa, nem ainda para Graciliano Ramos ou Nelson Rodrigues, citando outros dois mais, entre os maiores da língua. Mas como poderá dizer algo de Machado e Rosa, quando esses dois, em seus respectivos momentos, valeram-se de formas literárias e culturais tidas como antigas, regressivas até – Machado imitando romance irônico inglês do século XVIII no momento em que o realismo era a regra atualizada para narrar, Rosa dando voz a um caipira que o tempo parecia ter já sepultado naquele 1956, época de euforia moderna no Rio e em São Paulo?
P.S.: Tinha já encerrado a argumentação deste ensaio quando li no Estado de S. Paulo (29 de março de 2013, no finado caderno Sabático) o texto “Retrato de um herói civilizador”. Já pelo título, dava para ver que a autora, Walnice Nogueira Galvão (importante professora da USP, autora de uns quantos ensaios de primeira linha), estava ali acendendo incenso. O homenageado merece, claro: é o recém-falecido Benedito Nunes. Antes de ler, acendi imaginariamente outro para me somar à cerimônia de memória, e passei ao texto. Então, pela enésima vez me deparei com a força do modernismocentrismo. Em todo o longo primeiro terço do texto, Walnice Galvão estende um fio que começa na revista Klaxon, de 1922 (precisa dizer onde foi escrita e publicada?), “marco zero”, e alcança o “bolsão cultural” de Belém, na revista Flamin’Assu, de 1927, publicação que, “embora remontando a uma boa tradição local, seria assim fruto do modernismo, mesmo que tardio”. Marco zero em São Paulo, modernismo tardio na ponta provincial: já li isso em outras partes. Benedito Nunes tem valor não porque leu Heidegger, ou porque decifrou Guimarães Rosa, ou porque foi um excelente professor, mas porque deriva do movimento paulista.
Aí eu volto ao título e o entendo de outro jeito: a autora elogia o grande Benedito Nunes porque ele, iluminado pela revelação klaxônica, mesmo tardia, levou a luz, a civilização, às grotas paraenses. Patético, mas perfeitamente afinado com a longa, vitoriosa e até agora incontrastada hegemonia do pensamento modernistólatra. A Semana, de fato, não terminou.
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