ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Retrato de família
Os Battisti se encontram em Progresso
Mario Sergio Conti | Edição 70, Julho 2012
Tangida pela falta de terra e pelas perseguições políticas aos republicanos, uma leva de camponeses italianos empobrecidos deixou a região de Trento na segunda metade do século XIX. Viajaram 36 dias em navios a vapor e desembarcaram em Porto Alegre, de onde seguiram de barco e carroças até o lugar que hoje se chama Garibaldi, em homenagem ao herói da unificação italiana. Era gente que só podia seguir para a frente: o paese ficara definitivamente para trás. Caso de dois membros da família Battisti – nome de origem grega que significa “imerso em água, batizado” –, cada qual com nove filhos.
Os Battisti seguiram em frente e chegaram ao vale do Taquari. Viram que a terra era boa e não faltava água limpa. Não encontraram nem palha nem feno e dormiram na terra nua como bestas. Cultivaram trigo, milho, cevada e aveia, além de uva para fazer vinho. Criaram frangos, porcos, bois. Faziam e fazem festas para lembrar a pátria longínqua, cerrar os laços entre si e comemorar a nova vida na América longa e larga.
Há cerca de 10 mil Battisti no Brasil. Trezentos descendentes das duas famílias originais moram em Progresso, burgo de 6 020 almas no Taquari. Estavam lá os Battisti, há décadas postos em sossego, quando um deles irrompeu no noticiário, Cesare. Preso no Rio como fugitivo internacional, ele era acusado de terrorismo e de ter matado quatro pessoas.
Houve na imprensa uma catadupa de ataques ao prisioneiro. Só quattro gatti tomaram a sua defesa. Intrigados, os progressenses se indagavam: Ma che cazzo ha fatto questo Battisti? A situação começou a mudar quando o ministro Tarso Genro, mais por ser gaúcho do que petista, fez um parecer considerando-o preso político. E mudou de vez porque o presidente Luiz Inácio Lula da Silva autorizou Cesare a permanecer no Brasil.
O moveleiro Pedro Battisti, um homem de mais de 2 metros e mãos enormes, continuou com dúvidas. No início do ano, Cesare esteve em Porto Alegre e fez uma palestra. Pedro foi lá e, na hora das perguntas, anunciou que ele era também um Battisti, mas teria que mudar o nome da sua pequena fábrica de móveis porque as encomendas haviam diminuído desde o imbroglio da extradição. Ressabiado, Cesare imaginou que se tratava de um provocador. Acabaram marcando uma conversa e vieram a se entender.
Todos os anos, e cada vez numa cidade, os Battisti brasileiros organizam grandes encontros familiares. O último foi no começo do ano, mas Pedro teve a ideia de promover um extra, em Progresso, para que todos conhecessem o famoso Cesare. Ele foi marcado num sábado de junho passado, na boca do inverno.
Cesare acordou cedo naquele dia. Perambulou pela praça da matriz, contemplou o Açougue Battisti, o Mercado Battisti e a Funerária Battisti. Ofereceram-lhe chimarrão, ele tomou dois goles e, desconhecendo a etiqueta gaúcha, devolveu a cuia. O costume é tomar o mate até a bomba (o canudo de metal) roncar. Visitou próceres locais e seguiu para o Centro de Tradições Gaúchas Sinuelo da Amizade. (“Sinuelo” quer dizer “ensinar o caminho”).
Uns 200 Battisti o aguardavam na entrada do galpão do Centro. Mulheres, homens, velhos e crianças compartilhavam os mesmos traços físicos. “O DNA dos Battisti está no nariz fino”, explicou um deles. Chamado a discursar, Cesare contou a sua história. “Eu também vim da roça”, começou. Seus ancestrais mudaram de Trento para o Lazio, no Centro da Itália. Ele nasceu num vilarejo chamado Sermoneta, também com 6 mil moradores, e a família vivia da terra.
Como seu pai era comunista, ele foi discriminado na infância. “Os padres me tratavam mal e os meninos não me chamavam para suas casas”, disse. Perguntou ao pai por que isso acontecia. Antonio Battisti lhe respondeu com uma máxima: “Quando todos estiverem contra um homem, fique do lado dele, do mais fraco.” O menino não compreendeu a resposta. “Mas hoje, aqui, entendi meu pai”, prosseguiu. “Vocês não acreditaram em mentiras, ficaram do meu lado e me acolheram como a um filho pródigo.”
Cesare vendeu e autografou uma centena dos seus livros. No almoço houve salada, churrasco, polenta e feijão, pinhão e sagu de sobremesa, em mesas decoradas com arranjos de folhas e bergamotas. Muitos conversavam em italiano. “É impressionante que depois de tantas gerações eles mantenham o sotaque de Trento”, comentou o escritor. O congraçamento era geral.
Tensões políticas, no entanto, brotavam surdamente. Ao se falar ali de Getúlio Vargas, João Goulart ou Leonel Brizola, parece que se entra num território sagrado. Até hoje, no entanto, o interior gaúcho é em grande parte governado por remanescentes do regime militar. Ainda se diz que tal vereador ou deputado “é da Arena”, referindo-se aos conservadores com origem no partido criado pelos golpistas de 1964. O PMDB tem força nas grandes cidades. O trabalhismo está espalhado um pouco por todo o estado, mas vem perdendo alento nos últimos anos. Quem cresce no campo é o PT. Em Progresso, o prefeito é do PP malufista e o seu vice, petista.
Getúlio Scheeren, o dono do Sinuelo da Amizade, contou que recebera um telefonema anônimo de alguém ameaçando jogar uma bomba na festa. Raenio Battisti, o secretário de Educação, também atendeu a uma chamada anônima e malcriada. A trabalhista Maria, que preparou o almoço, ligou para Raenio, filiado ao PP, e lhe disse: “Você agora organiza festa para um homem de esquerda, mas o Brizola sofreu como Cesare: teve que se esconder e foi exilado.”
À tarde, o homenageado calçou botas de cano longo, vestiu bombachas, amarrou um lenço no pescoço, botou um chapéu e posou para uma foto de família com cerca de 100 Battisti. O mais velho era nonagenário. O mais novo, um piá ainda nos cueiros. Depois ele visitou um curral, um aviário com 23 mil pintinhos e a Funerária Battisti.
Jantou na casa de Odali Battisti, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. “Foi bom que a direita organizasse a festa, juntou mais gente, mas Cesare só foi libertado porque nós fizemos pressão”, disse Odali. Alguns dos presentes se apresentavam assim: “Muito prazer, eu sou do movimento social.”
Umas vinte pessoas comeram um capeletti in brodo divino e beberam do vinho forte feito ali mesmo. A televisão, em branco e preto, permaneceu ligada. Todos queriam checar se a emissora regional daria notícia do encontro dos Battisti, principalmente os políticos, o que dá o que pensar: será que a festa não fora uma jogada para aparecer na tevê?
Aí todos se puseram de pé e formaram uma roda. Garoava e fazia frio lá fora. Dias antes, a geada queimara o capim nos prados. Mas como o fogão era a lenha, a sala estava cálida. Batendo palmas cadenciadas, eles cantaram o hino da imigração italiana, que chama a América de ramalhete de flores. Os oriundi não resistem a ele:
Merica, Merica, Merica,
cossa saràlo ‘sta Merica?
Merica, Merica, Merica,
un bel mazzolino di fior
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