A autoria de Retrato de um Jovem passou despercebida à casa de leilões Christie’s. O quadro foi arrematado por Jan Six XI por 173 mil dólares, uma ninharia em se tratando de um Rembrandt CRÉDITO: RENÉ GERRITSEN_JAN SIX FINE ART
Rembrandt no sangue
Um aristocrata descobre quadros do mestre holandês
Russell Shorto | Edição 153, Junho 2019
Tradução de Sergio Flaksman.
A descoberta que transformou para sempre a vida de Jan Six ocorreu em novembro de 2016. Mas foi em maio de 2018 que este marchand de arte holandês de 40 anos atraiu a atenção de todo o mundo ao anunciar que havia localizado um quadro de Rembrandt sem qualquer registro até então – a primeira tela ignorada do mais reverenciado pintor holandês a vir à luz em 42 anos. O achado não ocorreu porque Six se dedicou a revirar velhas igrejas abandonadas ou vasculhar sótãos de grandes propriedades rurais na Europa, mas quando passava em revista a sua correspondência, como ele próprio me contou em Amsterdã, onde vive. Six tinha acabado de levar os dois filhos pequenos à escola (à autêntica moda holandesa, de bicicleta: o menor, acomodado perto do guidom; o outro, na garupa). Ventava e caía uma chuva fina, mas isso jamais impediria um genuíno habitante de Amsterdã de sair de bicicleta – e as raízes que Six tem fincadas na cidade não poderiam ser mais profundas. Apesar disso, ao chegar ao seu escritório, ele ainda sentia os efeitos do Waterkoud (“frio da água”, literalmente), palavra holandesa que designa a umidade gélida dos Países Baixos, que penetra, como se diz usualmente, até os ossos.
O antídoto para essa sensação é aquilo que todo holandês aspira para o interior de sua casa: gezelligheid, cuja tradução aproximada é “aconchego”. É também isso que muitas vezes evocam e celebram as telas dos antigos mestres do chamado Século de Ouro da pintura holandesa (os anos 1600), período no qual Six é especialista: cenas de calor doméstico, grupos alegres que erguem canecas de cerveja, naturezas-mortas com as mesas repletas de alimentos. O escritório de Six, no piso térreo de um edifício à beira do Herengracht, um dos principais canais da cidade – e por cujas margens o próprio Rembrandt costumava caminhar –, ostenta uma gezelligheid toda própria. A construção data dos primeiros anos do século XVII. Antigas vigas aparentes cruzam o teto. Pelas janelas se avistam ciclistas passando e a superfície evocativa e sempre escura do canal que reflete as fachadas da margem oposta encimadas por frontões triangulares.
Six preparou um café e, em seguida, sentou-se para ler a correspondência. Cuidou primeiro das contas e de outros itens mais chatos, liberando-se para poder dar atenção aos catálogos dos leilões de arte previstos para as semanas seguintes. Um deles estava marcado para dezembro, na Christie’s de Londres. Six folheou o catálogo às pressas, quase que com desdém, pois as obras seriam leiloadas no período diurno, quando são oferecidas as peças de menor importância. Quadros e esculturas de maior valor são sempre reservados para os leilões noturnos.
E, de repente, como me contou, Six ficou paralisado. Uma foto meio desbotada reproduzia o retrato de um jovem cavalheiro de aspecto um tanto espantado, ostentando uma grande gola de renda e uma cabeleira proto-Led Zeppelin. O que primeiro chamou a atenção do marchand foi o olhar do retratado (cuja identidade permanece desconhecida). “O olhar sobressai da imagem”, afirmou. Six teve a impressão de que conhecia aquela obra; mas, depois de percorrer toda a biblioteca à procura de alguma reprodução, concluiu que não era o quadro que lhe parecia familiar, mas a soma de todos os traços, reveladores de um Rembrandt da primeira fase. Entre eles, enumerou, a humanidade do olhar, uma pincelada “arredondada” e o empenho visível em empregar vários estilos de pintura na mesma obra.
O quadro datava de algum ano entre 1633 e 1635 – o que ancora essa datação é a gola de renda do retratado, feita num estilo que esteve na moda naquele curto espaço de tempo e logo foi abandonado. Six ficou especialmente animado ao ver que a Christie’s não só tinha deixado de perceber que o quadro muito provavelmente era do mestre, como havia atribuído a obra ao “círculo de Rembrandt” – ou seja, a um discípulo dele. “Você se dá conta do tamanho do erro?”, ele me perguntou. Eu ainda estava especulando sobre a resposta quando Six não conseguiu mais se conter. “Rembrandt não era famoso no início da década de 1630 e, portanto, ainda não havia um ‘círculo’ de discípulos. Na mesma hora, percebi que a Christie’s tinha feito uma bobagem.”
A partir desse momento, Six virou um cão farejador com o nariz colado num rastro. Descobriu que a proveniência do quadro remetia a sir Richard Neave, um mercador inglês do fim do século XVIII que acumulara uma considerável coleção de arte, com obras, inclusive, de Thomas Gainsborough e John Constable. Aquele quadro permanecera na mesma família por seis gerações. O que fazia todo sentido: para atrair a atenção de um colecionador de peso, a obra teria que ser mesmo de um artista de grande talento.
Agitadíssimo, Six montou na bicicleta e percorreu em pouco tempo a curta distância que separa seu escritório da casa de Ernst van de Wetering, mundialmente reconhecido como uma das maiores autoridades em Rembrandt. Ainda sem fôlego, exibiu ao especialista uma fotocópia do retrato. Van de Wetering ficou intrigado, mas, como convém a qualquer pessoa cuja opinião se atribui grande autoridade, reagiu com alguma reserva àquele primeiro contato com a imagem. “Parecia um Rembrandt, mas era um quadro que eu jamais tinha visto”, Van de Wetering me disse. Six pedalou de volta para casa e, em seguida, comprou uma passagem de avião.
Quando o marchand holandês chegou à Christie’s, em Londres, ainda havia algumas pessoas na área de exposições. Por isso, segundo ele, passou algum tempo estudando outras telas. Quando já não restava mais ninguém na sala, Six se aproximou do retrato, para poder examiná-lo e tirar fotos. “Fiquei atônito, porque o quadro tinha outra aparência”, contou. “A profundidade era muito maior.”
O que mais despertou o interesse de Six foi a renda da gola. Por todo o século XVII, o uso de peças rendadas foi um indicador de status social e, no entendimento de Six, Rembrandt tinha um modo muito próprio de pintar a variedade retratada no quadro, a chamada “renda de bilros”. Outros artistas do período compuseram as minúcias da renda de bilros aplicando tinta branca sobre o casaco. Já Rembrandt preferia fazer mais ou menos o contrário. Primeiro pintava o casaco e, em seguida, uma faixa branca em toda a área da gola; depois, com tinta preta criava os espaços negativos na estrutura desse adorno. E, enquanto outros pintores se esmeravam em elaborar padrões repetitivos na área rendada, Rembrandt preferia traçar em preto um desenho em estilo livre. Para o espectador que observa o quadro bem de perto, a gola de renda aparece como um emaranhado de hieróglifos; mas, quando ele se afasta um pouco, tudo ganha forma. Para Six, essa era uma das provas da genialidade de Rembrandt. “Ele percebeu que a cópia pintada de um padrão repetitivo, ainda que fiel ao desenho original, acabava na verdade parecendo artificial.”
Depois de deixar a sala de exposição da Christie’s, Six seguiu para uma livraria especializada em artes, para consultar o famoso A Corpus of Rembrandt Paintings, o guia mais respeitado sobre a totalidade da obra do pintor. Percorreu as obras da década de 1630, até que encontrou no livro o que buscava: o Retrato de Philips Lucasz, de 1635. O quadro original estava exposto ali perto, na National Gallery, para onde Six correu em seguida. Pouco tempo depois, estava diante da tela, comparando seus detalhes com a imagem do quadro da Christie’s capturada por sua câmera. Seu coração disparava à medida que a impressão inicial se cristalizava em quase certeza. “Tudo indicava que o mesmo pintor fizera os dois quadros”, disse.
Jan Six é um homem alto e esguio, com um porte elegante que ostenta quase com embaraço, além de uma expressão habitual no rosto que sugere o peso de um fardo singular. Esse fardo é seu nome completo: Jan Six XI. Nos últimos quatro séculos, o primogênito de praticamente toda geração dessa família da aristocracia holandesa recebeu sempre o nome de Jan. O primeiro Jan Six, um homem envolvido com arte, cultura e a política do seu tempo, era um autêntico representante do Século de Ouro holandês, quando uma verdadeira explosão criativa na arte, na ciência e no comércio pôs a diminuta nação na vanguarda da vida e do pensamento de toda a Europa. Esse primeiro Jan Six, aliás, foi na verdade amigo do grande Rembrandt van Rijn. Quando decidiu ter seu retrato pintado, em algum momento da década de 1650, pediu que Rembrandt lhe fizesse as honras. O resultado é uma das obras mais celebradas do mestre, um admirável e aprofundado estudo de uma consciência sofisticada de meia-idade, executado com as típicas pinceladas grossas e bruscas do estilo tardio de Rembrandt. O historiador Simon Schama definiu esse quadro como “o melhor retrato de todo o século XVII”.
O primeiro Jan Six acumulou uma vasta coleção de quadros, esculturas e desenhos de muitos artistas. Mas o que constitui o cerne da Coleção Six são as obras de Rembrandt. Fora o Retrato de Jan Six, avaliado atualmente, para efeito de seguro, em mais de 400 milhões de dólares, a coleção possui um retrato a óleo em tamanho natural da mãe do primeiro Jan Six, Anna Wymer, executado pelo artista, além de cinco desenhos e cinquenta gravuras originais.
À medida que a Coleção Six ia passando de geração em geração, não parou mais de crescer: incorporou obras de Vermeer, Bruegel, Rubens e Frans Hals, além de um Ticiano e um Tintoretto avulsos. Pelo caminho, um verdadeiro butim de pirata, composto de artefatos menos importantes, mas ainda assim de grande valor histórico, foi sendo acumulado em paralelo: móveis, joias, medalhas, manuscritos, armários inteiros abarrotados de pratarias, objetos de vidro veneziano, escovas de dente de cabo de marfim e, ainda, um anel de diamante presenteado a uma pessoa da família pelo czar Alexandre I. Mas a razão de ser da coleção sempre foram os quadros, e ao longo dos anos os Six se alinharam sistematicamente às preferências do fundador. Hoje, a coleção reúne pelo menos 270 retratos de membros da família.
Com o passar dos séculos, à medida que grandes coleções de arte de famílias europeias começavam a se desfazer e os museus se convertiam nos principais repositórios desses acervos, a Coleção Six, que ainda se encontra abrigada na residência da família, adquiria uma aura mística cada vez mais intensa. Em obediência à tradição, o Jan Six de cada geração torna-se o zelador ou guardião da coleção, além de residente titular da casa – uma impressionante mansão de 56 aposentos à beira do rio Amstel, em pleno coração de Amsterdã. Mas Jan Six XI, o marchand de arte, não é o Jan da vez, pelo menos por enquanto. Seu pai, Jan X – ou, como ele próprio prefere ser chamado, barão J. Six van Hillegom – é quem ocupa atualmente o trono. Aos 71 anos, Jan Six pai tem, nos círculos da alta cultura, a fama de um homem profundamente zeloso de sua privacidade (declinou da proposta de uma entrevista para esta reportagem) e também um tanto irascível. Para descrevê-lo, quase todos com quem conversei usaram o adjetivo “difícil”.
Fui apresentado a Jan Six pai nove anos atrás, quando fazia minhas pesquisas para um livro sobre a história de Amsterdã e quis conhecer por dentro a famosa residência Six. Depois de um típico almoço holandês, com sanduíches e leite, numa cozinha que parecia saída de um quadro de Vermeer – madeiras escuras, piso de lajotas, luz enviesada –, ele me conduziu num tour pela casa: uma sequência fascinante de corredores e velhos aposentos repletos dos tesouros da coleção, muitos deles de valor inestimável. Embora os salões da coleção sejam separados da área habitável, tem-se a sensação de estar ao mesmo tempo numa casa de família e num museu: depois de admirar um Frans Hals, o visitante pode se deparar com um livro aberto ao lado de um par de óculos numa mesinha de centro, ou com uma vassoura e uma pá encostadas em um canto. Minha impressão final da visita foi de um cenário tirado de um romance de Thomas Mann, com seu esplendor um tanto gasto e uma atmosfera de serenidade vetusta, aos cuidados de um velho aristocrata um tanto contrafeito.
Jan Six pai pode até ter a fama de belicoso, mas na batalha travada por ele que mais chamou a atenção da opinião pública – um arrastado processo judicial contra o governo holandês por desrespeito a um acordo de pagamento pela manutenção da residência e sede do acervo –, muitos dizem que tinha toda razão. “Um político de esquerda achou ridículo destinar todo esse dinheiro a uma família tão rica e decretou o fim do subsídio”, contou o ex-diretor do museu Mauritshuis, em Haia, Frits Duparc, que funcionou como mediador na disputa. “Mas o fato é que a família já não é mais tão rica, pois toda a coleção foi há muito transferida para uma fundação.” Um dos motivos que levaram à criação da fundação foi justamente manter as obras reunidas, evitando, assim, que saíssem do país. No passado, a família foi obrigada a vender quadros de Vermeer, além de outros tesouros holandeses, para pagar impostos atrasados.
Finalmente, em 2008, o processo se encerrou, e as partes chegaram a um acordo: a residência Six pertence à fundação, mas a família tem direitos perpétuos de moradia, e o Estado provê os recursos necessários para a sua manutenção. Em troca, a família Six precisa facultar um acesso público limitado à sua coleção.
A obsessão (como ele próprio define) de Jan Six XI com Rembrandt começou ainda na infância, a partir de seus encontros frequentes com o retrato que o mestre pintou de seu primeiro homônimo, exibido no “salão azul” da mansão da família. Six é capaz de passar horas a fio falando do artista, totalmente absorto e visivelmente arrebatado. “O que distingue Rembrandt de todos os outros é sua capacidade especial de pintar as pessoas”, diz ele. “Quando percorro um museu e me deparo com um Rembrandt, passo por ele da mesma forma que passaria por uma pessoa, olhando só com o canto do olho e pensando, ‘Meu Deus, quem é esse?’, como se me fosse alguém familiar. É sempre um ser humano, uma pessoa viva.” Em contraste, Six não tem uma visão tão lisonjeira do outro titã do Século de Ouro holandês: “Sei que muitos americanos adoram Vermeer. Pessoalmente, não gosto tanto. Tudo ali é magia: truques de óptica. Se você puser a Moça com Brinco de Pérola ao lado de qualquer Rembrandt, não tem como deixar de notar a diferença.”
Entre as muitas explicações para essa paixão das pessoas por Rembrandt que atravessa os séculos – como o volume, o alcance e a qualidade impressionantes da obra que produziu, a variedade de estilos que experimentou, a sua história de vida tão complexa –, a mais notória talvez seja sua extraordinária percepção psicológica a respeito dos retratados, o modo como essas figuras parecem revelar-se ao espectador, despertar em cada um que as contempla o interesse pelos conflitos daquele momento específico das suas vidas.
Esse foco nos indivíduos foi um dos traços que definiram todo o percurso do artista. O Século de Ouro holandês assinala o momento em que a arte se afasta dos temas estritamente religiosos; de uma hora para outra, o público começa a se interessar pela vida do dia a dia e por suas próprias vidas individuais, tendência a que muitos artistas se ajustaram. A arte do retrato transformou-se numa verdadeira indústria, porém nenhum dos pintores da época foi tão longe quanto Rembrandt. Muitos conseguiam reproduzir à perfeição a aparência de seus retratados. Mas o que tornava Rembrandt tão especial para os cidadãos de Amsterdã, que precisavam aguardar na fila para encomendar-lhe um retrato, era a impressão que dava de não se limitar à superfície da pessoa, captando também a essência dela.
A empatia deve-se tanto ao gênio de Rembrandt como à sua própria biografia. Ainda muito jovem, consagrou-se como o pintor mais célebre do seu tempo, mas, como não se sujeitava às modas passageiras, logo perdeu a condição de favorito. Gastava em excesso e acumulou enorme dívida. Perdeu a mulher pouco depois de ela dar à luz e se envolveu com a ama do filho, de quem mais tarde tentaria se livrar mantendo-a internada num asilo. Ao final desse período, foi à bancarrota; e parece ter vivido seus últimos anos na miséria, fruto de seus próprios erros. O Século de Ouro holandês desencadeou um foco inédito sobre a intimidade dos indivíduos, e Rembrandt aplicou esse escrutínio a si mesmo sem dó nem piedade. Seus autorretratos, especialmente os mais tardios, são estudos francos e implacáveis dos custos psíquicos que um homem pode infligir a si mesmo.
As paredes do estúdio de Jan Six em Amsterdã estão sempre cobertas de retratos do século XVII: obras que comprou e está estudando, ou que mandou restaurar e se prepara para vender. Quando estive com ele no verão de 2018, o quadro do catálogo da Christie’s, Retrato de um Jovem ou Retrato de um Jovem Cavalheiro, destacava-se num ponto central da parede. Six, que sempre fala em tom suave e se refere a si mesmo como um “marchand e estudioso de arte”, descreveu-me longamente as minúcias do quadro. “Adoro a luva e o punho da camisa – muito elegantes. Está vendo as pinceladas? Ele começou aqui, e foi se deslocando pouco a pouco, numa curva, para a direita. E em seguida acrescentou essas pinceladas mais largas. Depois pintou o punho, e o pouco que aparece iluminado está pintado em cor, pois Rembrandt sabe bem que em superfícies nas quais incide a luz não há linhas pretas, mas há nas que são cobertas de sombra. Usa com imensa habilidade a incidência da luz em tecidos e materiais, acompanhando sua transformação gradual em sombra.”
Enquanto eu trabalhava no meu livro sobre a história de Amsterdã, Six me convidou ao seu estúdio e conduziu uma demonstração extraordinária. Apagou todas as luzes, acendeu velas e no mesmo instante as telas se transformaram. Os dourados, os vermelhos e os tons de pele ficaram mais quentes. O tremeluzir das chamas parecia infundir vida às figuras bidimensionais. Os olhos de Six cintilaram quando notou que eu percebia aonde ele queria chegar: aqueles quadros tinham sido pintados para serem vistos à luz de velas.
Graças a Six, pude ter uma experiência similar à dos habitantes da Amsterdã do século XVII e da maneira mais tangível que se pode imaginar: as sutis diferenças de visão e sensação que distinguem uma era histórica de outra. Mas ele também me revelou uma outra coisa: a batalha que travou a vida inteira com a família para definir o seu papel como herdeiro da Coleção Six. Na infância, a grandiosa tradição artística ocidental o saudava diariamente quando ele seguia para o café da manhã, mas nem isso lhe inoculou a certeza sobre o seu destino. Enquanto os herdeiros anteriores – todos colecionadores ávidos, embora não profissionais do meio artístico – parecem ter acolhido esses deveres com equanimidade, a primeira reação de Jan Six foi rejeitá-los. A família Six faz parte da aristocracia holandesa, mas Jan, em sua adolescência, tentava “não se comportar como uma pessoa de origem nobre”, contou seu amigo próximo David van Ede. “Ele tinha certa vergonha dessa condição.” Em vez de pendurar Rembrandts ou Bruegels nas paredes de seu quarto, preferia cartazes de ídolos da música pop, como Bob Marley e Guns N’Roses. Detestava a escola secundária. Conseguiu um emprego de cozinheiro num restaurante e, por algum tempo, achou que o caminho certo para a sua rebeldia talvez fosse tornar-se um chefe de cozinha. Toda vez que seus pais viajavam, recebia os amigos na mansão. “Nós íamos lá quase todo fim de semana”, continuou Van Ede. “Ninguém se pendurava nos lustres, mas todo mundo fumava, bebia Heinekens e depois ia para alguma balada de hip-hop, com direito a uma escala no Burger King e, às vezes, a voltar para a casa de Jan e dormir lá. Fizemos o alarme disparar algumas vezes.”
Jan Six sabia o que esperavam dele, mas recalcitrava. “Ninguém gosta de se sentir encurralado”, ele disse. “Você passa a vida inteira ouvindo que tudo é uma preparação para seguir os passos trilhados por todos os Jan Six da história. Mas acontece o seguinte: eu sou um indivíduo.”
Ainda assim, acabou se ajustando, pelo menos em parte, quando começou a interagir com as pessoas que batiam à porta da residência. Foi essa gente comum que fez Six perceber que sua vocação era mesmo a arte. “Às vezes, um guia da coleção ficava doente e eu o substituía”, ele contou. “Num primeiro momento, tive medo. Mas então comecei a perceber como as pessoas ficavam felizes e se interessavam pela visita. Quando descobriam que meu nome era Jan Six, elas olhavam para mim e depois para o retrato que Rembrandt pintou do primeiro homem assim chamado, e eu via como ficavam impressionadas com essa conexão entre o passado e o presente. Alguns dos visitantes eram conhecedores de arte, e eu ouvia o que tinham a dizer.” A partir de então, ele começou a ver a pintura de outra maneira. De representações bidimensionais de gente morta, os quadros se transformaram em formas de expressão estética que dão acesso direto à história. O retrato do primeiro Jan Six, acima de todos, tornou-se uma verdadeira fixação para Jan Six XI: “Percebi que fazia diferença para mim os olhos retratados no quadro serem, geneticamente, como os meus.”
Six tentou aliviar a sensação de peso que lhe causava seu legado dedicando-se integralmente à arte, que é a base desse legado, mas num envolvimento em termos próprios. Fez estudos universitários de história da arte, e depois acabou contratado pela Sotheby’s de Londres como especialista-assistente nos antigos mestres. Saía-se bem no trabalho, deslocando-se muito à vontade pelo mundo das grandes fortunas e da alta cultura internacional. Com o tempo, ao que tudo indica, algum traço genético peculiar deve ter sido acionado. Geert Mak, escritor holandês e autor de uma história da família Six, contou-me que alguns dos primeiros Jan Six tinham uma acuidade visual extraordinária, que os orientava no processo de formação do seu acervo. “E esse Jan Six também tem a mesma qualidade”, disse. “Um talento fora do comum para enxergar além de um quadro, recordar um gesto de outro quadro que viu anos atrás, uma incrível memória para detalhes ínfimos.”
À medida que progredia em seu ofício, Six sentiu-se no direito de manifestar suas ideias sobre a coleção familiar. O resultado foi uma série de embates com o pai, muitos deles em defesa de um incremento do acesso do público, que sempre enfrentou alguma dificuldade para ver o acervo – as visitas guiadas à coleção precisam ser marcadas com grande antecedência. O novo Jan Six descreve seu pai como um homem introvertido que se esforça para preservar o legado da família mantendo o mundo a certa distância, mas que, com o tempo, acabou percebendo que precisava enfrentar a oposição de um filho sociável e extrovertido, para quem a melhor maneira de preservar o mesmo legado é justamente abrir suas portas para o vasto mundo. Os confrontos deixaram o filho cada vez mais exasperado: “Eu voltava de bicicleta para a minha casa pensando o tempo todo: ‘Mas, pai, eu só queria ajudar…’”
Um desses desentendimentos teve como motivo, entre tantos possíveis, justamente as molduras. Alguns dos grandes quadros da coleção, como o Retrato de Jan Six, têm molduras ornamentais douradas que os Six adotaram no século XIX, quando a ostentação esteve em moda. Jan Six filho defendia devolver o enquadramento ao estilo do século XVII: molduras pretas, foscas e sóbrias, que ele considera a guarnição natural para aqueles quadros.
E foi esse o segundo objetivo daquela demonstração à luz de velas. “Se você coloca uma moldura dourada em volta de um Rembrandt, tudo que está no quadro recua 5 metros, e o que nele é dourado se torna amarelo”, comenta. “O quadro se vê obrigado a competir com todo o ruído visual da moldura. Se você remove o ruído, a beleza emerge.” Seu pai, porém, mostrou-se inflexível: os quadros da coleção precisavam conservar as molduras douradas. O Jan Six mais jovem acredita que seu pai se considera constrangido a servir à coleção, e da maneira como foi preservada através das gerações. “Quando você passa décadas morando numa casa que vê como o cerne da sua existência, ela se transforma praticamente na sua razão de viver”, afirmou. Já ele próprio considera-se antes a serviço da integridade artística do acervo.
A fim de evitar novos confrontos, o filho recuou: “Decidi que preferia continuar amigo do meu pai. Por isso, hoje, não tenho nada a ver com a casa ou a coleção. A relação entre mim e meu pai fica bem melhor quando mantemos certa distância um do outro.”
Até pouco tempo atrás, em 1991, os quadros dos artistas do Século de Ouro holandês, da Renascença italiana e das outras grandes eras da história da arte europeia dominavam o mercado internacional de arte. Mas hoje, nesta era digital com constantes oscilações no equilíbrio global de poder (em 2018, a China tornou-se o segundo maior mercado de arte do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos), os interesses se voltaram também para a produção contemporânea. Os antigos mestres europeus começam a parecer… antigos. Em 2018, 85% dos duzentos maiores colecionadores do mundo, segundo uma listagem da revista americana ARTnews, disseram colecionar obras de arte contemporânea; só 6% afirmaram colecionar os antigos mestres. E, enquanto os nomes de maior relevo – Rembrandt, Ticiano, Rafael – continuam a alcançar os preços mais altos nos leilões, todo o resto caiu de valor. “Se você comprar um quadro menos importante por 3 mil dólares, o mais provável é que, em pouco tempo, o valor da obra caia para 2 mil”, disse Otto Naumann, marchand americano que hoje trabalha para a Sotheby’s. “A mesma depreciação se observa na faixa dos 300 mil. Marinhas, naturezas-mortas dos pintores flamengos: muitas delas, hoje, valem bem menos do que antes.”
O declínio nas vendas está também associado ao envelhecimento que se observa em toda a atividade. “Já quase não se encontram colecionadores mais jovens interessados nos antigos mestres”, afirmou Duparc, o ex-diretor do museu Mauritshuis. “A maioria dos colecionadores tem entre 70 e 80 anos, ou mais.” E também se nota uma retração no número de programas universitários e postos de ensino relacionados ao estudo dos antigos mestres, bem como no de postos de curadoria nos museus. Duparc contou que, em toda a Holanda, existe um único professor universitário com dedicação integral ao estudo da arte do Século de Ouro. Matthew Teitelbaum, diretor do Museu de Belas-Artes, em Boston, disse que o novo Centro de Arte dos Países Baixos que sua instituição vem desenvolvendo visa resistir a essa tendência. Mas reconhece que tem um grande desafio pela frente: “No momento, todo o campo de interesse encolheu, os respectivos programas de estudos universitários se retraíram e várias cadeiras de ensino vêm deixando de ser ocupadas.” Duparc assinalou que, poucas décadas atrás, havia dúzias de marchands independentes dedicados à obra dos antigos mestres, mas hoje só se encontram alguns poucos, dispersos. A maior parte dos negócios é realizada agora pelas grandes casas leiloeiras Sotheby’s e Christie’s.
Apesar desse panorama preocupante, Jan Six decidiu se estabelecer em 2009 como marchand independente voltado para os mestres holandeses, com particular preferência pelos retratos. Ele disse que se sentiu incomodado com a mentalidade empresarial que encontrou na Sotheby’s, onde o patrimônio artístico mundial tende a ser tratado como commodity, embora altamente sofisticada. “A maior parte dos marchands de arte são meros comerciantes”, disse ele. “Poderiam ser vendedores de automóveis ou corretores de títulos em alguma firma de Wall Street. Não acredito que possuam qualquer motivação estética.” Six encontrou instalações elegantes para seu estúdio/biblioteca/escritório a poucas quadras da casa dos pais e da coleção da família, e começou a operar como marchand.
Seus negócios floresceram. Durante muitos anos, transitou entre Nova York, Londres, Paris e Amsterdã, comprando e vendendo obras de arte, adquirindo uma autoconfiança crescente e aguçando seu discernimento. Seu nome lhe valia acesso imediato aos maiores colecionadores e aos diretores dos mais importantes museus do mundo. Estudou os métodos high-tech de análise de pinturas, capazes de destacar minúcias das telas, da madeira e dos pigmentos que às vezes revelam toda uma nova compreensão de uma obra e seu criador. Obteve vários sucessos como marchand – um Govert Flinck aqui, um Gerrit van Honthorst ali –, mas, de alguma forma, sentia que estava perdendo seu tempo.
O que realmente contava, para ele, era Rembrandt. E Jan Six se empenhou com afinco em transformar-se num especialista no mestre. Começou uma peregrinação com o objetivo de ter contato direto com todas as 341 telas do artista relacionadas no Corpus das pinturas de Rembrandt, espalhadas entre Omaha, no estado americano de Nebraska, e São Petersburgo, na Rússia (até agora, conseguiu ver 80% do total), acumulando um arquivo de dezenas de milhares de documentos e imagens. Não seria exagero dizer que Rembrandt, para ele, é uma questão pessoal. Quando falou pela primeira vez do retrato que descobriu, deixou claro o quanto significou para ele tê-lo encontrado. “O achado não teve nada a ver com a minha família”, afirmou – o que é em parte verdade, em parte totalmente falso, como ele mesmo sabe. “Só quero deixar claro que a descoberta não teve relação alguma com o meu pai ou com a Coleção Six. Foi pura e simplesmente uma catarse. Pela primeira vez na minha vida, éramos só eu e Rembrandt.”
Depois de estudar longamente o retrato do jovem exposto no salão da Christie’s de Londres, Six voou de volta para Amsterdã e mostrou as fotos que trouxera a Ernst van de Wetering, o estudioso de Rembrandt com quem havia conversado sobre a imagem no catálogo. Van de Wetering ficou ainda mais intrigado, mas decidiu não acrescentar nada ao que havia dito até que pudesse ver pessoalmente o quadro. O que foi suficiente para Six decidir participar do leilão. A Christie’s estimava o valor da obra entre 19 mil e 25 mil dólares: uma ninharia, caso a pintura fosse de fato de Rembrandt. Entretanto, se alguém mais tivesse a mesma suspeita, o preço haveria certamente de disparar. Como se sabe, os quadros de Rembrandt são vendidos por dezenas ou centenas de milhões de dólares. Em 2015, o Rijksmuseum, em Amsterdã, maior repositório da arte e da história holandesas, que abriga a famosa Ronda da Noite (ou Ronda Noturna), de Rembrandt, comprou em parceria com o Louvre um par de retratos de um casal de noivos, pintados pelo mestre e datados de 1634, precisamente o período da descoberta de Six (e os noivos ostentam a mesma gola reveladora de renda de bilros). Os dois museus pagaram 174 milhões de dólares pelos quadros.
Six ligou para um investidor com quem trabalhara no passado (e cujo nome ele não revela), e obteve o sinal verde. O marchand contou que o investidor se dispunha a pagar até 4 milhões de libras esterlinas (o equivalente a 5 milhões de dólares), o que seria ainda uma pechincha em se tratando de um Rembrandt. No fim das contas, Six arrematou o quadro por 137 mil libras (173 mil dólares), mais ou menos o preço que se pagaria por uma obra de algum pintor “do círculo de Rembrandt”.
Em seguida, Six encomendou a limpeza, a restauração e uma análise científica completa do quadro. Para tanto, recorreu à melhor equipe de análise holandesa, dotada da última palavra em tecnologia. A chefe da conservação dos quadros do Rijksmuseum, Petria Noble, contou que seu laboratório submeteu o quadro a um escaneamento de alta potência (mapeamento macroelementar por fluorescência de raios X) – tecnologia que atravessa as várias camadas de tinta e permite o exame apurado de uma obra e, portanto, do processo de trabalho do artista –, analisando também várias amostras das tintas empregadas. Como o Rijksmuseum e o Louvre haviam adquirido pouco antes os quadros dos noivos, foi possível fazer uma comparação pormenorizada do jovem cavalheiro de Six com o retrato do noivo, identificado como Marten Soolmans.
Os testes revelaram, como contou Six no livro que escreveu em 2018 sobre o quadro, que as duas obras “foram criadas exatamente com os mesmos materiais, seguiam o mesmo processo de acúmulo de camadas de tinta, o mesmo método de elaboração da pintura do fundo para a frente e, o mais importante de tudo, o mesmo recurso singular de aplicar o preto sobre o branco usado na representação das golas de renda.” Em outras palavras, disse ele, seu quadro era um Rembrandt tão autêntico quanto o que fora comprado pelos dois museus por dezenas de milhões de dólares.
Ocorre, porém, que qualquer grande museu resiste a ser usado como instrumento de marketing de marchands, e Petria Noble não se mostrou tão peremptória quanto Six. “Precisamos tomar muito cuidado antes de apresentar uma conclusão”, disse ela. “As semelhanças são muitas, mas restam várias questões que demandam mais análises.”
Depois dos testes científicos, Six convocou seis estudiosos de peso para dar apoio à sua atribuição do quadro a Rembrandt. Vale dizer que alguns deles não se sentiam muito dispostos a fazê-lo – não porque estivessem convencidos do contrário, mas devido à tendência entre os especialistas de reconhecer a existência de certas áreas cinzentas na história da arte. No caso de um quadro como esse, que parece ter surgido do nada, não existe como chegar a uma certeza absoluta quanto à sua proveniência. “Depois que Jan me procurou com o seu quadro, tive de admitir que eu não tinha meios de refutar seus argumentos”, disse Gary Schwartz, autor americano de uma biografia de Rembrandt e especialista na arte holandesa do século XVII. “E eu lhe disse que não manifestaria qualquer dúvida quanto à autoria de Rembrandt. Mas não estou satisfeito a ponto de ser tão conclusivo.” E Schwartz se estendeu sobre as dificuldades peculiares envolvidas na autenticação de um Rembrandt: a variedade de estilos usados pelo pintor, a quantidade de discípulos que teve ou a probabilidade de que, em seu estúdio, mais de um pintor tenha trabalhado em qualquer dos quadros lá produzidos. Um quadro que é atribuído, por exemplo, ao “estúdio de Rembrandt”, em vez de ao próprio mestre, tem seu valor automaticamente reduzido. Schwartz figura entre os muitos historiadores da arte que, quando confrontados com a questão da autenticidade de algum trabalho dos grandes pintores, prefere que se leve em conta menos o artista ou o valor monetário do que a obra propriamente dita. Ele usa o termo “rembrandtidade” (rembrandtness) e é favorável à atribuição de graus de probabilidade de que essa ou aquela obra tenha sido pintada pelo próprio mestre. No que diz respeito à “rembrandtidade” desse retrato em especial, ele declarou: “No momento, a melhor hipótese é a que atribui o quadro a Rembrandt, mas talvez ela não seja tão sólida assim.”
Os museus tentam respeitar o “grau de rembrandtidade” de cada obra. A National Gallery, em Londres, por exemplo, classifica seu quadro Um Velho numa Poltrona como sendo “provavelmente de Rembrandt”, e o museu Mauritshuis, em Haia, anunciou há pouco que está promovendo um estudo exaustivo de dois de seus supostos Rembrandts a fim de determinar a probabilidade de terem sido de fato produzidos pelo artista. “Acho ‘rembrandtidade’ um conceito engenhoso”, diz Ronni Baer, curadora-sênior de pintura europeia no Museu de Belas-Artes, em Boston. “Mas as pessoas tendem a não se dar por satisfeitas com essa ideia, porque a questão da autoria sempre envolve muitíssimo dinheiro.”
O parecer mais importante sobre a autoria do quadro era a de Van de Wetering, e o estudioso de Rembrandt manteve sua opinião sob reserva enquanto a pintura era analisada. “Com o andamento da restauração, fui ficando cada vez mais convencido”, ele me contou. “E achei que a conclusão de Jan Six estava correta.”
Com o tempo, entretanto, Van de Wetering acrescentou uma importante restrição ao seu parecer. Ele acredita que, originalmente, o quadro de Six fazia parte de uma obra maior. Uma das indicações disso é o fato de o rosto do retratado estar levemente fora de foco. Rembrandt empregava esse recurso em retratos de grupos de pessoas, esclareceu Van de Wetering, de modo a conduzir o olhar do espectador para a figura central da composição. “A outra figura devia estar num plano um pouco mais à frente”, disse. Podia ser uma figura feminina, e é possível que, originalmente, o quadro fosse um retrato matrimonial, posteriormente dividido em dois. Mais tarde, numa entrevista a um jornal holandês, Van de Wetering afirmaria que, se o quadro fosse, como ele supunha, “o fragmento de uma obra maior”, esse fato diminuiria a sua importância.
Um dia depois de se deparar com o retrato do jovem cavalheiro no catálogo da Christie’s, em 2016, Jan Six conheceu a editora e jornalista Ronit Palache. Ele havia passado por um divórcio penoso, e os dois se entenderam quase de imediato. “Uma das primeiras coisas que ele me disse foi: ‘Acho que encontrei um Rembrandt’”, me contou Palache, em meados do ano passado. “Quando começamos a sair juntos, ele falava nisso o tempo todo.”
Palache, que trabalhava em uma editora holandesa, disse que Six lhe revelou seu plano de publicar um estudo acadêmico para acompanhar a revelação de seu achado. Porém, ao ler as anotações, ela as achou “tediosas” e logo começou a cultivar outra ideia. Tinha diante de si o descendente de uma família célebre na Holanda por sua conexão com as belas-artes, e especialmente com Rembrandt. E agora, esse homem, sozinho, havia encontrado um Rembrandt do qual não havia registro. “O potencial da história me saltou aos olhos”, disse a editora.
Sua ideia era que a revelação do quadro fosse acompanhada do lançamento de um livro de impacto – com uma grande ofensiva midiática. Num primeiro momento, Six resistiu. “Respondi que não havia tanto público assim para essa história”, contou ele. “Os antigos mestres só costumam despertar o interesse das pessoas mais idosas, que dispõem de mais tempo livre.” Mas Palache não cedeu, e Six acabou por aceitar o que ela propunha. “Eu passava o tempo todo tentando convencer Jan que sua história faria grande sucesso”, disse ela.
Em maio de 2018, quase um ano e meio depois que Six viu o quadro pela primeira vez em Londres, o marchand deu uma entrevista ao vivo ao programa de tevê Pauw, um dos mais populares da Holanda. Após uma breve introdução, o entrevistador removeu uma pesada capa preta que cobria o quadro, acompanhado dos aplausos da plateia. A aparição na tevê foi o ponto culminante da campanha de mídia que contou ainda com uma reportagem exclusiva e chamada na primeira página no principal jornal do país, o NRC Handelsblad, e um livro de produção caprichada, Rembrandts Portret van een Jonge Man [O Retrato de um Jovem Cavalheiro por Rembrandt], escrito por Six. Nos dias seguintes, a notícia se espalhou pelo mundo. A edição holandesa do livro transformou-se num best-seller instantâneo, e versões em inglês e francês seguiram imediatamente para o prelo.
Os holandeses gostam de lembrar que eles são pessoas ostensivamente igualitárias e sem papas na língua. Circulam pelo país muitos ditados sobre os perigos da arrogância, como: “As árvores altas são as que mais sofrem com o vento” e “Levante demais a cabeça, e ela lhe será cortada”. O mundo dos antigos mestres também tende a preferir a discrição – ou mesmo a modéstia – a qualquer grau de exibicionismo. A maneira exuberante empregada por Six para anunciar sua descoberta contrariava os padrões dessa cultura. Apesar disso, os guardiões da arte tradicional, em vez de torcerem o nariz para tanta extravagância, se mostraram inicialmente encantados com aquele entusiasmo renovado por sua área de interesse. Wim Pijbes, ex-diretor do Rijksmuseum, descreveu a revelação do quadro diante das câmeras como “uma ótima ideia, na verdade um momento deslumbrante”.
À medida que ondas e mais ondas de popularidade vinham quebrar-se aos pés de Jan Six, decidi lhe perguntar por que participava agora de toda essa promoção tão voltada para o mercado, uma vez que havia deixado a Sotheby’s por causa da aversão que lhe causava a mercantilização da arte. Ele deu de ombros, e respondeu com um mea-culpa sumário: “Sou um homem de negócios!” Mais tarde, porém, viria a elaborar uma resposta mais introspectiva: “Passei anos me esforçando para provar que tinha me tornado um razoável conhecedor da arte. Hoje, fico feliz ao ver que todos os artigos a meu respeito publicados na imprensa, desde os Estados Unidos até a China, referem-se a mim como um marchand de arte, e não como um membro da família Six.”
Em setembro de 2018, quatro meses depois do rumoroso anúncio televisivo de Jan Six e quase dois anos depois do leilão da Christie’s, outro marchand holandês, Sander Bijl, morador de Alkmaar, uma cidade ao norte de Amsterdã, disse em uma entrevista ao jornal NRC Handelsblad que também tinha reconhecido um provável Rembrandt naquela foto do catálogo. Contou ter proposto a Six a compra do quadro em sociedade e que os dois concordaram em se cotizar para um lance conjunto de pouco mais de 100 mil euros, o máximo que Bijl poderia pagar. Quando o quadro foi finalmente vendido pelo equivalente a 153 mil euros, afirmou Bijl, nem lhe passou pela cabeça que o lance vencedor tivesse sido dado por Six. Bijl acusava Six de ter ignorado o acordo entre eles e tomado a iniciativa de dar outro lance, recorrendo a um intermediário, a fim de excluir o concorrente também cônscio do verdadeiro valor da obra. Como me disse outro marchand especializado nos antigos mestres: “Isso simplesmente não acontece na nossa atividade.”
A entrevista de Bijl – sugerindo que Jan Six, a nova estrela do mundo dos antigos mestres, seria um trapaceiro – reverberou por toda a comunidade artística internacional. Mais tarde, Bijl me diria que não teve outra escolha exceto vir a público defender a própria reputação – ele achou que seu prestígio no meio dos marchands de arte e de outras pessoas ativas na área ficaria maculado caso imaginassem que tinha perdido a chance de detectar um Rembrandt. Sua fúria aumentou depois da apresentação do quadro na tevê e das aparições posteriores de Six na mídia em que descreveu o processo de descoberta, pesquisa e compra do quadro como uma empreitada rigorosamente solitária, na qual contara apenas com a expertise de Van de Wetering e o apoio de um financiador anônimo. “Jan Six não parava de se gabar dessa descoberta como se só ele fosse capaz de fazê-la, como se desse a entender que todos os outros marchands eram umas bestas, ou só ele era sagaz. Mas sabia perfeitamente que eu, tanto quanto ele, havia percebido a mesma coisa.” Bijl me encaminhou uma série de mensagens de WhatsApp que teria enviado a Six antes do leilão da Christie’s, inclusive com fotos de partes da tela, detalhando seu próprio estudo do quadro. As mensagens pareciam provar que Bijl teria estado diante da tela, na sala de exposições da Christie’s, antes mesmo de Six.
Em setembro passado, Jan Six me disse que jamais fez um acordo com Bijl para comprar o quadro em sociedade. Mas deixou certa impressão de ter dado falsas esperanças ao concorrente de algum modo. “Tive muito medo de que Sander chamasse a atenção da casa de leilões para o fato de ter em sua posse um quadro tão especial”, afirmou. “Na mesma hora a Christie’s teria retirado o quadro do leilão, o que já me acontecera numa outra ocasião. Então eu perguntei a ele: ‘O que você quer fazer?’” Segundo Six, o objetivo da pergunta era saber quais os planos de Bijl, mas este teria concluído que aquilo representava um acordo de associação para a compra do quadro. Em outubro passado, Six declarou numa entrevista ao jornal De Volkskrant: “Deixei certa margem para Sander acreditar numa versão própria dos fatos.”
Os holandeses acharam esses novos desdobramentos especialmente palpitantes por causa do paralelismo entre os dois marchands. Eles têm mais ou menos a mesma idade. O pai de Bijl, Martin Bijl, é um dos maiores restauradores holandeses de pintura, com um rol de trabalhos que inclui vários Rembrandts. Da mesma forma que Six, Sander Bijl cresceu rodeado de obras da arte holandesa antiga. Mas a diferença social entre ambos é considerável. “Sou o tipo de marchand que arma seu estande em todas as grandes feiras de arte”, contou-me Bijl. “Jan Six nem se incomoda com isso. Sou apenas o desimportante Sander Bijl, de Alkmaar; ele é Jan Six, o aristocrata de Amsterdã.”
Pouco depois das acusações, outra informação dada por Jan Six pareceu reduzir a importância do desentendimento entre os dois marchands. Tempos antes, eu tinha perguntado a ele se havia algum fundamento no rumor de que teria identificado um segundo Rembrandt até então desconhecido. Na ocasião, ele negou. Na nova conversa que tivemos, porém, voltou atrás, e me disse que a história era verdadeira. Contou que tinha encontrado esse outro Rembrandt dois anos antes de ter visto o retrato do jovem exposto na Christie’s, mas que se comprometera a não contar sobre seu achado antes do final de 2019, quando a revelação da obra seria o ponto alto da reabertura do Museu Lakenhal, em Leiden, cidade natal do pintor, e das homenagens ao 350º aniversário de sua morte. Só que a acusação de Sander Bijl levou-o a mudar os planos, ele disse. A fim de explicar melhor o ocorrido entre os dois, Six precisava divulgar a notícia da descoberta de outro Rembrandt. O que acabou por fazer em 14 de setembro de 2018, repetindo a remoção teatral de uma capa preta que cobria o segundo quadro, outra vez no programa Pauw.
Six contou que descobriu o quadro, uma cena bíblica em que Jesus aparece cercado de crianças e outras pessoas, no catálogo online de uma casa de leilões alemã, em 2014. Graças a todos os anos que passou contemplando as obras de Rembrandt, o reconhecimento foi instantâneo. O que chamou sua atenção foi o que parecia ser um autorretrato de Rembrandt muito jovem em meio às figuras menores da cena. O detalhe deixou Six animado não só por causa da semelhança do autorretrato com muitos outros feitos pelo artista, mas também porque coadunava com a tendência de Rembrandt, no início da carreira, a incluir sua própria imagem nos quadros que pintava. O preço do quadro estava estimado entre 20 mil e 27 mil dólares, mas o marchand Otto Naumann também o identificara como um possível Rembrandt e decidira arrematá-lo. Em consequência, Six, apoiado por seu investidor anônimo, precisou desembolsar 2 milhões de dólares para dar o lance vencedor. Estima-se que Rembrandt pintou o quadro bem no início de sua carreira, possivelmente quando tinha apenas 19 anos, e que esta seja a primeira tela de sua autoria de que se tem conhecimento.
A pintura tinha sido pesadamente retocada por algum artista posterior – que mudara a cor de alguns dos mantos e cuidara de cobrir a nudez de um menino presente à cena. Para que a obra voltasse a um estado semelhante ao pretendido pelo mestre, Six decidiu mandar remover toda a tinta aplicada depois de Rembrandt. Novamente, consultou Ernst van de Wetering que fez questão absoluta de que fosse Martin Bijl o encarregado de toda a trabalhosa restauração. “Não era o que eu queria, mas Ernst foi realmente categórico”, disse Six, dando a entender que, em troca da bênção do especialista em Rembrandt, fora obrigado a recorrer ao trabalho do pai de Sander Bijl. A restauração foi entregue a Martin Bijl, contou Six, e foi na época desse meticuloso trabalho que se deparou com o retrato do jovem no catálogo da Christie’s, indo mostrar a foto a Van de Wetering.
Pouco depois, Sander Bijl, filho do restaurador, mandou a Six uma mensagem por WhatsApp: “Jan, fiquei sabendo que você conversou com Martin e Ernst sobre um retrato que vai a leilão.” Mas Six não teria respondido nada. Como me disse, ficou claro para ele a partir dessa primeira mensagem que Van de Wetering teria traído a sua confiança e contado a Martin Bijl sobre a descoberta de um outro Rembrandt, e que o restaurador teria repassado a notícia a seu filho. E foi essa mesma história que Jan Six repetiu em setembro de 2018 no programa Pauw, no qual afirmou também que Van de Wetering o pressionou a recorrer a Martin Bijl para o serviço de restauração. “De uma hora para outra, Sander se interessava em virar meu amigo”, me disse Six, seguindo-se a sugestão de que os dois se associassem para a compra do retrato no leilão. Nesse meio tempo, afirmou Six, Martin Bijl resolveu cobrar um adicional para terminar a restauração do primeiro quadro: além do pagamento por hora trabalhada, conforme o acordo original, queria uma porcentagem da venda do quadro. “Era uma espécie de chantagem”, disse Six.
Por e-mail, pedi a Martin Bijl uma resposta a essa acusação. Ele não respondeu, mas seu filho me escreveu, contando que o pai havia solicitado um aumento depois que Six lhe pedira para acelerar o trabalho de restauração, o que o obrigaria a recusar outros clientes. E me encaminhou toda uma sequência de mensagens trocadas entre Six e seu pai pelo WhatsApp que sugere que os dois tinham uma relação amigável.
Sander Bijl não negou que tenha sabido do interesse de Six pelo retrato através do pai, que de fato tomara conhecimento de toda a história por intermédio de Van de Wetering. Mas alegou que essas interações são normais e também inevitáveis no pequeno mundo em torno dos antigos mestres da pintura holandesa. Contou também que, quando seu pai lhe falou do interesse de Six pelo quadro, já sabia que a Christie’s se preparava para vender um retrato talvez pintado por Rembrandt como se fosse a obra de algum pintor menor. Encaminhou-me um e-mail que teria enviado à Christie’s em novembro de 2016, pedindo uma foto em alta resolução do quadro. A data do e-mail era anterior à da ida de Six a Londres para ver pela primeira vez a pintura – indicando, em outras palavras, que Bijl teria notado o quadro por conta própria. Disse ainda que já havia feito negócios ocasionais com Six – de quem teria comprado alguns quadros pequenos, no início do ano anterior –, de maneira que achava normal abordá-lo com a sugestão de um lance conjunto pelo retrato.
Quando conversei com Sander Bijl por telefone em dezembro passado, depois que sua querela com Jan Six já se prolongava havia meses nos meios de comunicação holandeses, ele sugeriu que o esforço para excluí-lo da compra do quadro estava relacionado a conflitos de Six com seus demônios interiores: “Ele tem problemas com o fardo que representa o sobrenome Six e acha que precisa provar seu valor. Mas o que tenho eu a ver com as questões familiares dele? Nada. Ele me enganou.”
Além de manchetes como “Jan Six, o descobridor de Rembrandts, é acusado de trapaça”, outra surpresa desagradável estava por vir. Van de Wetering, a quem Six reverenciara durante toda a sua vida profissional, deu uma resposta pública escaldante às declarações de que teria forçado o marchand a empregar os serviços do restaurador Martin Bijl e traído a sua confiança. Embora, poucas semanas antes, Van de Wetering me tivesse dito que se sentia ligado a Six por “uma grande afinidade”, depois das acusações que lhe foram feitas declarou ao NRC Handels-blad: “Six revelou sua verdadeira natureza. Hoje sei que ele é capaz de mentir.” Disse ainda que os dois haviam rompido a amizade, mas fez uma avaliação muito elogiosa da primeira descoberta de Six, na mesma entrevista. A cena bíblica, afirmou, era “um grande achado”, que “revelava toda uma fase do desenvolvimento do jovem Rembrandt”.
Quando Six e eu voltamos a nos encontrar, em outubro do ano passado, sua postura era de desafio. Quando fica exasperado costuma deixar os cabelos escuros e compridos caírem como uma cortina sobre o rosto. Ele afastou os cabelos com uma das mãos enquanto se explicava. Repetiu que Sander Bijl só estava tentando se aproveitar do seu sucesso. “Quando Dan Brown escreveu O Código Da Vinci, teve de enfrentar muitos processos”, disse. “Francamente, é uma sorte para mim ter que enfrentar as acusações de uma só pessoa.” Refutou minha sugestão de que a fixação em Rembrandt talvez lhe tivesse turvado o juízo profissional. Nem sequer admitia os aparentes indícios de que Bijl tivesse identificado por conta própria o retrato na Christie’s como um provável Rembrandt. E manifestou amargura por ver esses planos alheios, motivados segundo ele por inveja e cobiça, macularem o que teria sido seu grande momento pessoal e profissional, lançando uma sombra sobre uma proeza sem precedentes: “É a primeira vez, em toda a história da humanidade, que alguém descobre dois Rembrandts.”
Apesar do declínio no seu valor de mercado e do pouco interesse acadêmico que atualmente despertam, as obras dos antigos mestres holandeses continuam gozando de grande apelo popular. O sucesso obtido pelo livro Moça com Brinco de Pérola, de Tracy Chevalier – adaptado para o cinema pelo diretor Peter Webber –, inspirado no quadro de Vermeer, e pelo romance O Pintassilgo, de Donna Tartt (em vias de adaptação cinematográfica), cujo centro da trama é o quadro homônimo do pintor seiscentista holandês Carel Fabritius, reflete-se no afluxo de visitantes a museus e exposições. Desde que o Rijksmuseum e o museu Mauritshuis reabriram, alguns anos atrás, depois de passarem por reformas, o número de visitantes praticamente duplicou. “No mundo dos antigos mestres, a arte holandesa me parece muito mais atraente que, digamos, a arte religiosa italiana ou o barroco mais radical”, disse Ronni Baer, curadora do Museu de Belas-Artes, em Boston, ao explicar a popularidade desses pintores. “Qualquer um entende uma natureza-morta ou uma cena de interior.”
Se algumas personalidades de destaque do mundo em torno dos antigos mestres holandeses, sabendo da popularidade da arte desse período entre as pessoas comuns e esperando a reversão do seu declínio na universidade e no mercado, aplaudiram Jan Six quando ele revelou seus achados, foi certamente porque viram nele um jovem e promissor paladino da causa. E não há dúvida de que pedigree, pelo menos, ele tem de sobra. Além disso, exibe uma compreensão muito profunda do que torna essas obras de arte tão especiais. Ao se afastarem dos temas estritamente religiosos, realçando o mundo que tinham à sua volta – em naturezas-mortas, paisagens, retratos –, os pintores daquela época criaram obras que são verdadeiras janelas abertas para o que somos. As pessoas que devotam suas vidas a esse campo o fazem com grande sentido de dedicação, tratando seu trabalho como uma causa. “Precisamos lutar pela importância da arte holandesa”, disse Emilie Gordenker, diretora do museu Mauritshuis, que abriga tanto Moça com Brinco de Pérola, de Vermeer, quanto O Pintassilgo, de Fabritius. “Precisamos garantir que as histórias desses quadros continuem a despertar o mesmo interesse de hoje.”
Algumas das pessoas mais importantes da área – diretores de museus, curadores, estudiosos – manifestaram alguma decepção com Six depois de sua derrocada, embora nenhuma delas o tenha feito abertamente. “Foi uma coisa muito triste, porque já existe uma tendência geral a ver os marchands de arte como gente que não é digna de confiança”, afirmou uma delas. “O que posso lhe dizer é que certas pessoas têm falado de Jan Six como se seu destino fosse o mesmo de Ícaro.”
Um marchand me disse que Six tinha cometido um erro próprio da juventude em seu modo de lidar com a polêmica: “Ele deveria ter agido imediatamente, procurando resolver a situação de forma discreta.” Embora convencido de que Six tem razão, o marchand sugeriu que a iniciativa mais prudente teria sido chegar a um acordo com Bijl. Desse modo, Six manteria a própria reputação intacta. “Nosso negócio se baseia integralmente na confiança”, continuou. “Os outros precisam confiar em você – e nos seus quadros.” Para reforçar o que dizia, contou-me que tinha perguntado a um comprador proeminente se este queria que ele sondasse o preço de um dos dois quadros descobertos por Six. O comprador lhe respondeu: “Não com tanta controvérsia em torno dele.”
No mundo comum, porém, essas controvérsias vão perdendo a força. Da última vez que falei com Jan Six, em fevereiro último, sua disposição tinha mudado por completo. Para comemorar o 350º aniversário da morte do mestre, neste ano, o canal de tevê holandês NPO pediu a ele que gravasse uma série em cinco episódios nos quais aparece discorrendo sobre as obras-primas de Rembrandt, enquanto caminha pelas ruas onde o pintor morou ou parado diante do prédio em Leiden em que ficava a sua escola. O que se vê é Jan Six fazendo o seu melhor: comunicando sua paixão, dessa vez a um público bem mais vasto, o que é novo para ele. “Centenas de milhares de pessoas me assistem na tevê e gostam dos programas”, ele comentou. “De uma hora para outra, gente de todo tipo começou a me procurar. Alguns possuem um quadro antigo que querem que eu veja. Há pouco recebi a ligação de uma senhora que me disse que acabara de completar 75 anos e que sua irmã gêmea é louca por Rembrandt. Perguntou se eu poderia aparecer no almoço de aniversário delas para falar uns dez minutos sobre o pintor. Uma graça de pessoa – e é claro que aceitei! Tudo isso me deixa muito animado.”
Essa novidade também lhe propiciou uma certa distância da “bolha”, como Six se refere à elite do mundo das artes, permitindo-lhe superar finalmente os incidentes do último ano, tão cheio de emoções, mas também de angústia. “O começo da história foi épico, fantástico”, contou, “porém depois tudo mudou. Percebi que tamanha obsessão por um pintor não é necessariamente uma coisa boa – mas claro que continuo obcecado.”
Se algum leitor deste artigo visitar Amsterdã, pode ser que consiga de um certo ponto no Centro da cidade trocar um olhar com Jan Six – ou, melhor dizendo, com o primeiro dos Jan Six. Seu retrato está afixado em tal posição a uma parede da residência Six que o passante é capaz de vê-lo da calçada em frente, se esticar um pouco o pescoço. O quadro fica num salão do segundo piso, de onde Jan Six i contempla quem passa pela frente da mansão. Jan Six XI fala sempre da maneira como Rembrandt pinta o olhar dos seus retratados. O olhar daquele seu antepassado e homônimo parece ter sido surpreendido em um momento de melancolia, de consciência aguda e cansada das frustrações e limitações da existência.
Foi essa a epifania de Jan Six XI na adolescência, ao contemplar o retrato de seu ancestral, que desencadearia a procura de uma identidade própria, distinta da de seus antecessores: a revelação de que alguém, cerca de 350 anos atrás, aplicando tintas sobre uma tela, tenha sido capaz de captar a essência humana de um modo tão plenamente inteligível nos dias de hoje. E de que, talvez, nossa identidade, com todas as suas imperfeições e inseguranças, seus picos de percepção mais aguda e seus remansos de empatia, por mais individual que a consideremos, é ao mesmo tempo universal.
Leia Mais