ILUSTRAÇÃO_ANDRÉS SANDOVAL_2018
Saindo de uma fria
O dilema sobre um pinguim cego
Cláudia de Castro Lima | Edição 148, Janeiro 2019
De julho a setembro de 2018, a faixa de areia que se estende entre as cidades de Iguape, Ilha Comprida e Cananeia, e a que compreende a Ilha do Cardoso, no litoral sul de São Paulo, assistiu a um boom de animais marinhos mortos. Eram, sobretudo, pinguins-de-magalhães, que, naqueles 120 quilômetros, em três meses totalizaram 1 522 vítimas – às vezes dezenas num dia, obrigando os funcionários do Projeto de Monitoramento de Praias da Bacia de Santos ligados ao Instituto de Pesquisas Cananeia (Ipec) a trabalhar por até quinze horas.
“Não esqueço certa manhã em que fui a campo resgatar uma ave, uma fragata, em Ilha Comprida, 60 quilômetros depois da balsa”, contou a bióloga Daniela Ferro de Godoy, coordenadora-geral do PMP/IPeC. “No caminho, vi nosso pessoal de monitoramento parado no quilômetro 18, coletando vários pinguins mortos. Resolvi espiar mais à frente. Andei um pouco e encontrei um boto, dez tartarugas grandes e um sem-número de pinguins. Foi aí que tive a real dimensão do que estava acontecendo.”
No meio desse caos, às onze da manhã de 25 de julho, um pinguim, de barriga para baixo, foi resgatado ainda vivo em Ilha Comprida. Na sede do instituto, passou por um exame clínico e teve o sangue coletado para análises. Nos relatórios, preenchidos e arquivados no Simba (Sistema de Informação de Monitoramento da Biota Aquática), lê-se que estava “deprimido” e tinha um machucado na aleta esquerda. “Pode ser um indicativo de que tenha ficado preso em uma rede”, disse o veterinário português João Paulo Bastardo Rodrigues, no Ipec há três anos. Mas o que mais preocupava eram os olhos. “Estavam fechados e apresentavam uma vermelhidão e um embaçamento anormais. A pupila, que deve ser preta, estava vermelha.” Chamaram um veterinário com especialização em oftalmologia, que constatou que a ave talvez proveniente da Argentina, embora com menos de 1 ano de idade, tinha catarata e era cega dos dois olhos.
O Projeto de Monitoramento de Praias tem quatro divisões: a Bacia Potiguar (que compreende o Ceará e o Rio Grande do Norte), a Bacia de Sergipe-Alagoas, a Bacia de Campos-Espírito Santo e a Bacia de Santos, da qual o Instituto de Pesquisas Cananeia é uma das doze instituições parceiras. O programa criado em 2015 é fiscalizado pelo Ibama e financiado pela Petrobras – o patrocínio foi a contrapartida da empresa para que pudesse refinar e escoar petróleo e gás natural daquelas bacias. Universidades e ONGs participantes do projeto vigiam praias e avaliam os impactos das atividades da petroleira sobre aves, tartarugas e mamíferos marinhos. Ao todo, mais de 2 150 quilômetros de faixa de areia são rastreados pelo programa, 800 deles pelos pesquisadores na Bacia de Santos.
A nova sede do Instituto de Pesquisas Cananeia, no bairro Carijó, é formada por cinco contêineres pintados de branco, onde funcionam escritório, laboratório, ambulatório, cozinha, refeitório, as salas de educação ambiental, despetrolização e reabilitação de animais, além de um necrotério. Quando encontram um animal ferido, os pesquisadores aplicam os primeiros socorros ainda na areia e o bicho recebe cuidados até estar em condições de ser solto. Se o animal estiver morto, a equipe o leva para análise, a fim de determinar idade, sexo e causa do óbito.
O motivo do boom de mortes de 2018 ainda não foi estabelecido – em toda a área da Bacia de Santos, foram 10 401 pinguins. Especialistas acreditam que mudanças climáticas desfavoráveis, causadas pelo fenômeno La Niña, tenham contribuído para trazer mais para perto da costa os animais exauridos, a ponto de os mais jovens não resistirem. Relatos anteriores já apontavam a coincidência de mortandades com fenômenos como La Niña e El Niño.
O protocolo de atendimento foi seguido à risca: o pinguinzinho cego passou por uma cirurgia de catarata, que não foi bem-sucedida. A hipótese mais provável é que a cegueira tenha provocado a catarata, e não o contrário. “Ele não deve ter nascido cego, senão não teria conseguido sair da Argentina, onde os pinguins-de-magalhães costumam se reproduzir, e vir parar aqui sem ter sido predado ou sem poder se alimentar”, deduziu o biólogo Henrique Chupil, que conclui doutorado em aves marinhas e participa do projeto há um ano e meio.
Num tanque de 24 mil litros de um dos recintos de reabilitação, nos quais os animais são separados conforme o tipo, o pinguim nadava de um lado para o outro, aparentemente tentando sair da água. “Pode parecer cruel, mas é o melhor para você”, disse-lhe Chupil. Com 34,5 centímetros de altura e 2 quilos de peso, o pinguim tem por enquanto apenas uma faixa preta abaixo do pescoço – sinal de sua juventude, já que os adultos carregam duas. Dali a três horas, ele faria sua segunda refeição do dia – sardinha, manjuba, pescada-banana ou maria-luísa, a depender da oferta nas peixarias. Também receberia uma massagem nas patas para tratar a pododermatite, inflamação que pode acometer aves em cativeiro, provocada pela fricção com o piso.
Como os demais bichos resgatados, o pinguim não recebeu um nome – assim evita-se que as pessoas se afeiçoem a ele, uma vez que os convalescentes devem permanecer no local o menor tempo possível. A ave também suscitou um debate entre os pesquisadores. Segundo o protocolo do PMP, deve-se praticar eutanásia em animais que não possam ser soltos e ter uma vida com qualidade. Seria o caso do pinguim-de-magalhães. “Um golfinho é capaz de sobreviver cego na natureza porque tem um sistema sofisticado de localização e conseguiria se alimentar sem dificuldades”, explicou Godoy. “O pinguim, não. Ele só se localiza por meio da visão. Por isso, não pensamos em fazer a soltura dele.”
Mas a bióloga conseguiu evitar a eutanásia. Ela contou que, apesar de não gostar de encaminhar bichos a zoológicos, resolveu consultar o Aquário de São Paulo, que aceitou abrigar o animal a partir do mês que vem. “A gente se apegou a ele, né? E quando se apega é tão difícil…”, disse Godoy, sorrindo. “Você o viu nadando aqui no tanque? É lindo. Nem parece que tem um problema.”