Sugerir que fosse a um psiquiatra ou psicólogo, no contexto em que ela vivia, era o mesmo que mandá-la para a fogueira em plena Inquisição ILUSTRAÇÃO: ERIK OLSON_WWW.ERIKOLSON.CA
Rompante de loucura
Tirando os ataques dela, bem nítidos na minha memória, quase todo o resto me escapa, e eu tendo a reconstruir as coisas como gostaria que fossem
Margarita García Robayo | Edição 126, Março 2017
A luz que entrava pela porta de casa era escassa e suja. A tarde tinha ficado cor de barro.
Depois de cruzar a soleira começava o corredor, um sulco reto e estreito que desembocava numa sala rodeada por três quartos. Topamos com ela plantada no meio do caminho, pressionando as têmporas como se quisesse espremer a cabeça. “Quero morrer!”, ela gritava. Eu acabava de entrar com um garoto que estava começando a namorar e minha única reação foi olhar para ele envergonhada, encolhendo os ombros: “Ela às vezes faz isso.”
Quando voltei a olhar, ela já estava no chão, de cócoras, balançando-se sobre os calcanhares e chorando. Aquilo não ia durar muito. Depois ela mesma dava risada e assumia aquele papel que sempre lhe caiu como uma luva: a da mãe impulsiva, desajeitada, imperfeita, nervosa e um tanto infantil, mas entregue de corpo e alma à família.
“Entra”, falei para o garoto, “senta, eu já volto.”
Ele sacudiu a cabeça: “Você não vai fazer nada? Não vai chamar ninguém?”
Ultimamente, ninguém mais entrava no jogo dela. Quando começava a ter um de seus ataques (era assim que ela os chamava, que todos os chamávamos), simplesmente a deixávamos à vontade, até que cansasse. Foi o que expliquei a ele.
“Não, não!”, o garoto respondeu. “Você não percebe?”
Voltei a olhar para ela. Estava sentada, com as costas contra a parede e cobrindo o rosto com as mãos.
“Não percebo o quê?”
Pequenos soluços sufocados. Eu já os conhecia. Depois vinha a respiração amplificada: inspirar fundo pelo nariz e expelir o ar com força pela boca, produzindo ruídos cavernosos, como uma velha que não era. E os braços para o alto, para facilitar o trabalho dos pulmões, ela dizia, mas eu achava que era um jeito – o seu jeito – de se render.
“Ei”, o garoto recuou com passos lentos até cruzar o vão da porta. Apontou um dedo na minha direção e disparou: “Sua mãe está mal da cabeça.”
Antes, tempos atrás, eu botava a culpa nas novelas. Décadas de consumo pesado de Televisa e Venevisión. Dramatizações exageradas, deformadas com o gosto de Delia Fiallo, Inés Rodena, Caridad Bravo Adams, Maricarmen e Cuauhtémoc, entre outros. Um pouco disso tudo devia ficar dentro dela. Lesões principalmente.
Era notável seu empenho em não perder um único capítulo, e depois ainda assistir aos resumos do fim de semana; e sempre com o olhar brilhante e trêmulo, à beira da erosão emocional. Minha mãe podia repetir longas falas de Valeria e Maximiliano, mas em compensação era incapaz de escutar com um mínimo de atenção um interlocutor de corpo presente. Certo, falamos de uma abstração arbitrária que faço dela: minha mãe – eu já disse isso tantas vezes, já a vesti de tantos personagens – só responde a seu monólogo interior.
Para ela funciona. Com muitas fissuras, é verdade. Mas conquistou seu lugar no mundo à força de tergiversar sua condição patológica e tomá-la como uma mania inofensiva que teoricamente só faz mal a ela mesma. Quando se é mãe, nada faz mal só a você mesma. Ela devia saber disso, mas nem assim se controlava.
Naquela tarde, ao entrar em casa com o garoto – que, felizmente, não voltei a ver –, percebi que a justificativa que eu tinha inventado servia para enquadrar como inofensivo e bizarro, engraçado até, um comportamento com o qual eu era obrigada a conviver. Ninguém quer conviver com a loucura, é preferível disfarçá-la de outra coisa. Mas naquela tarde, quando um estranho me mostrou o óbvio, deixei de me fazer de desentendida e compreendi que devia me preocupar. E que devia haver algo: um transtorno leve, mas talvez visível numa tomografia; ou alguma disfunção de seu cérebro, que para muitas outras coisas – nomes de atores, aniversários de parentes, brigas antigas, contas domésticas – funcionava como uma máquina perfeita. O fato evidente era que a dimensão do problema excedia a todos nós. E então fazíamos o que sabíamos fazer melhor, porque foi o que melhor nos ensinaram a fazer: negar.
“Ela não tem nada”, disse meu pai. “É só ninguém incomodar que ela fica bem.”
Como se estivéssemos falando de um cão rebelde.
Obedeci. Mais tarde, no entanto, pouco depois de deixar a casa dos meus pais, falei com ela diretamente. Ela havia ido me visitar no escritório onde eu fazia meu estágio de jornalismo e lá ficou, tomando um café com um sorriso tenso. Naquela manhã, tinha atropelado, sem querer, o nosso cachorro, Júnior. Saiu da garagem às pressas, de marcha à ré; ele estava dormindo atrás da roda traseira. Já estava velho, muito velho. E cego, coitado.
“Não sofreu nada”, disse minha mãe. “Só levei ao veterinário, deram uma injeção e pronto.”
“E você está bem?”, perguntei.
Ela fez que sim com um movimento rápido e se abanou com as mãos.
“Que calor”, respondeu. E puxou o ar com força, como se estivesse a ponto de mergulhar no ponto mais profundo do oceano. Mas não foi suficiente, porque em seguida puxou mais e mais, e começou a respirar mais rápido sem parar de se abanar.
Isso se chama hiperventilação, mas eu ainda não dava nome a seus sintomas. Só tinha suspeitas.
“Mas que calor”, repetiu.
“O ar está no máximo”, respondi sem me mexer da cadeira.
Ela havia se levantado: andava em círculos, as mãos na cintura, no exíguo espaço do meu cubículo. Eu tentava controlar a vertigem, mas, enquanto ela circulava, todas as coisas começaram a se mover, eu no centro desse turbilhão emocional tentando fazer com que tudo continuasse ancorado ao chão, que nada voasse pelos ares e se espatifasse contra as paredes.
Naquele dia, depois que ela saiu, dediquei várias horas a pesquisar no Google sobre o que eu suspeitava ter presenciado – uma espécie de crise nervosa que acelerava suas pulsações como se ela tivesse acabado de correr uma maratona. Daí a falta de ar. Quando ela apertava as têmporas era porque, provavelmente, estavam latejando. Como abafar um tambor que não para de retumbar dentro da cabeça?, uma mulher perguntava num fórum de nervosos. Pude ver minha mãe encarnando cada um dos sintomas que constavam nas listas abertas ao lado de fotos de gente desequilibrada:
Explosão colérica.
Perda de controle das emoções.
Impossibilidade de enfrentar
ansiedade com alguma calma.
Tremor, taquicardia, tensão muscular.
Sudorese abundante.
Como curar tudo isso? Com a ajuda de um profissional.
“Procure ajuda, mãe”, eu disse a ela, naquela noite, ao telefone. “Você não está bem.”
E ela teve um ataque.
Sábado era o dia. Minha mãe vestia um jeans agarrado e remexia o cabelo com as mãos, armando uma touceira de cachos pretos que, junto com seus Ray-Ban e as blusas de algodão, lhe davam um ar anos 60. Ainda não tinha adotado aquele que seria seu penteado mais habitual: um coque apertado no topo da cabeça que lhe desanuviava o rosto moreno e a transformava numa perfeita “Sinhá”.
Ela devia ter uns 30 e muitos na época desses cachos, daqueles sábados. Meus irmãos e eu corríamos para o Dodginho para ir à vila e fazer compras num daqueles mercados de antioquenos prestativos que carregavam nas costas os sacos de mercadorias, como mulas. Nosso prêmio era um picolé de framboesa que vendiam lá mesmo e que devíamos traçar em três mordidas para que não derretesse na mão. Mas, antes de chegar lá, havia a estrada para a vila. E, na estrada, o rádio numa estação de boleros que ela sabia de cor – Lindo capullo de alelí… –, e as janelas abertas, o vento úmido, mas fresco. E, na estrada, já quase no final, quando os carros reduziam a velocidade na entrada da vila, ficava a clínica do dr. Morales: um prédio verde-maçã com janelas gradeadas que os loucos agarravam gritando coisas para quem passava pelo acostamento puxando carroças de legumes. Quando éramos pequenos, ríamos daquilo, achávamos fascinante mas também tenebroso. Ríamos uma risada nervosa. Uma ameaça frequente lá em casa era que, se não nos comportássemos, seríamos levados ao dr. Morales. E isso não era uma abstração, como o limbo ou o inferno. Todo mundo sabia muito bem onde ficava o dr. Morales.
No mercado, minha mãe dava ordens aos comerciantes: que lhe carregassem este ou aquele saco, que escolhessem os melhores tomates. E eles diziam “Sim, patroa, pois não”.
Ou talvez não fosse assim.
Minhas lembranças costumam estar contaminadas.
Quem sabe fosse ela mesma a encher as sacolas, como todo mundo, e os sujeitos só a ajudassem a carregar para ganhar uma gorjeta.
Tenho a tentação de recordar de minha mãe jovem como uma espécie de Doña Bárbara[1] que ela provavelmente não foi. A verdade é que, tirando os ataques, bem nítidos na minha memória, quase todo o resto me escapa, e eu tendo a reconstruir as coisas como gostaria que fossem. Minha mãe: uma mulher forte e mandona com jeans justo e quadris caribenhos; minha mãe: uma mulher geniosa que se valia de seus chiliques para conseguir o que queria. Mas o que ela queria? Ninguém jamais descobriu, e as tentativas de acalmá-la e agradá-la logo desandavam em impaciência, irritação e, finalmente, desprezo dissimulado. Logo passa, dizia meu pai, e seguia adiante com seu livro, ou seu noticiário, ou seu prato de comida, fingindo que o choro asfixiante que fazia saltar as veias azuis do pescoço de sua mulher era um zumbido desagradável, mas – por ser constante – suportável.
***
Eu nunca vi o dr. Morales. A ocasião em que o senti mais presente foi quando minha mãe sugeriu que Matilde, nossa empregada, devia dar um pulo lá. Por quê? Porque ela falava sozinha. Várias vezes meu irmão tinha flagrado a moça conversando com as paredes, enquanto batia na roupa que lavava numa bacia. Mas isso era o de menos, o mais grave aconteceu no dia em que Matilde chegou atrasada e contou uma mentira. Bastou um par de telefonemas para minha mãe descobrir o engodo. Assim que Matilde chegou, começou a interrogá-la; primeiro com delicadeza, depois mais incisiva. Foi fechando o cerco aos poucos até se fundir à sua sombra; ficou no seu encalço, repetindo “Diga a verdade, você estava com aquele policial, não é?”. Matilde tentava se safar, como um rato encurralado: “Chega, senhora, por favor, me deixe tranquila.” “Ah, Matilde, como você tem pouco apreço por você.” “Estou implorando, senhora, me deixe em paz.” “Que grande vaca você é, Matilde.” Até que Matilde atirou uns pratos no chão e começou a chorar, gritar, puxar os cabelos. Acabou no chão, sua figura corpulenta encolhida num canto feito uma almôndega: “Ninguém gosta de mim, senhora”, chorava, limpando o nariz com um pano de prato encardido. Minha mãe, mais calma, agachou-se para abraçá-la: “Eu gosto de você, minha filha.”
Essa noite – enquanto jantávamos umas frituras compradas numa biboca de beira de estrada, porque Matilde não cozinhou –, minha mãe disse a meu pai que talvez fosse bom levar a moça ao Morales. Meu pai respondeu, rindo: “Será que é para tanto?”, estava com os lábios brilhando de gordura.
Minha mãe fechou a cara. Seu prato estava intacto: “O que ela fez não é normal”, disse. “Você não percebe que Matilde está louca?”
No início, louco era quem tinha um comportamento diferente do resto. Quem fazia coisas estranhas e destrutivas. Quem delirava e se desviava da conduta convencional. Quem falava e ria sozinho, tirava a roupa e meleca do nariz na rua, e se agachava na calçada para fazer suas necessidades.
Depois, louco passou a ser o epilético e o leproso. E a encarnação do mal.
Há uma época em que os papéis se invertem: loucura e razão são uma coisa só, que em determinados momentos se desdobra para revalidar sua necessária presença no mundo. Começou-se a aceitar que as pessoas não têm de ser loucas por inteiro, que de vez em quando qualquer um pode ter seus “surtos”, e isso não deve ser motivo de escândalo. Os artistas, os boêmios, os libertários bancavam os loucos. Deixavam aflorar essa porção reprimida, e seu comportamento assumiu formas estranhas ou delirantes, mas passageiras.
Há outra época em que a loucura começa a ser tratada com a reclusão. A razão é imposta com violência. Os loucos e os esquisitos são presos porque são uma ameaça para o resto. Não existe o chamado louco manso. Com o tempo, foram batizando e enquadrando as manifestações da loucura. Suponho que uma das mais visíveis deve ser a esquizofrenia, mas há muitas outras.
Não que minha mãe estivesse louca, não exatamente, mas sofria de um desequilíbrio que ninguém encarava como tal. Muito menos ela. E sofria. Muito. Sugerir que procurasse um psiquiatra ou um psicólogo, no contexto em que eu cresci, era o mesmo que mandá-la para a fogueira em plena Inquisição. Então ela ia à igreja, refugiava-se em rezas e cantos lamurientos e no padre de plantão. Na igreja encontrava sossego, se dizia. Mas por que ela precisava sossegar? O que a atormentava? O Diabo. O bom da Igreja é que tem respostas categóricas e indiscutíveis para tudo. Agora sabíamos que, se minha mãe chorava ou gritava ou se encaramujava no chão, era porque o Diabo a cercava, dizia coisas em seu ouvido e a perturbava. Mas se ela conseguisse ficar o tempo todo ligada a Deus, o Diabo não teria mais espaço para atormentá-la. Embora os ataques tenham diminuído nas épocas mais piedosas de minha mãe, nunca acabaram por completo. E por quê, se não havia um segundo em que ela não estivesse ligada a Deus? Porque às vezes há provações, dizia o padre. As provações a que Deus a submetia eram os ataques, para ela não se esquecer de como era sua vida antes d’Ele. Deus fechava e abria a torneira do juízo para pô-la à prova. Deus era um perverso. E ela o aceitava, e depois lhe agradecia com cânticos e mantras. Mais de uma vez eu a vi deixar sua cadeira de balanço para atender ao telefone e, em vez de alô, dizer: “Louvado?” O pasmo de quem telefonava durava até ela explicar, com desculpas e risadas, que estava no meio de uma oração e o telefone a interrompera. Ah, claro, diziam do outro lado, nada mais normal.
Uma vez, quando eu era pequena, sonhei que minha mãe me matava. Ela entrava no meu quarto quando eu estava dormindo, postava-se ao lado da minha cama e me fitava longamente, até eu abrir os olhos. Tinha uma faca na mão e me dizia: corre, corre para bem longe. Mas em seguida avançava contra mim e enterrava a faca na minha barriga.
Acordei aos berros e a vi como no sonho: de pé ao meu lado, mas sem a faca. Ela tentava me acalmar, estendendo os braços na minha direção; eu fugi, pulei para a cama da minha irmã e me agarrei a ela, aos prantos, pedindo que não deixasse nossa mãe se aproximar. Evitei-a durante vários dias. E nesses dias minha irmã se tornou meu escudo protetor. Minha mãe insistia em falar comigo, explicar que tinha sido um pesadelo, que ela era minha mãe e nunca ia enterrar uma faca na minha barriga; mas minha irmã, firme, não cedia: “Para com isso, ela está com medo de você.”
Com o passar dos anos, por questões que não necessariamente tiveram a ver com o desequilíbrio nervoso da minha mãe – ou tiveram, sim, mas que aqui não vêm ao caso –, fui me afastando de toda a família. Por opção, hoje em dia não me relaciono com nenhum deles, muito menos com minha mãe, e isso me leva a recordar seus gestos com o que eu chamo de distanciamento saudável, mas os outros – eles? – podem chamar de crueldade. Aquele gesto da minha irmã, no entanto, é algo que guardo como um tesouro estranho, uma pedra disforme mas valiosa que uma vez ganhei de presente. Não sei por que ela resolveu me proteger daquele jeito, mas continuou a fazer isso até que a liberei dessa responsabilidade e procurei minha pobre mãe mortificada para lhe dizer que já estava bem, que aquilo tinha passado.
Nunca tivemos uma relação próxima, minha mãe e eu.
Quando ainda a encontrava nas minhas visitas à cidade, eu me espantava com as coisas que a ouvia dizer de si mesma, ou de mim, ou de meus irmãos. Era como se ela falasse de estranhos, como se eu estivesse falando com uma estranha. E nesse ponto não tinha mais certeza se era ela ou eu quem construía histórias paralelas. Quando eu perguntava sobre seus nervos, ela dizia que estava ótima, tratando-se com homeopatia, divertindo-se com os netos. Passei a vê-la como uma menina que mentia para se defender, refugiada na mais furiosa inocência. Contava episódios maravilhosos ou trágicos da sua vida familiar com o mesmo movimento frenético de mãos, o mesmo suor no buço e aquelas sufocações crônicas que interrompiam constantemente seus monólogos. O espaço para resposta era cada vez menor; sua atenção para o que o outro dizia, cada vez mais surda. E nesses breves momentos que compartilhávamos ela parecia tensa, mas controlada. Como alguém que guarda muitas coisas incompreensíveis para si mesma – portanto, aterradoras –, e prefere passar cadeados nas portas que as contêm. E quem resolvesse espiar através da fechadura só encontrava bruma.
***
Nosso primeiro afastamento durou cerca de seis anos, mas depois houve uma trégua. Quando a revi, ela estava completamente mudada. Era compreensível: meu pai, seu marido por quase quarenta anos, tinha morrido pouco antes. Ela veio me visitar em Buenos Aires, uma cidade que não conhecia nem nunca pensara conhecer. Mas não tinha curiosidade. Ficava quase sempre calada, fitando o vazio como se fosse um poço de nuvens negras. Falava baixo, comedida, contendo alguma irrupção repentina que não convinha expor. Às vezes só murmurava, e eu lhe dizia “O quê?”. E ela: “O quê?” Os olhos baços, avermelhados. E que está tudo bem, tudo tranquilo, perfeito, repetia.
Estava deprimida. Era óbvio.
Por que você não fala, mãe?
Encontro refúgio no silêncio de Deus.
Insisti para que procurasse um médico, que aquilo se curava com um comprimidinho de nada que a pessoa toma no café da manhã. Era simples, menti. Ela respondeu que sim, que iria, só para não discutir, porque essa era a nova tônica. Numa das últimas tardes que esteve por aqui, enquanto almoçávamos num lugar elegante e cheio de luz, ela ficou olhando longamente pela janela até que seus olhos se encheram de lágrimas. Fora havia árvores com flores roxas, jovens que iam e vinham com roupa primaveril, crianças com a mãe e uma mochila colorida nas costas. Tentei dizer algo. Sou péssima para dizer coisas.
Ela falou: “Não sinto nada, nem o sol me esquenta.”
Nas novelas que minha mãe acompanhava, a heroína sempre sofria um trauma redentor. Muitas vezes enlouquecia, mas também podia ficar cega ou perder a memória, e assim abrir espaço para uma nova vida, que era exatamente o oposto de sua vida anterior. Era como se a perda da consciência e/ou das faculdades a libertasse do seu presente cinzento e a pusesse diante de um horizonte esplêndido e promissor, sem envolver qualquer responsabilidade da sua parte. Graças à tragédia – involuntária, inesperada –, ela conhecia o amor de sua vida ou seus verdadeiros pais – ricos e velhos, prestes a lhe deixar toda a sua herança –, ou alguém que descobria sua beleza oculta pelo borralho e fazia dela uma grande modelo.
Às vezes, tentando entender um pouco as coisas, eu me pergunto se minha mãe não era simplesmente uma mulher insatisfeita em busca de uma saída. Então eu a imagino olhando ao seu redor com frieza, pensando que a única forma de escapar de tudo aquilo era uma fuga de consciência. Uma mulher como ela – cheia de temores e de culpa, dependente ao extremo – nunca teria podido planejar uma fuga real. Nem se entregar ao álcool ou às drogas, porque não estava dentro de suas possibilidades emocionais cair no vazio – ou no vício – de braços abertos e olhos fechados. Por quê? Por causa do inferno: bêbados, drogados e suicidas vão direto para lá. Os loucos não, porque, para cometer um pecado, é preciso ter consciência dele. Na lei divina, ao contrário da humana, a ignorância do pecado livra a pessoa do castigo. A alternativa de minha mãe era, portanto, inventar válvulas de escape capazes de situá-la em universos paralelos, onde não existiam seus filhos, nem seu marido, nem aquela casa onde ela passava os dias pairando como um balão.
Mas, honestamente, por mais argumentos que eu me apresente, essa hipótese também não fecha, porque – de novo – a lembrança mais forte que guardo de seus ataques é o sofrimento que lhe infligiam. Era dor de verdade. Era impotência e angústia. Eram urros pedindo ajuda e compaixão. Custo a acreditar que na época nenhum de nós visse tudo isso, porque agora o vejo claramente. Uma vez ouvi dizer que, quando você está muito perto de alguém que enlouquece, acaba virando um voyeur. Algo entre o choque e a morbidez toma conta dos ossos e da vontade, e você não consegue fazer nada além de assistir à queda com a frieza de um sociopata. Não sei se é verdade, nem sequer lembro quem me disse isso: talvez seja algo que eu mesma inventei para aliviar a minha culpa.
Também tenho boas lembranças de minha mãe. Em geral estão encapsuladas naquela faixa de seus 30 e tantos, quando ela me parecia linda e feliz com seus cachos e seu jeans, e seus filhos a bordo do Dodginho. Não que eu tenha escolhido essa imagem entre as muitas que me vêm à mente. Ao contrário, algumas vezes me vi fixada numa velha foto, numa esquina que talvez já não exista, em episódios fortuitos que de repente me assaltavam no meio de um jantar ou de uma conversa sem relação direta com a lembrança. Quando penso em minha mãe – que agora deve estar em sua casa, cercada por netos, novelas e crucifixos –, é assim que me lembro dela. Estamos num sábado, na estrada a caminho da vila, sua voz cantando boleros melosos – Si tú supieras mi dolor, correspondieras a mi amor y calmaras mi sufrir… –, enquanto fora passa o mundo cruel e verdadeiro. Foi esse o resguardo que minha memória escolheu, porque aí, bem aí, a ameaça não nos alcançava. Decerto aqueles que entregavam os loucos ao dr. Morales – alguns, pelo menos – acreditavam que as grades os manteriam a salvo de seus tormentos, e não o contrário.
E foi assim mesmo – confinados – que resolvemos lidar com os ataques de minha mãe. Não há juízo que resista. Acho que consegui sair, mas arranhada pelo desvario, com a ideia fixa de correr para bem longe e só olhar para trás para tomar algumas notas distorcidas e, num surto, escrever este texto.
─
[1] Doña Bárbara é um romance realista do venezuelano Rómulo Gallegos, publicado em 1929, muito conhecido na América Central. Leitura obrigatória no ensino médio na Venezuela, trata de um embate entre civilização e barbárie.
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