FOTO: SATIRO SODRÉ_CDBA
Rotina de 15 mil braçadas
A preparação do velocista Cesar Cielo para sua primeira olimpíada, em meio a uma safra de recordes, e a entrada em cena do "doping de armário"
Dorrit Harazim | Edição 21, Junho 2008
Cesar Cielo Filho não dormiu bem na noite de 17 de fevereiro. O hotel da cadeia Best Value em Columbia, no estado do Missouri, no fundão da América, não era lá essas coisas e, para piorar, ele havia sonhado que um australiano batera o recorde mundial na sua especialidade, os 50 metros nado livre. Despertou com um chute na porta do quarto.
– Nossa! O que é que está acontecendo? – perguntou, ainda sonado.
Era Brett Hawke, seu técnico na Universidade de Auburn, no Alabama, que irrompera no quarto à força porque a porta estava emperrada. Sem intróitos, Hawke respondeu:
– O Eamon bateu o recorde mundial: 21.5.
Tradução: em Sydney, do outro lado do mundo, um australiano de 22 anos, Eamon Sullivan, havia pulverizado o recorde mundial da prova dos 50 metros nado livre, a mais veloz da natação, com o tempo de 21 segundos e 56 centésimos. O pesadelo de Cesar Cielo Filho não fora premonição nem coisa de vidente. Devido à diferença de fuso horário com a Austrália, a notícia tinha alcançado o técnico de madrugada e, pelo celular, ele tratou de repassá-la de imediato a seus pupilos. Cielo ouviu a mensagem em meio a um sono profundo e acabou imaginando ter sido um sonho.
Não era apenas um recorde a mais a ir para as calendas. Era um recorde-fetiche. A marca fora estabelecida, oito anos antes, por um ícone das piscinas, o russo Alexandr Popov, e parecia não ter data de vencimento. Antes da era Popov, o americano Tom Jager atravessara uma década inteira sem ter sua marca superada. Ou seja, não se bate, ou melhor, não se batia, o recorde dos 50 metros a toda hora.
– Achei melhor o Cesar receber a notícia por meu intermédio e zerarmos logo o assunto – contou Brett mais tarde. – Não queria que ele fosse surpreendido na piscina por alguém lhe assoprando a novidade pouco antes dele competir.
Naquela mesma manhã, “Cesão”, apelido familiar do brasileiro, disputaria os mesmos 50 metros livre no Grand Prix de Missouri. Ao chegar ao parque aquático para o aquecimento, cruzou com o eterno bad boy da natação, o americano Gary Hall, dono da prova em seu país.
– Você ouviu que o recorde mundial caiu hoje? – lançou Cielo, sem qualquer inocência.
– Hoje? – resmungou Gary, com cara de sono.
– É, dos 50 livre. O Eamon. 21.5.
O americano abriu bem os olhos, botou a mão na cabeça e foi saindo. “Pronto, acabamos com o dia dele também”, comentou o brasileiro para o velocista francês Fred Bousquet, seu colega de Auburn. Resultado daquela manhã: Gary Hall em último lugar, Bousquet em terceiro e Cielo em primeiro, com um tempo de 22s01. De quebra, também saiu vencedor dos 100 metros.
Bom sinal para o brasileiro de Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista, que, aos 21 anos, soube enfrentar com disciplina a nefanda surpresa australiana. Nos dias e semanas seguintes, haveria mais notícias ruins, várias aliás, quase uma avalanche delas, e foi possível aferir com acuidade como funciona a cabeça de um competidor sob pressão.
Para Cesão, o ano de 2008 começara auspicioso: quarto melhor tempo do mundo nos 50 e 100 metros, curva em idílica ascensão, nome recorrente como concorrente a medalhas olímpicas em Pequim. Enfurnado na rotina de um dos celeiros de campeões da natação americana – a Universidade de Auburn foi pentacampeã nos seis últimos campeonatos nacionais dos Estados Unidos –, Cielo procurou se blindar.
Cinco semanas após o GP de Missouri, e já de volta à árida monotonia dos treinos em Auburn, Cielo acompanhava no laptop de seu quarto a disputa dos 100 metros livre, outra especialidade sua, pelo Campeonato Europeu. Pimba: já na semifinal daquela que é considerada a prova mais nobre da natação, um francês, Alain Bernard, atropelava o recorde mundial que também se mantinha há oito anos. “Safado”, pensou o brasileiro. “Ele fez o tempo que eu tinha decidido fazer, 47s50. Vou ter que me testar. E já.” Foi direto falar com o técnico:
– Quero dar um tiro de 100 metros amanhã – pressionou Cesão.
Brett Hawke, que é veterano de duas olimpíadas e conhece o temperamento ardido dos velocistas (ele mesmo pertenceu à tribo), não se perturbou. “Eu te daria 1 milhão de dólares se você fizesse o tempo do francês. Só que não vai ter tiro nenhum amanhã para você não se decepcionar. Você não iria conseguir – ainda não é o momento de você explodir na água”, explicou o técnico. De fato, todo o treinamento do brasileiro estava voltado para ele brilhar, primeiro, no campeonato universitário americano, que ocorreria poucos dias mais tarde. E só depois nos Jogos Olímpicos de Pequim.
Na quinta-feira, 27 de março, uma nova bomba estourou novamente em Sydney: Eamon Sullivan, sempre ele, baixara para estarrecedores 21s28 a marca dos 50 metros, que já havia trocado de dono duas vezes nesse meio tempo. Ao sair da piscina, Eamon ainda lançara uma farpa aos adversários: “Espero que estejam tremendo nas botas.” Cesão relembra ter tido rompantes de dúvida, do tipo “e agora, o que eu vou fazer? Vou ficar com vergonha de nadar?”.
Naquele dia, o velocista brasileiro estava em Federal Way, cidade-dormitório de 88 mil almas no estado de Washington, quase fronteira com o Canadá, com uma missão que não admitia falhas: honrar as cores laranja e azul-marinho de Auburn na competição mais importante do calendário americano. Estrela máxima dos Tigers, a temida esquadra de sua universidade, Cielo não tinha tempo nem espaço para tremedeiras. Era vencer ou vencer.
Entre eliminatórias, provas individuais e revezamentos disputados em jardas (1 jarda = 0,91 metro), Cesão teve de nadar treze vezes. E saiu consagrado da cultuada piscina Weyerhaeuser – a maior, senão única atração da insossa Federal Way. Sozinho, ele fez 47 dos 262 pontos da equipe, quebrou o recorde mundial das 50 jardas, tornou-se o primeiro do mundo a nadar 100 jardas abaixo de 41 segundos, e ainda entrou para os anais da NCAA (National Collegiate Athletic Association, ou Associação Atlética Universitária Nacional) como campeão nas duas provas, dois anos seguidos, um feito que não ocorria desde os tempos do colosso Matt Biondi na temporada de 1987–1988.
Sair consagrado pela NCAA é coisa grande nos Estados Unidos, e já levou Cesão a uma recepção na Casa Branca, com direito a encontro e sessão de fotos com o seu ocupante. A entidade foi fundada, em 1906, pelo presidente Theodore Roosevelt para regulamentar o esporte amador. Ela talvez nem existisse se o filho do presidente, Ted, não tivesse quebrado a espinha num jogo de futebol americano defendendo a camisa de Harvard. Roosevelt achou que deveria existir uma estrutura nacional para lidar com problemas relativos a lesões esportivas e convocou os presidentes da elite acadêmica – Harvard, Yale e Princeton – para discutir o tema. Hoje, a Associação reúne mais de 1 200 universidades e faculdades, tem sede de 13 mil metros quadrados em Indianápolis, no estado de Indiana, recursos e poderes comparáveis aos de um ministério do esporte.
Nem todo atleta estrangeiro resiste ao tranco de migrar para uma grande universidade americana em busca de melhores condições de treinamento. Costuma esmaecer rápido a euforia inicial de ter sido selecionado no mercadão global de jovens com potencial atlético. Para brasileiros, o mais duro do aprendizado consiste em não se anular no isolamento, solidão e rigor impessoal da relação com o técnico. Para fazer jus a cerca de 35 mil dólares anuais (algo como 59 mil reais) de uma bolsa de estudos plena, Cesar Cielo Filho precisou fazer adaptações profundas. E rápidas.
Cesão era um calouro recém-chegado a Auburn, de 19 anos incompletos, quando experimentou o seu primeiro choque físico-emocional. Naquele inverno de 2006, o manda-chuva do Departamento de Natação da universidade ainda era o venerado David Marsh, eleito dez vezes Técnico do Ano pela NCAA, e técnico da equipe dos Estados Unidos em duas olimpíadas. Fora Marsh quem mexera os pauzinhos para a contratação imediata de Cesão, ao vê-lo competir num mundial de piscina curta, em Indianápolis.
“Era meu segundo mês no Alabama”, relembra o brasileiro, “e eu estava começando a me adaptar aos treinos – na verdade, ‘sobrevivia’ a eles.” Nenhum dos cinqüenta e tantos outros nadadores da equipe tinha idéia de quem era, nem o que sabia fazer na água, aquele novato tropical de cachos loiros, olhos verdes e nariz arrebitado. O dia começara às cinco e meia da manhã, com uma série muito forte, daquelas de moer. No período da tarde, novo massacre. Ao final, o chefão Marsh ordenou que todos se posicionassem para um tiro de velocidade de 50 metros.
– Estou exausto, não vou conseguir. Acho melhor eu não participar – tentou ponderar Cesão, falando baixo.
Marsh fez que não ouviu e repetiu a ordem sem desviar o olhar do infinito. O tiro foi dado e o brasileiro ancorou como náufrago, dois corpos atrás do resto do grupo. “Eu estava consumido de raiva, humilhação e vergonha”, conta. Ainda com os óculos de natação lhe escondendo os olhos, tomou coragem e foi se queixar com o técnico:
– Eu sei que sou melhor que esses caras e tive que ver eles me destruírem hoje – conseguiu dizer.
Em vez de responder, Marsh ordenou que o brasileiro retirasse os óculos antes de se dirigir a ele. Questão de disciplina. Só que atrás dos óculos apareceu um par de olhos marejados de raiva e exaustão. O grandalhão Marsh levou o calouro recém-chegado para um canto mais reservado da piscina e só então falou. “Desculpe ter desapontado você hoje. Foi um erro. Eu sei, e você sabe, que é o melhor aqui. Se quiser, pode fazer outro tiro de 50 metros e mostrar quem é o melhor nadador desse time.” Cielo, esgotado, não conseguia dar mais braçada alguma e preferiu armazenar a raiva para quando precisasse dela. E Marsh, ao despachar o pupilo para o vestiário, fez uma previsão: “Mantenha a cabeça erguida. Hoje foi um dia importante na sua carreira.”
A mãe do atleta, Flávia Brito Lira, que tem atuação capital nos bastidores da carreira do filho, aprendeu a apreciar o estilo do americano. “Ele é ideal para o Cesão, que agüenta pressão muito bem”, acredita ela. “Logo na primeira competição do menino, o técnico exigiu: ‘Vai lá e ganha os 50 metros.’ No Brasil, você seria crucificado se dissesse algo parecido. Aqui leva-se tudo para um lado por demais pessoal. Se você troca de técnico, ele já te vira as costas e acha ruim.”
Ricardo de Moura, o roliço diretor técnico da natação brasileira, que há dezoito anos trabalha para fazer avançar o esporte no país, tem opinião fechada sobre o excesso de intimidade entre técnicos e nadadores no Brasil. O “professor”, como é chamado pelos atletas mais jovens, inclusive Cielo, chegou aos 56 anos de idade com poucas vaidades e uma convicção: proximidade demais atrapalha. “Posso ser padrinho de casamento de não sei quantos nadadores, mas há uma linha demarcatória que eles sabem que não devem atravessar.”
Moura, que em agosto comandará sua quinta equipe olímpica, é da época em que a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos, a CBDA, não tinha nem pó de café, nem resultados de provas. Está na sua terceira geração de atletas, pais de atletas e técnicos, e acaba de tomar uma decisão de alta voltagem a respeito da equipe que vai à olimpíada: “Vou botar minha cara a tapa e talvez leve chumbo dos treinadores nacionais, mas decidi convocar Brett Hawke para ser o técnico do Cesar também em Pequim. Todo atleta está interessado numa coisa que se chama resultado, e para o Cesar a diferença entre Brett ir ou não ir está na relação direta entre ele ter mais ou menos chances de ganhar uma medalha.”
Duas olimpíadas atrás, em Sydney 2000, a CBDA já havia convidado uma penca de técnicos americanos que treinavam brasileiros nos Estados Unidos para integrar a delegação nacional, com todas as despesas pagas. “Foi um horror”, reconhece Moura. “Eles desembarcaram sem qualquer compromisso conosco, com a nossa programação, só queriam saber de ingressos para a cerimônia de abertura, e nossos nadadores, com raras exceções, ficaram à deriva. Como na época briguei muito contra aquele estado de coisas, agora vão tirar o meu couro por chamar o Brett. Mas vou assumir. Sei que é o melhor para o Brasil.”
Basta acompanhar a rotina do brasileiro durante uma semana para perceber que, de fato, Cesar Cielo Filho e a estrutura do Departamento de Natação da Universidade de Auburn foram feitos um para o outro. E isso inclui o relacionamento entre técnico e atleta, que foi recebendo ajustes e sendo refinado até chegar ao presente estágio de interesse mútuo. Um ano atrás, o vulcânico David Marsh decidiu trocar Auburn pelo olimpo da natação americana – ele será um dos técnicos que chefiará a esquadra U.S.A. Foi substituído por Richard Quick, cuja bagagem também vale quanto pesa: seis Jogos Olímpicos como técnico-chefe ou técnico-assistente, mais de quarenta anos de profissão. Mas o estilo é diferente, a começar pelo visual. Em treinos na novíssima piscina olímpica ao ar livre do campus, Quick combate as temperaturas tórridas do Alabama envergando um chapéu claro à la Crocodilo Dundee (“para ser eficaz, a aba precisa medir no mínimo 4 polegadas”, ensina), camisa branca de mangas compridas, calça comprida branca, e o rosto alvo besuntado por protetor solar fator 60.
Embora Quick tenha a última palavra em tudo o que se refere ao Departamento de Natação de Auburn, ele delega bastante. Com a equipe de atletas dividida em fundistas, nadadores de meia-distância e velocistas, cada uma com seu técnico específico, e futuramente redesdobrada em nado borboleta, peito e costas, coube a Brett Hawke ter sob sua guarda o grupo estelar do qual faz parte Cesão: o dos velocistas olímpicos. Além do brasileiro, há Alexei, um croata encrenqueiro, o francês Bousquet, um australiano e dois americanos. Yakob, um dinamarquês que fazia parte da seleta e era o amigão do peito de Cielo, jogou a toalha numa briga com Marsh. Deixou um vazio difícil de ser preenchido na aridez de sentimentos que prevalece em ambiente tão competitivo.
O próprio Cielo narra um episódio que ainda o deixa atônito. Ele tinha passado seis meses no Brasil para recalibrar sentimentos e rever a família, e retornara a Auburn todo animado. Alegre, apresentou-se a Marsh, que dispensou os cumprimentos de boas-vindas. “Ele me avaliou como se eu fosse um cavalo de corrida. Apalpou meu braço com um ‘hum, você aumentou de musculatura, bom’ e observou, satisfeito, que meu pé também tinha crescido. Me radiografou por inteiro. Me senti como um uma mercadoria em exposição.”
Cielo procura driblar as idiossincrasias locais, que não são poucas. A cidadezinha de Auburn vive em função de uma universidade com 22 mil alunos, mas tem apenas dois barzinhos próximos. Em ambos, só toca música country e as mesmas garotas que no campus circulam de shortinho ou pijama se materializam à noite em vestidos de florzinhas de desanimar qualquer um, ainda mais brasileiro. Outra bizarrice é ter de guardar a bicicleta a sete chaves para não ser roubada, mas poder deixar a porta da casa aberta ou a chave no carro destrancado, sem o mais remoto perigo de furto.
Cesão mora numa típica casa americana de dois andares, sem qualquer cerca, muro ou grade, que divide com um nerd canadense, também nadador por Auburn. O brasileiro observa com interesse quase arqueológico as montanhas de lixo, bagunça, sujeira, restos de comida e pilhas de roupas espalhadas pelo quarto do colega, mas atribui o caos ao excesso de estudos. Ademais, o canadense é inofensivo. O perigo vem da casa vizinha, também alugada para estudantes-atletas.
Um dos inquilinos é o paulista Roberto Mendes Martinez, antigo companheiro de treino de Cesão, que lhe conseguiu um estágio de três meses junto ao Departamento de Natação para robustecer o seu currículo de educação física nas Faculdades Metropolitanas Unidas, a brasileira FMU. A presença de Roberto Martinez tem sido um bálsamo para o campeão brasileiro. Eles se entendem sem precisar falar.
É o segundo morador da casa vizinha que dá calafrios em Cielo. “Ele tem problemas, acho que é maluco”, resume, educada e diplomaticamente, Cesão, sem entrar em detalhes. A figura é o velocista americano Steve Scheren, que gosta de assistir televisão com uma espingarda no colo e brinca de apontá-la para eventuais visitantes. Graças à liberalidade da legislação vigente no estado do Alabama, há pouco tempo Scheren ainda adquiriu uma pistola automática.
Para quem é bolsista estrangeiro na terra de Mark Spitz, e, sobretudo, se começar a derrotar os nativos, convém estar preparado para alfinetadas e cotoveladas. Algumas são leves, mal fazem cócegas. Já outras apontam para algo menos inofensivo. Antes de subir no bloco de largada, Cesão tem o hábito de se estapear todo – pernas, braços, tórax. Às vezes com tamanha força que as marcas lhe ficam no corpo por vários dias. “A bateção serve para me deixar mais alerta, acho que vou nadar mais rápido, só isso. Não é um ritual nem segue qualquer seqüência”, explica. Não tardou para que aparecessem blogs de nadadores americanos qualificando o brasileiro de “bárbaro”, “sem classe”, “primitivo”. Ele registra e releva. “Até entendo que os americanos, que são todos certinhos, me achem meio bárbaro porque choro, jogo o sagrado troféu universitário para a minha mãe na arquibancada, sou emotivo mesmo. Sou brasileiro. Mas não grito nunca. Tenho horror a barraco.”
Neste sentido, o fato de estar sendo treinado por Brett Hawke, que é australiano e não americano, ajuda. “Minha relação com os nadadores estrangeiros daqui acaba sendo mais suave”, acredita o jovem técnico de 32 anos. “Com Cesar, estabelecemos uma afinidade imediata, fizemos opções semelhantes na mesma época de nossas vidas [ele também foi bolsista de Auburn] e suas barreiras me são familiares.”
Dois meses atrás, ainda com seus feitos na NCAA ecoando pelas piscinas americanas, Cielo anunciou que deixaria de competir no circuito universitário para se tornar profissional, isto é, poder fechar contratos publicitários e começar a ganhar dinheiro, dinheiro a sério, com a venda de sua imagem. O barulho na blogosfera subiu de tom, beirando o estapafúrdio. “Ele nunca foi amador”, acusava um blogueiro. “O brasileiro recebe uma grana por baixo do pano de Charles Barkley”, dizia outro, referindo-se ao astro da NBA dos anos 80 que se notabilizou pelo estilo prendo-e-arrebento, dentro e fora das quadras de basquete, e possivelmente o ex-bolsista mais famoso de Auburn.
Por temperamento, formação e estilo, Cesão se situa a meio caminho entre o duo de ouro da geração anterior à sua. Enquanto o dedicado Gustavo Borges sempre foi o genro dos sonhos de toda mãe casamenteira, Fernando Scherer era o irresistível predador que treinava um semestre ao ano e surfava nas pistas de dança nos outros seis meses. “Acho que conheci pelo menos cinco noivas oficiais do Xuxa em um só ano”, relembrava Gustavo no mês passado. É claro que há mais estofo por trás desses clichês, pois ninguém consegue uma medalha olímpica sendo apenas metódico ou baladeiro. Mas tanto a dupla Gustavo-Xuxa como Cesar Cielo Filho têm uma característica em comum: os três nasceram em ambientes familiares estruturados, funcionais e sem carências materiais ou emocionais.
No caso de Cesão, o DNA familiar tem um ingrediente extra: todos são tarados por água. “Ele nasceu prematuro, narigudo e feinho que só Nossa Senhora”, conta o pai pediatra, enquanto atende a um casal com criança no colo que veio bater no portão de sua casa. Coisas de cidade do interior. Também não é raro ver Cesar Cielo pai dar uma consulta na rua, a caminho de sua clínica ou de algum hospital público. Além de ser secretário de Saúde de Santa Barbara d’Oeste, ele também chefia o Departamento de Natação do clube esportivo da cidade. A mãe, Flávia Lira, filha de nordestino e formada em educação física, nadava costas e faz doutorado visando provar laboratorialmente que a natação diminui as células inflamatórias na asma. Fernanda, a irmã de 17 anos, também velocista competitiva, acaba de retornar de uma clínica de seis meses no Canadá. Até o cão labrador da família passa o dia dentro da piscina quando Cesão está em casa.
O cordão umbilical entre os Cielo é forte e assumido. Em momentos de tensão, emoção ou saudade – o que, para o nadador em Auburn, pode ser sinônimo de todos os dias ou várias vezes por semana –, Cesão telefona para casa. Em geral para extravasar, desabafar, xingar e depois sossegar. Raras vezes para pedir conselho. Os pais aprenderam a ficar horas só ouvindo.
Embora Cielo traga as emoções sempre escancaradas, ou talvez justamente por isso, nem sempre é fácil ser seu treinador. “Ele não tem medo de revelar uma ampla gama de emoções na frente de todos, e isso às vezes é problemático”, admite Brett. Sua permanente cobrança a si mesmo costuma deixar o grupo sem compreender por que ele sai arrasado de um treino no qual tem desempenho melhor do que os demais. Resposta: porque ficou aquém de sua própria expectativa.
Brett reconhece que foi graças ao pouso inesperado de Flávia Cielo em Auburn, em janeiro deste ano, para uma conversa franca, que as arestas mais emotivas foram aparadas. “Ela me abriu o mapa de sentimentos mais profundos do atleta”, diz o técnico. “Limpamos o terreno.” Quanto às diferenças técnicas entre as prioridades de Auburn e as da CBDA, elas já haviam sido solucionadas dois meses antes, quando Ricardo de Moura desembarcou na cidade com uma agenda na mão. Foi, possivelmente, a primeira visita de um diretor-técnico estrangeiro para tratar de questões envolvendo um atleta bolsista.
Cesão estreou cedo no esporte. Tinha menos de 8 anos quando decidiu que queria “aprender a nadar direito” e iniciou-se na única piscina que existia em Santa Bárbara d’Oeste, a céu aberto. (Hoje, modernizada e aquecida, ela ostenta o nome do filho da terra: Cesar Augusto Cielo Filho.) Logo em sua primeira competição infantil, ele chegou com meia piscina de dianteira. Ao estrear numa de 50 metros, repetiu o feito. Foi empilhando vitórias e recebendo aplausos até cruzar com um meteoro chamado Guilherme Guido, que bateu o recorde brasileiro dos 50 metros crawl e, em 1996, se entronizou como campeão nacional. Cesão sequer se qualificara para a final. “Nossa Senhora”, relembra o pai. “O mundo tinha acabado para ele, aos 9 anos de idade! Tínhamos uma Caravan com porta-malas grande e ele veio chorando de São Paulo até Santa Bárbara.”
Cesar trocou de estilo, migrou para o nado costas, e os campeonatos regionais passaram a ficar previsíveis: Guido em primeiro no nado livre, borboleta e medley, Cielo em segundo. No nado costas, Cielo em primeiro e Guido sem competir na modalidade. “Até que um dia se enfrentaram no nado costas e Guido deu um corpo e meio no Cesão”, relembra o pai. “Caiu o mundo dele de novo. Ele tinha 13 anos e anunciou que ia parar de nadar costas.” Foi se refugiar em meias-distâncias (400 e 800 metros), que também o decepcionaram.
A grande guinada ocorreu aos 15 anos, quando o adolescente pediu para treinar um mês numa clínica em Tallahassee, no estado da Flórida. Voltou de lá com a cabeça e o corpo sincronizados. Na primeira disputa de 100 metros livre com Guilherme Guido, num campeonato regional em Campinas, Cesão chegou três corpos à frente. “Não nado mais crawl”, decretou daquela vez o adversário. Também nos 50 metros borboleta, Cesão bateu na borda em primeiro. “Não nado mais borboleta”, complementou o derrotado. E assim ficou. Tornaram-se grandes amigos, dividiram o mesmo apartamento quando foram treinar na capital, e torcerão um pelo outro em Pequim – Guido vai competir nos 100 metros costas e nos 4 x 100 medley, Cesão nos 50 e 100 metros livre, além do revezamento 4 x 100.
De sua sala no ginásio de Auburn, cujo acesso está adornado por uma foto-pôster de Cielo disparando do bloco de largada, o técnico-chefe Richard Quick fala sobre desempenho: “A maioria das pessoas precisa de algum resultado para se convencer de que uma superação é possível. Já o grande atleta carrega essa prova na sua mente. Ele não precisa de prova nem da permissão de ninguém.” No entender de Quick, os grandes atletas, qualquer que seja o esporte, não são forçosamente os mais talentosos. São os mais motivados, os que dão tudo de si mesmos nos períodos de baixa, pela expectativa de que vencerão mais adiante. “Cesar tem esse fogo”, sustenta Quick. “Se ele continuar a ter tanta gana em aperfeiçoar cada minúsculo detalhe, ele ruma para se tornar uma megaestrela da natação. Para tanto, ele não deve se contentar com nenhum resultado, nem mesmo com uma medalha olímpica.”
Quick aposta mais em Cielo para os Jogos de 2012, em Londres, e acha que ele tem fôlego até mesmo para disputar um pódio em 2016. O fator determinante, sempre, se chama confiança interior absoluta. “É preciso desejar que o seu adversário tenha o melhor resultado imaginável e ainda assim acreditar que você vai vencê-lo no momento crítico. Se você desejar algo menor, já está derrotado. De nada adiantaria Cesar torcer para que o australiano Eamon Sullivan acorde péssimo em dia de prova, já que ele não tem nenhum controle sobre isso – ele só pode ter controle absoluto sobre seu próprio desempenho.”
O técnico-chefe de Auburn revela que determinou uma alteração no ritmo de treino dos velocistas em função do cansaço excessivo de Cesão. Passaram a ter um dia de recuperação, ou treino mais leve, entre dois dias de carga pesada. “As necessidades de nosso time e as dele, que tem ambição alta, precisavam se aproximar, e notamos que ele estava ficando desencorajado com o cansaço.” Brett Hawke, o homem da mão na massa, detalha essa questão chave: “Cesar é peculiar pela capacidade aeróbica extraordinária: ele consegue ter uma chegada fortíssima nos 100 metros. Ao mesmo tempo, tem grande dificuldade em tolerar esforço contínuo e pesado nos treinos. Isso é tão inusitado que levei uns doze meses até detectar o seu real limite.”
Quem vê Cesão ao final de um dia de carga pesada leva um susto – as covinhas sumiram, os músculos do rosto jovial despencaram, o olhar está opaco, seu 1,95 metro de altura se curva e os braços parecem frouxos ao longo de seus 88 quilos. Mal consegue arrastar os chinelos molhados. Mais extraordinário ainda é que, passadas 24 horas, depois de um dia de treino apenas mais leve, ele volta a ser o garotão extrovertido e intenso. Ao final de uma semana típica de treinamento, Cesar terá feito uma média de 15 mil rotações de braços na piscina.
Afora os treinos, há os estudos propriamente ditos. Entre os bolsistas da universidade, há dois anos Cielo é o atleta estrangeiro com melhor rendimento acadêmico. Devido ao calendário olímpico, trancou sua matrícula neste primeiro semestre do ano, mas mantém a espartana rotina caseira de um atleta de elite em território americano: supermercado uma vez por semana, cozinhar, lavar e secar roupa, arrumar a casa antes de ficar por demais detonada. Durante o primeiro ano e meio em Auburn, fazia tudo de bicicleta. Hoje, embora tenha comprado um Toyota 2004 por 4 500 dólares, voltou a encarar a bicicleta como um exercício extra para Pequim. Lazer mais sedutor e irresistível? Dormir.
Ao longo do ano passado, Cesar Cielo passou por nada menos que dezenove testes antidoping e só nos cinco primeiros meses de 2008 já foram outros seis – sem contar os dois testes obrigatórios da faculdade, para detectar drogas sociais. “Passei da fase do estresse com cada exame. Agora só resta algum estresse pela vergonha mesmo”, admite. Abrir a porta de casa sonolento, envergando apenas um samba-canção do Bob Esponja, e se submeter a desconhecidos vestidos de branco, pode ser constrangedor. Mas nada supera um episódio ocorrido no Campeonato Sul-Americano de 2006, na Colômbia. A agente coletora de urina do atleta era mulher, o que deixou o brasileiro completamente desnorteado. “Acabei dando um nó no cordão da calça e fiquei meia hora tentando desatá-lo para ganhar tempo”, ele conta. “Mas não teve jeito: fechei o olho e mandei ver.” Por via das dúvidas, Cielo arquiva todas as cópias de seus exames numa gaveta da escrivaninha do quarto, cuja decoração mais ostensiva é uma imensa bandeira do Brasil.
As roupas mais estranhas que Cesão tem em casa é a sua coleção de maiôs inteiriços, apelidados de “doping de armário” desde que atletas envergando um Speedo-LZR começaram a quebrar um recorde mundial atrás do outro. O brasileiro tem dois deles pendurados em cabides, além de meia dúzia de protótipos de outras mar-cas e versões anteriores espalhados em mochilas. Ainda não decidiu com que roupa irá a Pequim. Liberado pela Federação Internacional de Natação para uso em competições e olimpíadas, e endeusado pelo seu garoto-propaganda Michael Phelps com a frase “No momento em que caí na água me senti como um foguete”, o LZR passou a ser objeto do desejo de todo nadador.
Mas uma coisa é receber do fabricante um modelo sob medida, como a Speedo oferece às duas equipes-vitrine que patrocina – a dos Estados Unidos e a da Austrália. Bem outra é ter de esperar até que o produto chegue ao mercado, nas próximas semanas, e tentar se enfiar num deles.
Cielo não tem dúvidas de que a roupa pode ajudar na flutuabilidade (portanto na economia de energia) do competidor. Graças a uma complexa engenharia de gomos que comprime ao máximo o peitoral, abdômen, bumbum e lombar, o atleta se vê obrigado a alterar a forma de respirar. Ele pode, assim, melhorar sua postura, nem que seja milimetricamente. A alardeada redução em 5% no atrito com a água também conta pontos. Cielo continua pesquisando qual modelo se ajusta melhor ao seu estilo e físico. O protótipo da TYR que lhe foi enviado para testar arrebentou-lhe o dedão da mão na hora de vestir. E o LZR da Speedo que usou na competição da NCAA era apertado demais.
Para ter eficácia plena e manter a aderência ao corpo inalterada, o “doping de armário” não deve ser usado mais do que três ou quatro vezes, o que, ao preço de mais de 500 dólares a peça, elimina boa parte dos competidores. Já na frente mais avançada da natação mundial, o entusiasmo é irrestrito. “Os tradicionalistas gostariam de fixar um ponto do passado deal – Johnny Weissmüller e sua sunga de lã? – enquanto os outros vão empurrando e testando”, comenta o americano Richard Quick. “Lembro quando se passou dos maiôs de náilon para os de lycra, nos anos 70, e todos os recordes americanos femininos foram quebrados numa competição. Não ficou um só de pé.”
Sentado numa mesa de restaurante em Auburn, Cesar Cielo não levou mais de dez segundos para responder quais serão, a seu ver, os oito finalistas das provas de 50 metros e 100 metros livre em Pequim.
– Você quer por tempo ou por raia? – perguntou sem pestanejar, antes de começar a rabiscar. Nas duas provas, o nome da raia 4 (melhor tempo) é o seu, tendo por vizinhos imediatos Eamon Sullivan (raia 5, nos 50 metros, e raia 3, nos 100 metros) e o francês Alain Bernard (raias 3 e 5, respectivamente).
A cena lembra a lógica defendida por Hortência Marcari, a maior pontuadora da história da seleção brasileira de basquete, às vésperas dos Jogos de Atlanta. Indagada se tinha receio de errar um lance livre num momento crítico de uma partida decisiva, respondeu que não errava lances livres. Fazia treinos de até mil tentativas por dia para não errar. Mas e se errasse? “Posso errar porque sei que não erro lances livres”, disse com naturalidade.
É a confiança de que falava Richard Quick. Caso Cesar Cielo não venha a ocupar seu lugar em Pequim, a raia 4 poderá estar a sua espera nos Jogos de 2012. “É impressionante ver sua velocidade hoje, quando seu potencial pleno ainda está longe de ser atingido”, sustenta Brett. “Não tenho a menor dúvida, nenhuma mesmo, que um dia Cesar Cielo baterá o recorde mundial nos 50 e/ou nos 100 metros. É só uma questão de tempo.”