Graduado em música, João Grandino Rodas só toca piano nas horas vagas, em sua casa, no Morumbi, onde mora com a mãe. O reitor defende a polícia na USP e diz que os estudantes não querem mudanças para poder reclamar indefinidamente FOTO: EGBERTO NOGUEIRA_IMÃ FOTOGALERIA_2012
Rodas em ação
A vida atribulada e as polêmicas do reitor da USP
Paula Scarpin | Edição 71, Agosto 2012
Na tumultuada tarde de 22 de janeiro de 2010, seu último dia como diretor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, João Grandino Rodas encontrou tempo para redigir um ofício endereçado à reitoria da Universidade de São Paulo. Manifestava a intenção de emprestar dois tapetes persas “para guarnecer o gabinete do reitor”. As peças haviam sido doadas à faculdade um ano e meio antes por um professor, em resposta a uma queixa do próprio Rodas – as Arcadas não tinham tapeçaria à altura da mobília e do prédio histórico localizado no Centro da cidade. A faculdade foi presenteada com seis tapetes. O diretor distribuiu quatro deles entre salas nobres e guardou os outros dois até o fim de seu mandato. Quatro dias depois de enviar o ofício, Grandino Rodas assumiu o cargo de reitor da USP e pôde receber pessoalmente a encomenda que enviara ao campus para adornar seu gabinete.
O fato, na época, passou despercebido. Veio à tona no final do ano passado, quando, por outras razões, a Congregação da Faculdade de Direito atribuiu a Rodas o título de persona non grata. O Ministério Público chegou a instalar um inquérito para exigir a restituição dos tapetes ao Largo São Francisco, mas o reitor se antecipou ao processo e devolveu as peças.
Perguntado sobre o episódio, Rodas preferiu comentá-lo por e-mail: “A Universidade constitui uma única pessoa jurídica, sendo suas faculdades e institutos dotados de relativa autonomia. O empréstimo de bem, dentro da mesma pessoa jurídica e para fins institucionais, não configura irregularidade ou problema ético, mormente por ter sido feito com os devidos procedimentos registrados em um processo específico. Tal processo foi formalizado ainda na gestão reitoral anterior à presente. Ademais, em se tratando de bens que estavam armazenados e não em pleno uso, como os dois tapetes. Por seu turno, a faculdade nunca exprimiu desejo de vê-los de volta, a não ser, por meio jornalístico, quando das várias outras acusações. Se tivesse havido qualquer pedido, mesmo verbal, eles teriam sido devolvidos antes do que o foram.”
Pessoalmente, o reitor não foge muito ao estilo de sua escrita. Aos 66 anos, usa ternos bem-cortados e ostenta cabelos pintados de acaju, meticulosamente penteados para o lado. Fala alto e gesticula muito, mas suas frases quase nunca têm começo, meio e fim bem definidos. É comum vê-lo atropelar a sintaxe, um pouco afoito, como quem inicia um raciocínio sem concluir o anterior. O traço que mais chama a atenção do interlocutor, porém, não é esse. Rodas costuma arquear os lábios para baixo imediatamente depois de concluir cada sentença, numa espécie de sorriso tenso que não se desmancha com facilidade. O gesto meio automático parece traduzir a preocupação permanente de ser aprovado por quem o escuta.
Numa tarde de maio deste ano, ao passar em revista sua trajetória, Rodas batia as mãos sobre a mesa de seu gabinete de maneira ritmada. O som das abotoaduras na madeira se misturava ao tilintar de xícaras, pires e colherinhas.
“Eles ficam o tempo todo pensando por onde atacar o reitor. Funciona como um vulcão – a lava sobe onde o território é mais frágil”, resumiu. “Eles”, no caso, são estudantes, funcionários e professores com quem Rodas acumulou atritos ao longo dos últimos anos, sobretudo depois que chegou ao comando da universidade.
O episódio mais ruidoso de sua gestão continua sendo a intervenção policial para a retirada de estudantes que haviam tomado a reitoria no final de 2011. Desde o início de seu mandato, Rodas tinha consciência de que a falta de segurança na Cidade Universitária seria o seu maior problema.
Logo que assumiu, em entrevista à Rádio Bandeirantes, ele defendia o reforço do policiamento no campus: “Se você colocar mais polícia preventiva tem um grupo que logo vem dizer ‘é repressão!’. Então vira terra de ninguém. Deveríamos colocar uma placa na entrada da USP: Entre por sua própria responsabilidade.”
A frase final deflagrou uma série de reações contrárias. Mas o reitor ganhou adeptos e um argumento forte depois de 18 de maio de 2011, quando o aluno Felipe Ramos de Paiva foi morto durante um assalto, no estacionamento da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, a FEA. O Conselho Gestor do campus logo aprovou um convênio prevendo maior presença da Polícia Militar na Cidade Universitária. “Isso não estava no planejamento, mas a morte do rapaz obrigou a universidade a tocar nesse assunto difícil”, disse o reitor. “Quando eu estudei aqui, os tempos eram outros, não tinha muro”, disse. “Quando os problemas de segurança começaram, há uns treze anos, montaram uma pequena guarda universitária, que agora tem um contingente de 380 pessoas, e as unidades foram contratando seus seguranças terceirizados. Hoje estão num total de 2 800. Mas é tudo desorganizado e ineficiente.”
A PM nunca esteve impedida por lei de entrar no campus. Mas sua presença – pouco tolerada no ambiente universitário em razão da memória da ditadura militar – era sabidamente escassa. Uma pesquisa publicada pelo jornal Folha de S.Paulo em novembro de 2011, logo depois da ação que pôs fim à invasão da reitoria, mostrava que 60% dos alunos eram favoráveis à presença mais intensiva da PM no campus. Mas havia, ao mesmo tempo, desde a assinatura do convênio, um movimento crescente de resistência aos policiais, alimentado por relatos de cenas de truculência e abusos, tais como revistas a alunos e professores até na saída de bibliotecas.
No dia 27 de outubro, a situação saiu de controle. Três estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – a FFLCH, ou Fefeléche, como é conhecida – foram surpreendidos fumando maconha dentro de um carro. Os policiais deram ordem de prisão, mas o grupo resistiu. Percebendo a movimentação, outros universitários começaram a se aglomerar no local, convocando mais colegas pelo celular. A polícia também pediu reforços. A diretora da faculdade tentou convencer a PM a aceitar que os alunos apenas assinassem um termo de advertência, assumindo o uso de droga ilícita, e fossem liberados a seguir. Não houve acordo. Os estudantes pegos em flagrante foram parar na delegacia.
Uma assembleia convocada às pressas pelos alunos deliberou que a diretoria da FFLCH fosse ocupada em protesto. Depois de uma semana acampados, já com o movimento de resistência bastante dividido, parte dos amotinados decidiu pela ocupação imediata do prédio da Administração Central da universidade. Às 23h30 da noite de 1º de novembro de 2011, um grupo de estudantes invadiu a reitoria arrombando o portão da garagem. Pouco antes de serem destruídas, as câmeras de segurança registraram imagens de uma multidão correndo para o interior do prédio, com os seguranças em fuga. Eram em torno de 100 pessoas, segundo a reitoria – 600, na versão dos próprios invasores. Muitos tinham o rosto coberto por panos ou gorros.
O Diretório Central dos Estudantes, alinhado ao Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, foi contra a invasão. Os alunos que decidiram fazê-la pertenciam a micropartidos à esquerda do psol, como a Liga Estratégica Revolucionária – Quarta Internacional (a LER-QI) e o Movimento da Negação da Negação (o MNN), ou se diziam independentes. Uma semana mais tarde, depois de negociações frustradas e com os ânimos bastante exaltados, 400 policiais da tropa de choque cercaram o prédio às cinco da manhã para cumprir a ordem legal de retirar os estudantes do prédio. Eram, àquela altura, 72. Todos foram levados para a delegacia.
João Grandino Rodas entendeu a reintegração de posse como exitosa: “Eu não posso julgar a questão dos métodos policiais, mas entendo que a polícia não pode entrar em desvantagem. E a prova de que tudo aconteceu na mais perfeita ordem é que não houve danos sérios a ninguém. Digo, nenhuma morte, por exemplo.” Depois de alguns segundos batendo as mãos sobre a mesa, concentrado, o reitor continuou: “O administrador público não pode não tomar providência diante de uma ocupação, ou ele terá problemas de prevaricação. Garanto que a Polícia Militar tomou conhecimento de que cometeu alguns atos impróprios, e isso não deve se repetir. Mas o que esse grupo de alunos quer é que nada mude. Para eles poderem reiterar o mesmo mantra”, concluiu, exibindo o mesmo sorriso tenso nos lábios.
O processo que trata do episódio se encontra no Foro Regional XI, de Pinheiros, na Zona Oeste da capital paulista. Na pasta número 1 do “Caso USP”, como está identificado, lê-se que “o local encontrava-se vastamente danificado, com várias câmeras quebradas, paredes e vidros pichados com inscrições contrárias à atuação da Polícia Militar dentro da Cidade Universitária e também contra o reitor da universidade”.
A pasta número 2 traz fotos da estudante de filosofia Rosi Santos chorando e descabelada, com a legenda: “08/NOV. 11 – Aluna detida tentando atirar um bloco de pedra contra os policiais durante reintegração de posse da reitoria.” A pasta número 5 contém o laudo que descreve sinais da agressão contra a estudante: “Equimose de face interna da boca à esquerda. Equimose de dorso da mão direita e esquerda. Equimose de terço médio da perna direita.”
Sentada num colchonete velho na casa de um amigo, Rosi perdeu a conta de quantas vezes repetiu a mesma história. Enquanto falava, seu olhar era firme, mas as lágrimas escorriam pelo rosto. “Eu estava na moradia estudantil, acordei com o barulho e desci. O choque tinha cercado tudo, tinha cheiro de gás. Dei um jeito de ir para a frente da reitoria e comecei a filmar. Dois policiais se aproximaram, disseram que eu estava detida e me levaram para uma sala escura. Levei um chute e caí no chão. Um deles se sentou nas minhas pernas, perto da minha bunda. Eu gritava muito, então enfiaram uma mordaça de plástico na minha boca. Tentei explicar que era asmática, mas não adiantou nada. Foi só quando eu me acalmei que me levaram para a sala onde estavam as outras meninas.”
A gestão de Suely Vilela, que antecedeu Rodas no cargo, foi marcada por duas invasões da reitoria – uma delas com 50 dias de duração. Os alunos só saíram do prédio depois de um acordo firmado com a reitora. A PM foi chamada ao local, mas não houve reintegração à força. Ninguém foi preso.
“Antes era ‘Fora Suely’, agora é ‘Fora Rodas’. É a mesma coisa há vinte anos”, disse o reitor, apontando para a janela de seu gabinete. Do lado de fora, faixas pedindo a sua saída espalhavam-se pelo campus. Um cartaz ilustrado no Departamento de História diz: “Nero queria ser ator. Hitler queria ser pintor. Rodas queria ser pianista. Arte, vamos incentivar!”
Filho de pai alagoano e mãe descendente de italianos, João Grandino Rodas foi criado entre o Belém e a Vila Maria, dois bairros de classe média baixa de São Paulo. Ele e a irmã caçula, Terezinha, foram matriculados desde os 4 anos num conservatório de piano no bairro, o Sagrado Coração de Jesus. Rodas conta que aprendeu a ler as notas musicais antes mesmo de aprender as letras do alfabeto. Mas, ao contrário da irmã, que chegou a solista da Orquestra Sinfônica Municipal, não tinha bom ouvido para o piano. Dedicado, conseguia se sair bem nas aulas teóricas e de história da música. Quando já estava quase no fim da formação musical, o conservatório mudou de razão social, transformando-se em faculdade – e Rodas conseguiu seu primeiro diploma de graduação em 1964, antes de enfrentar o vestibular.
Quando ele ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a USP permitia e estimulava que os alunos fizessem duas graduações simultâneas. O futuro reitor optou por pedagogia no período noturno. Um curso extensivo de francês na Nossa Senhora Medianeira, dos padres jesuítas, que ocupava suas tardes, também teve equivalência de ensino superior – o que fez com que chegasse em 1970, aos 24 anos, com quatro diplomas de graduação no currículo. Depois de um ano de mestrado em ciências político-econômicas em Coimbra, foi admitido como professor em turno parcial de uma disciplina em direito e outra em pedagogia na USP – “mas o dinheiro mal dava para a condução”, e a dedicação exclusiva à carreira acadêmica foi adiada.
Interessado numa vaga de assistente jurídico anunciada laconicamente no jornal, João Grandino Rodas chegou à Sadia Transportes Aéreos – fundada por Omar Fontana, filho de Attilio Fontana, então dono do frigorífico de mesmo nome. A empresa – que logo se chamaria Transbrasil e chegaria a ser a terceira maior companhia aérea do país antes de falir, em 2001 – tinha na época pouco mais de 500 funcionários. “Na entrevista me perguntaram se eu sabia escrever uma carta em inglês, mas nem testaram. Se fosse hoje, iam pedir três anos de trainee”, disse Rodas.
Apenas um ano depois de entrar na empresa, ele foi chamado pelo patrão. “O gabinete dava para a pista de Congonhas, bem onde os aviões pousavam e levantavam voo”, lembrou-se. Omar Fontana o promoveu a seu assistente, mas impôs uma condição: a secretária seria Danuza Fontana, sua filha de 18 anos. “Aí você já pode imaginar. Ela era uma moça muito alta, bonita.” Dois anos depois, estavam casados. “Eu não acredito que ele tenha feito de caso pensado, eu não tinha nada a oferecer”, disse Rodas.
Ele e Danuza tiveram um filho, que batizaram de Omar em homenagem ao avô. Mas o casamento não durou muito. “Ela tinha psicose maníaco-depressiva. Fizeram todos os tratamentos possíveis e não melhorava”, disse Rodas. Ele conta que um dia os sogros o procuraram para dizer que a única saída possível seria uma lobotomia parcial. Como marido, deveria assinar a responsabilidade pelo procedimento. “Eu pensei: se fizer isso, amanhã eles mesmos vão poder dizer que dei o golpe do baú.” A solução que encontrou foi se divorciar de Danuza. Assim, os sogros voltariam a ser responsáveis por ela, e poderiam autorizar a lobotomia – o que nunca fizeram. Rodas ficou com a guarda do filho e mudou-se para a casa da mãe, que o ajudou a criar o neto.
Nos dez anos seguintes, João Grandino Rodas foi gerente do departamento jurídico da Ford, fez dois mestrados nos Estados Unidos – direito em Harvard e diplomacia pela Fletcher School –, passou pela magistratura do Trabalho e se tornou desembargador do Tribunal Regional Federal. Sua trajetória profissional, um tanto eclética, se dividia entre a docência, a iniciativa privada e a ocupação de cargos na burocracia do Estado.
Acostumado a passar as férias com o pai nos Estados Unidos, aos 12 anos Omar Fontana Rodas já pedia para estudar numa escola norte-americana. João Grandino tentou resistir: “Você é brasileiro, estou cansado de ver analfabeto bilíngue, inclusive filhos de diplomatas”, dizia ao filho. Mas prometeu: “Quando você terminar o ensino fundamental, conversamos.” Aos 15 anos, Omar cobrou a promessa do pai. Foi aceito na McCallie School, um colégio interno só para garotos, na cidade de Chattanooga, no interior do Tennessee. “Ele dizia que Nova York não era Estados Unidos, porque era muito internacional”, lembrou Rodas. “Ia praticamente tudo o que eu ganhava para custear os estudos dele. Porque eu nunca pedi um tostão para a família da Danuza”, disse o reitor.
Em 5 de abril de 1990, o pai recebeu um telefonema do colégio americano. Omar tinha morrido, atingido por um tiro de espingarda. “Nos Estados Unidos eles usam muito armas, compram na esquina. Estavam ele e mais dois alunos, os três armados no pátio. Era perto da Páscoa, eles tinham chocolates com eles. Não sei se foi roleta-russa… não sei o que foi. Eu nunca procurei saber os detalhes.”
Na ocasião da tragédia, Rodas foi orientado por pessoas próximas a processar a escola. Chegaram a lhe dizer que a indenização seria milionária – mas ele não quis levar a história adiante. Ao relembrar a morte do filho, o reitor divagou, deixando frases no ar: “Nunca tinha notado nada que pudesse levar, mas… quem sabe, alguma coisa que… quer dizer… será que? A preocupação. Ele sabia bem a história da mãe. Não se sabe.” Seus olhos neste momento estavam ligeiramente marejados.
Danuza se suicidou seis anos depois da morte de Omar. “Eu encaro muito naturalmente. Isso é coisa que tem que ser, né?”, limitou-se a dizer.
Rodas mora com a mãe até hoje. Para homenageá-la, batizou a casa de “Villa Josephina”, com uma placa na entrada. Localizada no Morumbi, a residência foi planejada em cada detalhe pelo reitor, e levou sete anos, de 1993 a 2000, para ficar inteiramente pronta. No tempo livre, Rodas costuma cuidar do jardim, no qual mistura azaleias, estrelítzias, roseiras, pinheiros, cerejeiras e até um cantinho japonês com uma fonte de bambu. Além da piscina ao lado da casa, o terreno tem dois espelhos-d’água nos fundos, e uma horta planejada em forma de mandala. A entrada principal ostenta duas imponentes colunas neoclássicas. No hall, uma imagem do padre Cícero de madeira maciça disputa a atenção com outros santos. As paredes e o teto dos cômodos – inclusive do pequeno lavabo na entrada da casa – são pintados com estampas rendadas.
Rodas contou que escolheu pessoalmente o estofado de cada sofá durante as viagens que fez enquanto trabalhava no Ministério das Relações Exteriores. “Este tecido escuro eu comprei no Uruguai. Para equilibrar, encomendei este quadro mais alegre a um artista paranaense”, disse, apontando para uma tela em que predominava o verde-limão. Distribuiu sete tapetes pelos 160 metros quadrados da sala principal, mas o destaque é o piano de meia cauda Yamaha – que ele disse ter comprado por 25 mil dólares.
Numa pequena saleta próxima à entrada, o reitor emoldurou três retratos: o de seu pai à esquerda, o seu ao centro, à direita o de sua mãe. Foram pintados pelo mesmo artista, Biaggio Mazzeo, também responsável por muitos dos retratos oficiais de reitores da USP. Sobre a lareira da casa há um pequeno porta-retratos com uma foto do filho Omar, aparentando mais do que os 16 anos que tinha quando morreu. Os traços são idênticos aos do reitor. Ao final de nossa conversa, dona Josephina apareceu para oferecer um café. “Nós temos o mesmo temperamento”, disse ela, “somos extremamente calmos.” Aos 87 anos, ela mais parece ser irmã do filho.
Em 1995, João Grandino Rodas foi indicado para representar o Itamaraty na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça. Atuava, desde 1993, como consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, cargo que considera até hoje o ápice de sua carreira. “Tal função proporcionou a maior honra e o maior prazer profissional que já tive: poder me sentar, tanto na ONU quanto em outras instâncias internacionais, na cadeira reservada ao chefe da delegação brasileira, tendo em frente a placa com o nome BRASIL, e poder falar em seu nome!”, escreveu o reitor por e-mail.
A atuação de Rodas na Comissão foi polêmica. Composto por representantes do governo, das Forças Armadas e das famílias das vítimas, o grupo tinha como objetivo avaliar a responsabilidade do Estado em casos de mortes e desaparecimentos de adversários da ditadura militar, além de aprovar a indenização aos familiares. Rodas analisou 172 processos. Deferiu 127 e indeferiu 45. Entre eles, não reconheceu a culpa do Estado pela morte de Zuzu Angel. Mãe de Stuart Angel, torturado e morto pela ditadura em 1971, a estilista promoveu uma cruzada incansável para encontrar o corpo do filho, que nunca apareceu. Depois de registrar que vinha recebendo ameaças, Zuzu morreu num acidente de carro, no Rio. Rodas votou ao lado do procurador Paulo Gonet e do general Oswaldo Pereira Gomes. Os três foram vencidos pela maioria, convencida pelos indícios de que a estilista fora vítima de um atentado.
Para o advogado Luís Francisco Carvalho Filho, membro da Comissão, as insinuações contra Rodas são descabidas. “Se eu fosse dividir a Comissão entre direita e esquerda, ele estaria no centro. O caso Zuzu Angel era realmente complicado, um acidente”, disse Carvalho Filho, lembrando que o reitor reconheceu a responsabilidade do Estado nos dois casos de maior repercussão pública – as mortes de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, ambas ocorridas a céu aberto, fora das dependências da repressão.
Entre 2000 e 2004, João Grandino Rodas foi presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade. No seu último ano de mandato, a aquisição da Garoto pela Nestlé, feita dois anos antes, foi julgada pelo órgão. Rodas foi o único conselheiro a votar favoravelmente à compra, vetada pelos demais, e declarou à imprensa que o Judiciário poderia recorrer da decisão. No livro Conversando com o Cade, de Pedro Dutra, o relator Thompson Almeida Andrade comentou a atitude do colega: “Isso causou estranheza, pois nós, conselheiros, entendíamos que cabia ao presidente do Cade, uma vez tomada a decisão pelo plenário do órgão, ser o porta-voz daquela decisão e o seu defensor.”
Chanceler nos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, o ex-ministro Celso Lafer recebeu piauí numa tarde de maio último, em seu escritório, na avenida Brigadeiro Faria Lima, região nobre de São Paulo. Falou durante quase meia hora, sem parar,em defesa de João Grandino Rodas, seu amigo pessoal há mais de quarenta anos. Lafer havia preparado um dossiê edificante do reitor. Leu longos trechos do discurso que proferiu em 2006, quando Rodas tomou posse como diretor da São Francisco. Evocou o ensinamento de Miguel Reale sobre “a interação do cognoscente com o cognoscível” para “realçar a importância das múltiplas dimensões da experiência jurídica de Vossa Excelência”, referindo-se a Rodas. Depois, fez questão de me dar uma cópia do documento.
Lafer listou ainda uma série de exemplos para ilustrar o sucesso da atual gestão da USP. Elogiou a modernização da infraestrutura, a alocação de recursos para pesquisa, as bolsas de estudo, as mudanças nos planos de carreira de docentes e funcionários, com aumento salarial a vários deles. “E, naturalmente, pra fechar, eu acho que uma das coisas que caracterizam a gestão do reitor é a coragem. Cícero dizia que a coragem é uma virtude que significa a capacidade de enfrentar os perigos e de suportar os trabalhos. E Montesquieu dizia que a coragem é o sentimento de suas próprias forças. A coragem é uma virtude forte, e eu acho que ele soube enfrentar com destemor o patrulhamento ideológico e a desqualificação da reputação, que é um dos componentes importantes das críticas que a ele são feitas.” Assim que deu a entrevista por encerrada, Lafer fez uma pergunta: “Com quem você já falou?”
A seguir, uma recomendação: “Muito cuidado com o que você vai escrever.”
Dentre os adversários de João Grandino Rodas, o professor de direito penal Sérgio Salomão Shecaira é provavelmente o mais barulhento. Sentado numa bancada em sua cozinha no bairro da Pompeia, na Zona Oeste de São Paulo, ele repassou um a um os episódios que o levaram ao pronunciamento inflamado na Congregação da Faculdade de Direito que culminou com a proposta de intitular o reitor persona non grata no Largo São Francisco. Shecaira tomou três cafés requentados na cafeteira em duas horas de conversa.
Ele e Rodas foram colegas desde os anos 80, quando lecionaram na Unesp, no interior do estado. Nunca chegaram a ser amigos, mas a relação degringolou depois de 2007, já na USP. Diante da ocupação do prédio histórico da São Francisco por estudantes, sindicalistas e membros do MST, Rodas, então diretor da faculdade, chamou a tropa de choque da PM. Shecaira atendeu ao pedido dos invasores para intermediar o confronto com os policiais na madrugada. Apenas os estudantes não foram detidos. O professor contou como encontrou o prédio depois da desocupação: “Havia sujeira, papéis, fralda de criança. Mas não tinha um vidro sequer quebrado.” Rodas não gostou de vê-lo ali. “Ele me olhou com muita raiva e disse: ‘Cada um aqui faz o seu papel.’ Eu me desculpei e disse que só havia impedido que uma arbitrariedade fosse cometida contra os estudantes.”
A Congregação deu razão ao diretor no episódio. “Ele saiu como o homem forte, de gestão firme. Aos olhos do governador, pode tê-lo tornado merecedor do cargo de reitor da universidade”, disse o desafeto.
Os desentendimentos entre Rodas e a São Francisco só vieram à tona no fim de sua gestão. A faculdade havia recebido a dotação de um prédio vizinho ao edifício histórico, e o diretor tinha a intenção de transferir parte da área administrativa e da biblioteca para lá, criando espaço para mais salas de aula. Inspirado pela experiência americana, buscou doações entre professores e ex-alunos para adaptar e modernizar as salas. Conseguiu arrecadar em torno de 360 mil reais, valor insuficiente para o tamanho da reforma. Decidiu ir atrás de mecenas e obteve mais de 2 milhões de reais com o escritório de advocacia Pinheiro Neto e com os herdeiros do banqueiro Pedro Conde. Na reunião da Congregação, Rodas propôs que a faculdade os homenageasse com a nomeação das salas. Houve chiadeira, mas a proposta foi aprovada pela maioria.
O ambiente virou logo a seguir. Parte do novo prédio só foi liberada dias antes do fim da gestão de Rodas. Ansioso para não deixar pendências, ele conseguiu que o Banco Santander financiasse a mudança, em troca de uma agência no local, e autorizou a transferência de 160 mil volumes da biblioteca no dia 23 de janeiro, um sábado, apenas três dias antes de assumir o cargo de reitor.
“Ele contratou, sem licitação, uma transportadora que não tinha nenhuma especialização na área. Misturou livros raros com livros comuns. Colocou tudo num prédio com infiltração, que não tinha nem fiscalização do Contru, não tinha sequer extintor de incêndio”, enumerou Shecaira. Ao tomar conhecimento das críticas, o reitor se exalta: “Aquele grupinho tirou fotos de andares do prédio com infiltração e falou que era a biblioteca, mas a biblioteca fica nos andares de baixo. Aí sai no jornal: ‘Quinhentos livros danificados.’ Não havia nenhum livro danificado!”
O mal-estar provocado pela transferência de afogadilho da biblioteca trouxe novamente à baila a polêmica iniciativa das salas patrocinadas. Descobriu-se um contrato que Rodas havia assinado, no qual se comprometia com a nomeação de uma das salas antes mesmo de submeter a decisão à Congregação. Revoltados, alunos arrancaram as placas com os nomes de Pedro Conde e Pinheiro Neto. Em abril do ano passado, os herdeiros de Conde entraram na Justiça pedindo a devolução da doação, uma vez que o contrato não havia sido cumprido.
O reitor refutou a acusação de que fizera um “contrato de gaveta”. Diz que o documento assinado com a família de Pedro Conde tem a assinatura do presidente da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito e dos presidentes do Centro Acadêmico XI de Agosto e da Associação Atlética, que representam os atuais estudantes. “Como um contrato com essas assinaturas poderia ser reservado?”, perguntou Rodas. E respondeu: “Seria o mesmo que manter um segredo que seja do conhecimento da torcida do Flamengo.” Os adversários do reitor alegam que um contrato com essas características, que condicionava a doação do dinheiro à nomeação da sala, não poderia ser feito sem o aval da Congregação.
Em setembro do ano passado, o reitor decidiu dedicar uma edição especial de seis páginas do USP Destaques – um jornalzinho criado por ele, a serviço da reitoria, que circula internamente – apenas para criticar seu sucessor na Faculdade de Direito, o professor Antonio Magalhães Gomes Filho. Rodas o acusava de promover uma “involução” na administração e dizia que a “situação precária” em que se encontrava a faculdade depois de sua saída poderia ter sido evitada se, “em vez da teoria da terra arrasada e da confrontação, tivesse havido diálogo”.
Magalhães preferiu não se pronunciar, alegando um caso de doença grave na família. Salomão Shecaira saiu em defesa do amigo: “Aquele jeito que o Grandino tinha de conseguir as coisas parou. Ele ligava para o Santander, prometia alguma coisa e em dois dias obtinha 40 mil reais para a mudança da biblioteca. O Magalhães levou dois meses para fazer o processo de licitação e conseguiu trazer o acervo de volta. São formas diferentes de administrar.”
Nove dias depois da publicação do USP Destaques, em 29 de setembro, a Congregação das Arcadas se reuniu para conceder a Rodas o título simbólico de persona non grata. Entre os pronunciamentos que antecederam a votação, o do professor de direito romano Eduardo Vita Marchi foi dos mais indignados: “Apesar das nossas diferenças, ninguém tinha feito o que fez o professor Grandino: disparar contra nossa alma mater, a faculdade”, disse, sob aplausos.
Rodas tentou recorrer, mas a Congregação votou o recurso como inválido, por considerar que persona non grata é apenas uma declaração de desapreço, sem qualquer implicação legal. Ainda que a qualificação não impeça o reitor de circular livremente pela faculdade, ele, obviamente constrangido, deixou de comparecer à única banca de doutorado a que foi convidado depois da decisão.
Reclinando-se na cadeira, em seu gabinete, Rodas zombou dos opositores. “O que juntou esse pessoal, para não falar em soberba, foi a autoestima exacerbada. O Largo São Francisco é simbólico, claro que eu tenho orgulho de ter estudado lá. Mas existe essa cultura quase de invencibilidade. Quando os alunos novos chegam à faculdade, são recebidos com o discurso: Vocês são os melhores do Brasil!”
A escolha do reitor da USP é feita em dois turnos, num processo de eleição indireta. Primeiro, os membros dos conselhos e congregações (quase 90% deles professores titulares) votam nos candidatos. Da lista tríplice que resulta da eleição, o governador indica um nome.
João Grandino Rodas foi o segundo colocado da lista enviada a José Serra no final de 2009. Desde o fim do regime militar, nenhum governador havia optado por alguém que não tivesse ficado em primeiro lugar na votação interna da USP.
“Nós já sabíamos que o Serra não teria problema em indicar alguém que não fosse o primeiro”, disse Marcos Boulos, um dos articuladores da campanha de Rodas. Como dirigia o Hospital das Clínicas na época da eleição, o médico tinha acesso frequente ao tucano. “Eu falei, sim, com o governador Serra. A universidade andava muito desorganizada, invasão de reitoria o tempo todo, dificuldades de manter relação com alunos e funcionários. Nós insistimos para que fosse o Grandino também pela experiência que ele tem fora da academia”, argumentou Boulos, hoje superintendente de Saúde da USP. Segundo ele, a despeito de seu empenho pessoal, “o grande trunfo do Grandino era o apoio do Aloysio Nunes Ferreira, que trabalhou com ele no Cade, e do Celso Lafer, que era amigo dele de longa data”.
Serra chamou Rodas pela primeira vez para uma conversa particular um pouco antes de anunciá-lo. “Eu conhecia o Serra de cumprimentar em coisas públicas. Nunca tinha estado com ele sozinho”, contou o reitor. “Ele foi extremamente sucinto”, lembrou. Cheio de dedos, em dado momento da conversa Rodas arriscou dizer: “No caso, se eu for indicado…”, mas foi logo interrompido. “No caso, não. Porque eu vou te indicar”, atalhou Serra. O encontro não teria durado mais de cinco minutos.
A USP que João Grandino Rodas dirige até o final de 2013 é a principal universidade brasileira. Fundada há 78 anos, em 1934, conta hoje com quase 90 mil alunos (entre graduação e pós), distribuídos em onze campi, e é responsável por metade da produção científica de São Paulo e mais de 25% da brasileira. É também a universidade do país mais bem avaliada nos rankings internacionais. Seu orçamento em 2011 foi de 3,6 bilhões, garantidos pelo repasse automático de 5% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, recolhido pelo governo estadual.
Embora faculdades tradicionais, como a de medicina e de direito, estejam localizadas fora do campus da Cidade Universitária – uma área de 3,6 quilômetros quadrados na Zona Oeste da capital –, é lá que fica o grosso dos estudantes e do movimento da universidade. É também onde fica a reitoria. O reitor, no entanto, já não despacha apenas de seu gabinete. Alugou uma sala e uma vaga de garagem no Centro Empresarial de Santo Amaro, do outro lado da cidade, para fazer reuniões.Patrocinou também algumas experiências, segundo ele “muito interessantes”, da reitoria itinerante pelos campi do interior. Os críticos dizem que ele foge do contato com os alunos. Rodas diz que faz o oposto ao circular. “A ideia é que a reitoria da universidade não é o Vaticano, né? E nem mesmo o papa fica só no Vaticano”, afirmou.
Superintendente do Espaço Físico da USP, o engenheiro Antonio Massola gosta de usar um bordão para explicar por que há quase 200 projetos e intervenções em andamento na universidade: “Choque de gestão e dinheiro.” Professor da Escola Politécnica, há 45 anos na USP, Massola já foi responsável pelas reformas em gestões anteriores, mas diz ter um compromisso diferente com Rodas: “O espírito dele é fazer as coisas e terminar. Ele sempre me disse isso, que no dia em que for sair daqui, não quer saber de obras inacabadas.”
Dentre os projetos que o reitor pretende concluir estão um centro de convenções de 36 mil metros quadrados próximo ao Hospital Universitário e um centro de difusão internacional na área onde ficaram, por mais de quarenta anos, os chamados barracões da USP – construção precária e originalmente provisória que acabou servindo a usos múltiplos ao longo dos anos. “Esse projeto é a menina dos olhos do professor Grandino, porque ele, terminando a reitoria, quer ficar aqui”, disse Massola, apontando satisfeito para o mapa à sua frente.
Os opositores acusam o reitor de gastar mal o dinheiro do contribuinte. Criticam a opção por obras faraônicas e dizem que ele ignora reformas feitas há pouco tempo. A livraria da editora da universidade, a Edusp, por exemplo, havia passado por uma reforma estrutural em 2009, e já precisou ser removida da Antiga Reitoria. Rodas decidiu reformar o prédio inteiro para transformá-lo novamente na sede do governo da universidade. “Vai ser a Antiga Nova Reitoria”, brincou Massola.
As reformas abriram um novo foco de tensão entre Rodas e parte dos professores. Em março deste ano, o reitor publicou uma carta no jornal O Estado de S. Paulo, em que informava que havia “interpelado judicialmente” a direção da Associação dos Docentes da USP, a Adusp. Deveriam responder pela acusação de que “verbas acadêmicas estavam sendo desviadas para construções”.
Professora do Instituto de Matemática e Estatística, a diretora da Adusp, Heloísa Borsari, negou ter dito a frase e a atribuiu a um mal-entendido. “Se a gente tivesse desconfiança, encaminhava uma denúncia ao Ministério Público”, arrematou. O prazo da interpelação expira em 25 de agosto, quando o reitor poderá decidir se abre processo contra a Adusp ou se dá por satisfeito. À piauí, ele voltou a cobrar os professores: “Nós temos aqui há muito tempo esse costume de as pessoas falarem e acharem que não têm responsabilidade. Quando são chamadas a se explicar, vira um drama: ‘Ai, por que colocou na Justiça?’ Em primeiro lugar, a Justiça é algo extremamente natural. Em segundo lugar, aquilo não é um processo criminal, é um pedido de explicações.” Em seguida, mudando o tom de voz, disse com ironia teatral: “Ah, a entidade dos professores, onde se viu processar?” Voltou ao tom anterior e completou, um pouco mais exaltado: “É aquela soberba absoluta! Vai servir para a pessoa pensar duas vezes no que fala. Só pensam na plateia. Tem as reformas, mas tem as bolsas de pesquisa, tem o reajuste salarial dos funcionários, dos professores. Claramente as verbas estão absolutamente divididas.” Ao concluir, abriu mais uma vez o sorriso característico.
Em março deste ano, Rodas criou o cargo de Superintendente de Segurança da USP e nomeou o coronel da reserva Luiz de Castro Júnior para ocupá-lo. Até o mês anterior, o policial dirigia o Departamento de Polícia Comunitária e Direitos Humanos da PM. “Quem comanda a segurança em empresas são sempre egressos da polícia militar ou da civil. Não há cursos específicos de segurança privada no Brasil. Não existe opção. Do universo disponível, o Luiz Castro era a melhor pessoa possível”, justificou o reitor. Quando lhe perguntei sobre as críticas que sua escolha havia desencadeado, ele se exaltou mais uma vez: “Luiz Castro é um ser humano, brasileiro, se reformou e agora tem o direito de trabalhar. Carimbar pessoas pelas funções que elas já tiveram é como o racismo, é contrário aos direitos humanos, é inaceitável!”, disse, enfático.
Poucas semanas antes, na madrugada do domingo de Carnaval, a tropa de choque da PM tinha executado outra reintegração de posse na Cidade Universitária. Tratava-se, dessa vez, de retirar os estudantes de um local ocupado havia mais de três anos, batizado por eles de Moradia Retomada. No passado, o espaço já fora parte do conjunto residencial dos alunos, mas havia sido convertido em escritório administrativo e sede de uma agência bancária quando foi invadido. Os estudantes transformaram o escritório em dormitório e a agência em sala de informática para fazer trabalhos. Rosi Santos, a jovem agredida pela polícia na desocupação da reitoria em 2011, vivia ali.
Nascida em Querência, no interior do Paraná, Rosi tem a pele morena, cabelos encaracolados e rosto de menina. É a primeira pessoa da sua família a entrar na faculdade. Passou em Filosofia na Unifesp, a Universidade Federal de São Paulo, e só depois de um ano conseguiu se transferir para a USP, o que sempre almejara. Chegou a morar por uns tempos na casa de tios em Osasco, e quase abandonou o curso quando eles foram embora para o interior. Seus colegas da FFLCH indicaram a Moradia Retomada, e Rosi conseguiu uma vaga. Morou lá por dois anos e meio, até a desocupação – quando foi detida e fichada na polícia pela segunda vez.
Os 72 alunos que invadiram a reitoria no fim de 2011 e os 12 que estavam na Moradia Retomada no momento da reintegração tornaram-se alvos de um processo administrativo disciplinar. Podem, inclusive, “sofrer a pena de eliminação do quadro discente”, conforme os termos da intimação. Há um precedente na gestão Rodas. Em dezembro de 2011, seis estudantes foram expulsos da USP. Haviam invadido em 2010 a sede da Coordenadoria de Assistência Social da USP, a Coseas, e lá se instalaram. O reitor argumentou que o desaparecimento de documentos e a depredação do patrimônio durante a permanência do grupo no local justificavam a medida extrema.
Em junho, enquanto contava sua história na casa do amigo que lhe oferece abrigo, um terceiro estudante chegou e disse a Rosi que os alunos estavam começando a receber as intimações para depor. Lembrando o caso dos colegas expulsos e vendo-se espelhada no mesmo enredo, ela começou a chorar novamente.
A reitoria afirma que os processos disciplinares serão demorados. Cada aluno será entrevistado por uma comissão de três professores, que deve decidir caso a caso o que fazer. O reitor tende a acatar o parecer de cada comissão. Inegável, e cada vez mais evidente, é o fato de que a gestão de Rodas fechou o cerco a práticas que seus antecessores toleraram, ou diante das quais reagiram sem recorrer à polícia ou à punição disciplinar mais severa.
Antes de receber sua intimação, Rosi Santos pediu transferência de volta para a Unifesp. Hoje estuda lá. Como não tem onde morar, continua dormindo na USP, sobre um colchão no chão da sala de um dos apartamentos da moradia estudantil. Aos 26 anos, ela não queria pôr em risco os anos do curso quase concluí-do, nem fechar as portas para ingressar na pós-graduação da USP. “Até lá, já será outro reitor”, disse.