Sagas e arquivos
Sentiu-se afundar em grande desordem; no entanto, como se prestasse uma homenagem, resolveu não meter os pés pelas mãos
Priscila Figueiredo | Edição 59, Agosto 2011
I
O olhar de Mimi confirmou o olhar de Papá sobre a figura de Pepi.
Pepi descansou, pois o olhar era bom.
No dia seguinte, o olhar de Mimi surgiu com uma sombra.
Pepi chegou mais perto e não identificou de onde se originava a forasteira. O bonequinho estava invertido. Iria se acomodar ali?, cogitou. Aguardaria mais um pouco.
Certa vez Papá fez um longo silêncio depois de uma pergunta de Pepi. E Mimi baixou os olhos. É aqui que entra Nam e sua inconveniência: ele parecia saber de tudo, de tudo antes e depois. A questão, já a conhecia. Pepi desconfiou e disse: Ah, jamais imaginei que a resposta seria esta, com ênfase na penúltima sílaba para evidenciar que esta era você e que, se a resposta vinha de Nam, é porque Nam estivera a par de tudo.
Noutro dia, nem bem amanheceu, Pepi saltou da cama, disposto a saber se Nam e a sombra eram a mesma coisa. Ligou para Papá, que, apesar dos bocejos, indicava ânimo para conversar. Pepi puxou um assunto qualquer. Queria amarrar a voz de Papá enquanto deslizava boba pelo assunto qualquer para depois examiná-la. Ela haveria de trazer a sombra de outras falas. Ia estirá-la na tábua e usar o seu cutelo para sombras.
Ah, aquele médico é muito bom, sim. Eu gostei. Você quer o telefone dele? Espere um pouco, vou procurar. Volta. Então, Pepi, anote o celular também. Mudando de assunto (isso é um peixe): como foi a reunião ontem?
Pepi está indeciso e não atira a rede. Vai anoitecer sobre o lago. Pepi agradece e deixa cair o gancho na água sem reflexo.
Tempos depois Pepi encontra Papá na saída de um banco. Papá diz que lá dentro está Mimi. Ah, Mimi, quanto tempo! Diante disso, Papá sorri, mas não escolhe nenhuma das alternativas que o amigo, no seu íntimo, lhe propõe:
1) acene para Mimi através do vidro
2) espere Mimi, que vai gostar de vê-lo
3) que coincidência, Mimi me falou de você ontem
Nenhuma!, e eis que Mimi aparece. Eles se cumprimentam, Pepi está contente com o abraço que dura um pouquinho além do convencional. O abraço quer matar as saudades ou as suspeitas bem fundadas? Talvez a ambos, responde imediatamente Pepi, cuja fadiga, aumentada agora pela dúvida, vem cortar as asinhas da insatisfação.
II
Pepi acordou exausto com as ruminações que tivera durante a madrugada. Não é exato dizer então que tivesse acordado, mas a verdade é que assim que o sol lançou seus primeiros raios o sono o apanhou, um sono pouco persistente, que mal chegou a atingir as altas regiões e logo o depositou sobre uma planície, tal como se coisas mais importantes o esperassem.
A exaustão de Pepi. Seus pensamentos o tinham roído, sem que ele os pudesse impedir, até o osso do peito que nessas horas se evidenciava mais. Ainda não soubera precisar se germinavam uns dos outros ou embutiam-se uns nos outros. De ou em?
Então crescia a imagem de um amontoado de vermes pulsantes, cuja atividade eletrizada fazia suas têmporas arderem. No entanto, logo isso era corrigido pela sensação de que os pensamentos vinham bater em seu rosto, ou seu peito, como insetos em noite de verão. Não era noite de verão, e os insetos tinham uma cabecinha mais dura.
Não sabia decidir, portanto, se a ação ocorria dentro ou fora, ainda que sempre inclinada para ele, ou ele para ela. De novo, estava diante de um par antinômico de preposições.
Estas lhe pareciam agora serzinhos espantosamente astutos, apesar de sua mudez permanente. Mas de onde lhe tinham saído esses bracinhos tão hábeis em movimentos indagativos?
Logo lhe ocorreu que talvez o que chamava de seu corpo ia um pouco mais além e principiava um pouco mais aquém. Não vamos reparar que de novo um par de conectivos vem à cena quando supúnhamos ter superado tal questão. A categoria de extensão – talvez ela seja um sonho, e assim as demais, avançou Pepi, quase em febre.
Se as categorias forem nada mais que um sonho, estarei livre!
Ocorre que ser mais realista que o rei já o fizera dar com os burros n’água, tantos e tão pesados, ele sozinho, encharcado, aflito por organizá-los e lhes dar um rumo. De novo, não.
Pepi, embora desanimado, levantou-se, mas era que o relógio marcava 11 horas. Isso significava alguma coisa, alguma coisa que já não estava mais em condições de apalpar. Para onde ir? Não havia para onde, sentou-se na cama. Até que não é tão tarde. Vejamos.
Pepi para e pensa. Isso não é raro nele, não obstante agora se dê conta de que os pensamentos, se assim podemos chamar as representações obsediantes dotadas de dentes, antes tão orgânicas, comparáveis a bichos, correm em potência mais fraca, como num teatro de sombras, que seguramente não nos pegarão. O que guardavam e martelavam, a sanha que repunha os ferozes conteúdos, isso agora se converteu num desbotado afresco, no qual um punho fechado, com o indicador em riste em sinal de advertência, pode ser contemplado com o olhar distraído que o toma por um pássaro.
III
O bebê eloquente continuava a história do homem que comprara um melão no mercado: assim que o partiu, descobriu uma cidade lá dentro etc. Pepi sentiu-se enjoado diante do que era a mais vulgar eloquência e mostrou intenção de sair. O dono do circo de bebês veio até ele imediatamente e esclareceu que, tendo comprado apenas meio bilhete, não poderia deixar o lugar. Metade é para entrar, metade para sair, disse. Curioso, pensou Pepi; é, o mundo está mudando. E há ainda outras coisas… Refletia assim quando deu com uma mulher de nariz rolicinho e o olho estatelado como um bicho em seu cachecol. Pepi sentiu-se inseguro e supôs que talvez estivesse contrariando alguma etiqueta do circo. Quem sabe? Ninguém se manifestou. Tirou o cachecol e o foi dobrando aos poucos, fazendo das mãos uma espécie de roldana. Quando a senhora tirou do torpor o rosto feioso, Pepi deu-se conta de que tinha amarrado as mãos e os antebraços.Sentou-se de volta, com os cotovelos fletidos para fora, as palmas unidas, e continuou a ouvir o bebê falante, que agora dizia:
Jesus te ama, você sabia disso? Jesus quer fazer um pacto com você.
IV
Nam, Nam, Nam! Ele apareceu na porta, lambendo os beiços como um vira-lata, levantando a calça como um vadio. Via-se que tinha acabado de comer o almoço de domingo, embora fosse segunda. Quanta informalidade, pensou Pepi, sentindo de longe um hálito de macarrão. Como odeia o macarrão, o macarrão com vermelho em cima, a casquinha vermelho-escura no prato, de feridinha. Domingo é dia de feridinha, né?
V
Pepi não dava toda a corda de uma vez às horas de amargar: fazia um anel com o polegar e o mindinho e espetava os outros três dedos num vaso de terra. Iniciava uma respiração condizente, a partir do ventre. Mas, de fato, não sustentando por muito tempo essa posição vegetal, soltava o seu célebre grito doloroso, de que as crianças gostavam muito, como os filhos de Mimi, os quais sentiam o já pequeno coração se comprimir para depois relaxar e crescer. Era quando Pepi batia com o punho na mesa. A batida era brincalhona, as crianças sentiam; ela repicava e dizia que aquilo não dera em nada. O grito era o irmão mais novo, e a pancada o irmão mais velho, paternalmente compreensivo, apenas em aparência zangado. Nada disso, um é o cachorro do outro: a pancada abana o rabo e diz que é isso mesmo, estou aqui! Tum, Tum. Porém o dono agora se fechou em copas, o cachorro brinca com as crianças.
OUVIDO
Sentiu-se afundar em grande desordem; no entanto, como se prestasse uma homenagem, resolveu não meter os pés pelas mãos. Esta deveria ser a última vez – sabia o quanto estava propenso a uma regressão. Formas mais desajeitadas de vida pareciam despertar sob sua pele – braços que na verdade eram pernas, rostos que na verdade eram bocas fazendo submergir tudo o mais. Com respeito ao órgão auditivo, percebia que ameaçava destruir as várias camadas de que fora se constituindo e, conforme o ponto de vista, tendia a tomar uma feição mais vaga ou mais primária. Havia claros indícios de que o refinamento urbano dos pavilhões estava prestes a se tornar obsoleto. Agora compreendia por que lhe causavam tão má impressão aqueles sonhos em que via suas orelhas se enrijecerem e quebrarem, ou em que distraidamente escorregava a mão sobre elas, e estas tombavam ao chão, como pedra ou casca. Teriam sempre corrido esse risco – sua exterioridade, ponto culminante de toda uma evolução, colaboraria ironicamente para que um dia fossem decretadas como inúteis. Esse juízo o aterrorizava sem que ele discernisse a razão. O destino das coisas externas era ou serem desatreladas como penduricalhos ou serem sorvidas por uma interioridade ansiosa e convulsa? Ele passava em revista os velhos tempos, aos quais em parte pertencera: ah, sim, discurso, demanda, reclame, jargão, elogio, vitupério, tomem lugar aqui neste círculo florido mais abaixo (no de cima estão acomodados os conselhos, as dignidades mais antigas, como sabem), em breve será servido o chá. Ah, sim, poderão chegar às instâncias mais internas, mas peço-lhes um pouco de paciência. Quem será o tradutor? Eu mesmo – nossos intérpretes oficiais foram despedidos em razão de medidas administrativas. Sua presença será notificada, sim. Não, não prometemos que todos poderão ser recebidos ainda hoje; em breve o saberão. Eles se exaurem com facilidade de modo que a sala de audiência fecha-se cedo; não é prudente estender as horas, não é prudente, creiam-me. Poderão sentir-se molestados. Quer vomitar? Ah, nestas alturas, é comum acontecer. Embaixo do seu pé há, como dizer, um buraquinho, exatamente, embaixo de cada pé, e cubra com terra depois, por gentileza. Quase ninguém de dentro põe o nariz aqui fora – aqui fora só os forasteiros, e eu naturalmente.
O pessoal da limpeza também foi dispensado. Concluiu-se que faziam um trabalho degradante, não há como discordar. Do outro lado? No outro pavilhão? Não ouviram falar da singularidade deste edifício? Vocês também estão lá! Reproduzidos, não, não. O que fazem noutra parte também fazem aqui; quem bate à porta do outro lado bate à porta aqui. Não se trata de efeito especular: em ambas as pontas estou em carne e osso, nem mais nem menos, e não sou Deus, hein? Se os de lá forem nosso espelho, então somos do mesmo modo espelho, racionem. Do quê? Não, não há do quê. Isso de espelho é com os senhores, pois o dispositivo não foi concebido nesses termos. Artimanhas de nossos engenheiros. Assim é melhor, não é? Percebi como receavam que estivessem em dobro… Vejo que não deram pelo folheto sobre o aparador: ele divulga certas passagens de nossa história e servirá para entretê-los durante a espera, agora menor do que supunham.
Já a figura intermediária encarregada de fazer as honras do lugar parece de outro período, um funcionário de casa mais nobilitada, desativada depois de alguma revolução ou em consequência de um longo processo de decadência. Conserva os trejeitos, a elocução e mesmo certas fórmulas antigas de cortesia, algumas antediluvianas. Imaginamos que seus interlocutores formavam em sua época um número bem menor, e o homem estava então perfeitamente talhado para atendê-los. A sua maneira, no entanto, esforça-se por acompanhar os novos tempos e é com certo estouvamento que põe na boca expressões contemporâneas. A casa acostumou-se a ele, que na verdade se tornara peça indispensável no trânsito entre o externo e o interno. Sob o novo regime instituído as solicitações por audição haviam subido a taxas inéditas, e o pobre funcionário começou a parecer insuficiente e antiquado. No entanto, o serviço realizado deve se extinguir tão logo se aposente este que é seu último executor, o qual não deverá ser substituído por outros (quando muito mais que um é necessário) ou mesmo por um sistema automatizado. Por inércia ou secreta deliberação, isso não importa, a própria função do atendimento, de forma alguma ultrapassada, será suprimida, com o que se interromperá o acesso às câmaras internas. Em breve também se desativarão os pavilhões de recepção. Está no ar o sentimento de que nada é feito contra tal mudança, que por si só não deve abolir a multidão de falas. Talvez se presuma que, com o decorrer dos anos, elas passem do estado de inquietação, e das inúmeras tentativas frustradas de transpor o intransponível, à resignação, à interiorização de sua demanda até por fim alcançarem o estado de núcleos internos, indiferentes do mesmo modo ao que está fora.
1 vaga
O carro guardadinho
contra o sereno
o risco delinquente
a bosta de passarinho
o piche
O carro guardadinho
bem no fundo
do bauzinho
mas em cima
de um sofazinho
Tudo pra ele
não se gastar
não ser agastado
que o dia foi difícil
um buraco pelo outro
Sem ele eu tardo a chegar
à firma, nas Espraiadas
sem ele
a minha vida não sai
deste pobre Itaim
Descansa, carrinho
eu mal quitei a prestação
mas metade da casa é sua
não durmo no prejuízo
se você acorda limpinho
se você não ronca esquisito
Guignard, o urbanista dos pobres
Diagnóstico: “O Brasil é uma imensa
área de risco” (Macaco Simão)
Zona de risco
não é pra barraca, não
antes a autonomia
de um balão de São João
O pobre não quer incomodar
ele achou que podia fincar pé, que aqui
foi lixo
ah, mas não podia
é melhor nem ficar de pé, meu filho
até mesmo palafita
é coisa hoje em dia
muito intrometida
não constrói a tua casa
na areia etc.
Quem flutua
sobrevive
Africadáver
Agora vêm os chineses
eles bicam em algumas veias
pareciam de pedra
mas dão ainda
leite
Os lobbies
os lobbies incrustados nas decisões
os lobbies incrustados nessa Constituição
no discurso na emenda na anulação
no passo atrás no passo à frente
lobbies encravados
bem cravados
fios de lobbies tramados
trava que entreva
não deixam, não deixam
eles não deixam
passar
você pode tentar
os votos
teimosos como as porcas
insanos como os insanos
fortes como os insanos
não são o que se pode catar
(piolho, negro ou judeu)
estão bem misturados
Ilustrações: Alvaro Tapia Hidalgo