ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Resenhas do cárcere
O segundo livro de João Paulo Cunha
Carol Pires | Edição 118, Julho 2016
No dia em que se apresentou na Papuda para cumprir pena, o então deputado federal João Paulo Cunha – o primeiro político condenado no mensalão – carregava um saco com roupas, lençol, toalha e escova de dente. A completar a leve bagagem do cárcere, quatro livros. “Você percebe o que é a cadeia quando o cara tranca a cela, vira as costas e leva a chave”, disse Cunha recentemente, no escritório onde trabalha, em Brasília. “Você fica ali, você e sua cabeça. Se não tomar cuidado, pira.”
A seleção de títulos era sugestiva: Ficções, do argentino Jorge Luis Borges; Diário da Queda, do gaúcho Michel Laub; Operação Banqueiro, do jornalista Rubens Valente; e Vermelho Amargo, do mineiro Bartolomeu Campos de Queirós. Confinado com o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares e o ex-presidente do PR Valdemar Costa Neto, Cunha lia algumas das obras “numa corrida só”. Pelos seus cálculos, foram cerca de sessenta volumes durante um ano e vinte dias de prisão em regime semiaberto.
“Depois, pensei: por que só ler?” Tempo não lhe faltava. Ele, então, começou a anotar ideias num bloquinho. Como se tomado por Antonio Gramsci, se animou a transformar suas reflexões em resenhas e a dividi-las com o público. O resultado são os 21 textos críticos reunidos no volume Janelas do Cárcere: Para quando Faltar Horizonte, ainda sem previsão de lançamento. No livro, Cunha examina obras de autores como Leonardo Padura, Chico Buarque e John Boyne. Mas não se trata propriamente de um mergulho. O ex-parlamentar está mais para um nadador de águas rasas. Sobre o romance de Campos de Queirós, por exemplo, anotou: “Lendo quietinho o livro na cela que me abrigou, me vem a imagem de um artesão de palavras ensinando que ‘há que experimentar o prazer para, só depois, bem suportar a dor’.”
João Paulo Cunha era um político em ascensão quando o mensalão o abateu. Um dos fundadores do PT em Osasco, notabilizou-se como o primeiro deputado do partido a presidir a Câmara e planejava disputar o governo paulista. Em 2005, foi acusado de ter recebido 50 mil reais de propina por contratar, pela Casa, uma das agências de publicidade de Marcos Valério, operador do mensalão. Cunha até hoje nega as acusações: o dinheiro, sacado com recibo assinado por sua mulher, teria sido pedido por ele ao tesoureiro do partido para fazer pesquisas de opinião no interior paulista.
Mesmo sob o peso do escândalo, o então deputado federal foi reeleito duas vezes, em 2006 e 2010, sempre como recordista de votos em São Paulo. Almejava concorrer à prefeitura de Osasco em 2012 quando o Supremo Tribunal Federal o condenou a seis anos e quatro meses de prisão, além de lhe cobrar uma multa de 370 mil reais.
Os textos de Janelas do Cárcere seguem uma mesma estrutura. Cunha começa contando como chegou até o título resenhado (“Fuçando na biblioteca da Papuda, encontrei Cyrano de Bergerac”). Em seguida, procede a um resumo comentado e conclui com seu parecer sobre o autor e a obra. “Que livro bom”, ajuizou sobre O Drible, de Sérgio Rodrigues. “Muito bem escrito e com um domínio completo, não só da língua, como do roteiro. Um gol de placa!”
Certa vez, Cunha se interessou por um volume de capa vermelha que alguém deixara para ele na portaria da Papuda. Era Os Últimos Quartetos de Beethoven e Outros Contos, de Luis Fernando Verissimo. “Li com prazer e num fôlego só essas 168 páginas”, registrou o resenhista, que em seguida arriscou uma observação um tanto hermética: “Ao final, fiquei com desejo de dizer ao Verissimo que ele ajuda o Brasil a pensar. É como Bille Holliday cantando Strange Fruit no meio de uma batucada de japoneses. O bumbo faz barulho, mas o piano encanta.”
Nos três meses de Papuda, Cunha conseguiu – assim como Dirceu, Delúbio e Valdemar – ser empregado na biblioteca. Ali descontava um dia de pena para cada três trabalhados. Embora preso já em regime semiaberto, o ex-deputado demorou para conseguir desenrolar a papelada que lhe permitia passar os dias fora da cadeia. Autorizado a trabalhar num escritório de advocacia, começou a sair de dia e só voltava ao CDP, o Centro de Detenção Provisória, para dormir. Chegava às seis da tarde e, às oito, quando a biblioteca da carceragem abria, corria para ler e fazer as anotações. Às dez, a luz se apagava e todos deviam se recolher. O petista compartilhava a cela com outros 27 detentos, distribuídos em triliches. Sua cama era a do meio, entre um traficante de cocaína e um condenado por oito assassinatos. Com uma lâmpada focal improvisada na cabeceira, ainda conseguia ler um pouco mais.
Na cadeia, Cunha também aproveitou para escrever um poemário intitulado Quatro & Outras Lembranças, que está na segunda edição e não agradou a crítica – a Veja viu “rancor e banalidade” nos versos do petista. “O livro foi lido com preconceito, por causa do mensalão, que é grave mesmo”, transigiu o autor. A obra saiu pela Topbooks, a mesma editora que deve lançar suas resenhas e que publicou Anônima Intimidade, com poemas do presidente interino Michel Temer.
Aos 58 anos, usando óculos de acetato esverdeado que lhe davam um ar mais informal do que quando era deputado, Cunha foi buscar na estante um exemplar da coletânea de poemas. Instado a ler seus versos preferidos, escolheu os de Lampejos do P6 – nome do pátio da Papuda em que ele e outros detentos tomavam sol: Do ovo/um gosta da clara/o outro gosta da gema./No amor um se declara/o outro vai ao cinema. “São bobos, mas é meio Leminski”, disse, enquanto folheava o opúsculo.
Na página 83, deteve-se num poema sobre um cadáver que termina com os seguintes versos: Vestia jeans da cor do céu/camiseta branca paina/e um tênis de amarrar sem meias./Estava tão bonito ao encontrar a morte. “Modéstia à parte, é um negócio legal”, regozijou-se o autor.