ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2006
Rock in Pyongyang
Se você tiver que ir a um só festival de rock em 2007...
João Moreira Salles | Edição 4, Janeiro 2007
Jean-Baptiste Kim é um homem de 40 anos, alto, bonito e elegante. Num sábado de dezembro, vestia um terno bem cortado, gravata discreta e um sobretudo cinza que poderia ter sido comprado em Saville Row, a rua dos melhores alfaiates londrinos. Havia marcado o encontro num café de beira de estação, a quarenta minutos de Londres, na pequena cidade de New Malden. Quem o visse na plataforma do trem e conhecesse sua nacionalidade – ele é coreano – poderia facilmente tomá-lo por um executivo da Samsung ou da Hyundai. Engano. Jean-Baptiste Kim está a serviço de Kim Jong Il, o líder da Coréia do Norte.
O seu prenome é francês. Nascido na Coréia do Sul, fugiu para a França aos 19 anos. Cansou-se das perseguições políticas sofridas pelo pai, militante socialista que passou boa parte da vida na cadeia por se opor aos sucessivos governos autoritários que dominaram o país desde o fim da II Guerra até 1987. Adquiriu cidadania francesa. Não revela seu prenome de batismo. “Só alguns membros do governo norte-coreano sabem qual é”, diz.
Sacando um cigarro Red Star, fabricado na Coréia do Norte (“São bem mais baratos do que os daqui”), ele conta que, em Paris, foi abordado por diplomatas do regime de Pyongyang. Começou como negociante de ouro, grãos e armamentos militares – “antes das sanções da ONU”, deixa bem claro. Com o tempo, foi se afeiçoando ao regime. Mantém um apartamento em Pyongyang, cidade que visita pelo menos quatro vezes por ano. Não pode mais entrar na Coréia do Sul, onde ainda tem mãe, avós e três irmãs. Falam-se raramente. “Elas me acham louco.”
Decerto foi essa a impressão que passou ao mundo ao anunciar no sítio da Voz da Coréia – radiodifusora da Coréia do Norte na qual dá expediente – que estavam abertas as inscrições para um concerto de rock em Pyongyang, a ser realizado entre os dias 1º e 4 de maio.
A idéia lhe surgiu em 15 de outubro de 2006. Naquele dia, Kim recebeu um e-mail da Noruega, de uma banda blackmetal chamada Still Het. O pessoal dizia que um sonho deles era se apresentar em Pyongyang. Embora não soubesse bem o que era blackmetal (“Parece que é pior que metal”), Kim teve uma epifania: não seria uma banda só – seriam muitas, reunidas num grande festival pela paz no maior estádio da capital.
Poucos dias depois, quem visitasse o endereço www.voiceofkorea.org encontraria o seguinte aviso: “Se você é uma banda que toca qualquer tipo de rock, incluindo metal, então venha participar do Rock For Peace. Pela primeira vez na história, a Coréia do Norte permite que músicos do Ocidente venham ao coração do país para tocar música capitalista”. A escolha do gênero musical provocou espanto. Por que não, por exemplo, música clássica? “Eu sei o que você está pensando”, ele diz. “Que nós somos atrasados, que não sabemos nada do mundo. Mas eu sei que rock é símbolo de liberdade. Por isso o rock, e não quartetos de corda. Queremos mostrar que somos um povo aberto e livre.”
De fato, são visíveis os esforços para mostrar a face liberal da Coréia do Norte. Num inglês capenga, o aviso garante que, tirando “algumas poucas restrições que nos reservamos o direito de impor”, qualquer banda pode se inscrever, “mesmo se você for dos Estados Unidos”. Idem para o credenciamento da imprensa. Kim explica: “Em geral, não concedemos vistos a jornalistas, mas nesse caso vamos abrir exceções. Até para jornalistas da Voz da América, nossos inimigos figadais. Só pedimos que não venham como jornalistas da Voz da América. Podem se disfarçar de New York Times ou de Wall Street Journal. Nós saberemos que estão disfarçados, mas mesmo assim abriremos as portas”.
A lógica soa curiosa. Para um agente da Coréia do Norte, faz sentido. Antes de responder a qualquer pergunta, Kim contrapõe uma pequena indagação ao interlocutor: “Oficialmente ou extra-oficialmente?”. Pode-se ouvir rock na Coréia do Norte? “Oficialmente ou extra-oficialmente?”. Oficialmente, não; extra-oficialmente, sim. Qual a idade de Kim Jong Il? “Oficialmente ou extra-oficialmente?”. Oficialmente, ninguém sabe; extra-oficialmente, 74 anos. A Voz da Coréia é um órgão do regime? Oficialmente, não – “Nem a CIA sabe o nosso endereço. Não sabem o código postal, o número de fax, nada”; extraoficialmente, sim. O festival já foi aprovado por Kim Jong Il? Oficialmente, não; extra-oficialmente, o homem está animadíssimo.
O diminuto líder (“Oficialmente, não sabemos a altura dele; extra-oficialmente, não chega a 1 metro e 65”) é um entusiasta das coisas ocidentais. Rolex no pulso e iPod no ouvido, cruza seus palácios trepado num Segway, um tipo de patinete saído do seriado dos Jetsons. Ouve música revolucionária soviética, algumas canções chinesas e tudo de Frank Sinatra e Paul Anka. Não consta que “a estrela da manhã”, um de seus apodos mais conhecidos, aprecie rock.
Jean-Baptiste Kim aprecia, mas confessa que está desatualizado. É do tempo de Pink Floyd, Led Zeppelin e Eric Clapton. Das 62 bandas que já se inscreveram, só consegue se lembrar do nome de uma: Death Cab for Cutie. “É que o nome é estranho.” De fato, “Táxi da Morte para Bonitinha” tende a ficar na memória. Da década de 80 em diante, só conhece Bon Jovi. Demonstrando grande perspicácia, explica por que não faz questão dos Stones. “Se eles viessem, o evento viraria ‘Os Stones na Coréia do Norte’. Não quero isso. Mais importante do que chamar atenção para as bandas, é chamar atenção para o festival.” Ainda assim, ouviu dizer que o U2 seria uma boa. “Não conheço a música deles, mas dizem que têm uma boa imagem, falam muito de paz, ajudam a África.” O grupo irlandês ainda não se manifestou. Bob Dylan também não. “Mas já recebemos a inscrição do Neil Young, o Bob Dylan do Canadá. Ele também é pela liberdade.”
Se os sonhos se materializassem, o festival de Kim abriria com The Animals, uma banda dos anos 60 cuja canção “The House of The Rising Sun” faz o coração dele bater mais forte. Na falta do quinteto, que se desfez em 1966, Kim aposta as fichas no rock-country americano da banda Lynyrd Skynyrd. O grupo compõe músicas melancolicamente edificantes (“Porque agora eu sou livre como um pássaro/ E este pássaro você não pode mudar/ Ooooh, ooh, ooh”). Jean-Baptiste Kim gosta, julga correto.
Os Lynyrd Skynyrd não teriam dificuldade em passar pelo crivo das preferências norte-coreanas. As tais restrições que Pyongyang se reserva o direito de impor estão claramente enunciadas no sítio da Voz da Coréia: “As letras não deverão conter louvores a guerra, sexo, violência, assassinatos, drogas, estupro, organizações não-governamentais, imperialismo, colonialismo, anti-socialismo e anti-RDPC [República Democrática Popular da Coréia]”. Kim é um otimista: “As bandas metal prometeram que vão compor outro tipo de letra”. Certeza mesmo, ele só tem uma: “Não quero Ozzy Osborne”. Na medida do possível, gostaria que os rappers também não aparecessem. Bandas brasileiras serão muito bem-vindas.
2007 – ou 95, no calendário norte-coreano, que conta o tempo a partir de 1912, nascimento de Kim Il Sung, pai de Kim Jong Il – será um ano cheio para Jean-Baptiste Kim. Se tudo correr bem, na condição de membro ativo do Partido dos Trabalhadores da Coréia, o partido comunista local, ele será um dos representantes mais em evidência do regime. Garante que, não fosse o cerco imperialista dos EUA, a Coréia do Norte seria mais aberta. Ainda assim, o país está longe de ser a ilha isolada que a imprensa do Ocidente insiste em descrever. Segundo ele, já existem muitas liberdades. Oficialmente, toda influência ocidental é mantida ao largo. “Extra-oficialmente, ao contrário do que vocês pensam, já temos liberdade para ouvir Céline Dion.”