ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Safari sonoro em Congonhas
Pequena amostra de uma calamidade auditiva
Dorrit Harazim | Edição 42, Março 2010
Dim-dom. O som é neutro e familiar, e lembra o de uma campainha que desperta a atenção auditiva, sem alarmar.
É composto por duas notas sintetizadas (lá e fá sustenido) e cumpre com propriedade a função de avisar ao público que um anúncio de seu interesse está por vir. Assim sozinho, o dim-dom que emana dos 487 alto-falantes instalados na área de embarque do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, é inofensivo. O problema está na frequência com que o alerta é acionado e, sobretudo, na catarata sonora que vem a seguir.
Faz pouco mais de um ano que a Infraero suspendeu as chamadas de pouso e decolagem em saguões de 67 aeroportos sob sua supervisão. As informações passaram a ser de responsabilidade direta das companhias aéreas, e são audíveis somente para passageiros que já tenham feito o check-in, despachado as malas e se dirigido à área reservada dos portões de embarque. O passageiro distraído que ficar zanzando de lá para cá corre o risco de perder o voo, pois a Infraero só lhe dará informações genéricas como a proibição ao fumo e a necessidade de ele zelar pelos próprios pertences.
Congonhas foi inaugurado em 1936, reformado em 2004 e, em 2009, movimentou 13,9 milhões de passageiros. Para quem o frequenta deve ter sido um alívio não ser bombardeado, desde a entrada, por um turbilhão sonoro de chegadas e partidas. É bem verdade que, com a medida, perdeu-se a voz maviosa e aveludada de Iris Lettieri, cuja dicção e entonação eram capazes de amansar qualquer executivo em dia de queda da Bolsa. O timbre voluptuoso com que sussurrava Curittiiba ou pronunciava Bbbrasííí-lia – único caso de alguém capaz de dobrar um B – dispensava uma segunda chamada.
Mundo afora, a arquitetura aeroportuária tem se desdobrado para oferecer amenidades cada vez maiores às multidões em trânsito – do paisagismo estonteante do aeroporto de Hong Kong ao lago com carpas do de Cingapura. Sabe-se, porém, que conforto não é apenas uma questão de peixes ou samambaias, mas também de silêncio. A qualidade da engenharia acústica tornou-se um dos quesitos mais escrutinados pela Skytrax, espécie de Guia Michelin que avalia e ranqueia aeroportos do mundo inteiro.
Se quietude e sossego viraram o luxo mais cobiçado para quem vai embarcar, os aeroportos brasileiros continuarão fora de qualquer lista. A começar por Congonhas, o segundo mais movimentado do país. Numa manhã aleatória do mês passado, cinquenta minutos na sala de embarque foram suficientes para fazer algumas observações. Eram 8h40 da manhã de 22 de fevereiro, primeiro dia útil depois do Carnaval. A afluência ainda estava moderada; havia espaço para circular e assentos livres para aguardar o embarque.
O primeiro dim-dom passou quase despercebido. Já a locução que se seguiu, dirigida aos clientes TAM do voo 3216, arranhou até os ouvidos mais distraídos. “Última chamada, embarque encerrado no portão de número 6.” A voz feminina era de impaciência e não deu trégua. Decorridos apenas cinquenta segundos, novo dim-dom: “Informamos aos clientes TAM do voo 3216 com destino a Salvador com escala em Belo Horizonte que está encerrado o embarque no portão de número 6”. O voo já estava encerrado na chamada anterior, mas releve-se. Oitenta segundos depois, novo dim-dom abriu a temporada de caça ao passageiro Robert Komtchak. “Com sua atenção, senhor Komtchak. Senhor Komtchak, cliente TAM do voo 3216 com destino a Belo Horizonte. Última chamada para embarque. Embarque encerrado no portão de número 6.”
Com intervalos de apenas quinze segundos ou, no máximo, de um minuto e meio, as chamadas se sucedem em cadência bipolar e cabe ao ouvido de cada passageiro fazer os ajustes necessários. Da locução esgarçada e dicção acelerada, passa-se a uma chamada que lembra um ditado de primário. Nas versões angustiadas, palavras são pronunciadas como se estivessem acorrentadas umas às outras, sem pontuação. Ou com pontuação errada. Avisos de voos diferentes da mesma empresa aérea são recitados num só sopro, e galopam sem pausa do português a um inglês de difícil compreensão para quem não é brasileiro.
“Por que as chamadas neste aeroporto soam desnecessariamente urgentes? Por que depois da ‘última chamada’ há várias outras ‘últimas chamadas’?”, quer saber uma intrigada e ansiosa globetrotter inglesa, Hertha Skoberne, de 69 anos. Ninguém tem a resposta.
Durante cinquenta minutos contados no relógio, o dim-dom foi acionado 39 vezes para chamar catorze voos – oito dos quais com troca de portão “por reposicionamento da aeronave”. A Gol/Varig têm por norma fazer três chamadas por voo; a tam, seis. Ocean Air e Trip, outras tantas. O resultado é que as dezessete salas de espera são fustigadas por uma interminável tormenta sonora:
“Senhoras e senhores, bom dia. Informamos-aos-clientes-tam-do-voo-três-nove-um-quatro-com-destino-ao-Rio-de-Janeiro-que-dentro-de-instantes-iniciaremos-o-embarque-pelo-portão-dois-Terão-prioridade-clientes-portadores-de-necessidades-especiais-gestantes-e-idosos-Clientes-com-crianças-de-colo-cartão-fidelidade-vermelho-cartão-de-crédito-tam-Platinum-e-tarifa-Top-Pedimos-que-os-clientes-Platinum-tenham-o-cartão-de-crédito-no-ato-do-embarque-Por-gentileza-localizem-seu-grupo-de-embarque-Clientes-das-poltronas-dezesseis-a-trinta-apresentar-se-do-lado-direito-do-portão-E-clientes-de-um-a-quinze-ao-lado-esquerdo-Em-cumprimento-à-resolução-um-três-zero-da-Anac-solicitamos-que-permaneçam-com-o-cartão-de-embarque-e-um-documento-de-identificação-em-mãos-Apresente-se-no-portão-de-embarque-com-um-documento-Obrigada.” Ufa.
A versão em inglês foi caridosamente telegráfica. Como houve mais quatro chamadas para este mesmo embarque, o passageiro que nada tinha a ver com o voo 3914 ficou zonzo. No portão ao lado, o mesmo processo era repetido por outra companhia aérea.
A sociologia talvez explique esta algaravia. Pode ser cedo para que o Brasil troque os avisos sonoros pela comunicação visual. Somente em 2009, a Gol transportou 2,9 milhões de passageiros de primeira viagem. São brasileiros das classes C e D que estrearam no turismo aéreo. É para eles que a Gol mantém a frequência das três chamadas, sem contar os incontáveis apelos individuais aos retardatários perdidos pelo saguão. A empresa não tem dúvida de que esse segmento ainda precisa de colo e não se aborrece com a barulheira. “Temos de pegá-los pela mão. E ao contrário dos habitués de aeroportos, eles não se incomodam com a feira livre sonora. Reclamam quando não são chamados”, disse um funcionário da companhia.
Registre-se que um combate mais radical à poluição sonora só seria viável se Congonhas adotasse uma informação visual clara e eficaz. Não é o caso, a começar pela inadequada numeração dos portões de embarque, que exigem algum esforço para serem identificados. Já quem se interessa por um Fiat Cinquecento não precisa se esforçar. A visibilidade é máxima. Bem no meio do saguão de embarque, lá está ele, um irresistível Fiat, recém-saído do forno. “Pode entrar, fique à vontade”, convida uma jovem de vestido balonê, deixando claro que, no Aeroporto de Congonhas, às vezes é mais fácil encontrar um carro do que um avião.