ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Sambódromo no Punjab
Jai Hindustan! Pakistan zindabad!
Felipe Marra | Edição 55, Abril 2011
Cansado de fotografar a troca de guarda da rainha no Palácio de Buckingham? Sem ânimo para admirar novamente o ritual em memória ao soldado desconhecido no cemitério de Arlington, perto de Washington? Alternativa existe, e ela ganha de longe em exuberância. Só que fica um tanto fora de mão. Mais exatamente, fica em Wagah, vilarejo que abriga um histórico posto de fronteira que separa a Índia do Paquistão.
De Nova Delhi até Amritsar, a cidade de médio porte mais próxima de Wagah, são seis horas e 450 quilômetros de trem. De Amritsar até Wagah são outros trinta minutos de carro. E do estacionamento militar até o fim oficial da Índia naquele pedaço do Punjab, chega-se a pé.
Para aceder às arquibancadas do posto de fronteira, e ali assistir ao espetáculo que se realiza todo santo dia, há 52 anos, o visitante é revistado por soldados de bigodes imponentes, craques em organizar filas (apropriadamente) indianas.
O rigor da inspeção é explicável na cidade dividida durante a partilha de 1947, que marcou o fim do domínio britânico e a criação da Índia secular e do Paquistão muçulmano. O espetáculo encenado em Wagah serve de barômetro para as tensões entre as duas potências nucleares, e atrai perto de 8 mil pessoas em dias de semana. Num sábado ensolarado do mês passado, a plateia chegou perto de 30 mil.
Passada a meticulosa inspeção, o visitante é encaminhado para um, digamos assim, sambódromo de 200 metros de extensão, que faz as vezes de terra de ninguém, ou zona neutra. Do lado indiano, o acesso às arquibancadas se dá por meio de um arco. Mulheres se acomodam de um lado, homens do outro. O setor masculino é entrecortado por vestiários de soldados, e uma laje na qual ficam possantes caixas de som. O volume das caixas é regulado de forma a impedir a infiltração de qualquer música paquistanesa naquele pedaço de chão ainda indiano.
A infraestrutura do lado paquistanês é um pouco mais modesta, mas o entusiasmo das arquibancadas é semelhante. A separar as duas nações, e dividindo a passarela ao meio, dois portões de ferro, cada qual pintado e engalanado com as cores nacionais. No início da cerimônia eles estão abertos.
O público indiano é preparado para o espetáculo por um animador que não para de gritar slogans patrióticos, ecoados fervorosamente pelas arquibancadas. O grito de Jai Hindustan (“Viva a Índia!”) é imediatamente respondido por Pakistan zindabad (“Vida longa ao Paquistão!”).
Para estimular a participação do público, o animador escolhe algumas meninas das arquibancadas e as alinha na passarela, em fila dupla. Empunhando uma grande bandeira indiana, as duplas correm em direção ao Paquistão, param na faixa da fronteira pintada no asfalto, e agitam galharda e vigorosamente o pavilhão. O povoléu do lado indiano explode como se comemorasse um gol. Do lado paquistanês chovem vaias, como se as jovens tivessem marcado um gol em impedimento.
Em seguida são os guardas de cada país que entram em cena, estimulados pelos gritos de guerra vindos da assistência binacional. E é então que o turista fica atarantado. Enquanto as trocas de guarda em Londres e Arlington são feitas em respeito ao monarca local, ou aos mortos em guerras, a cerimônia de Wagah é uma provocação direta ao país vizinho. Feita em modo carnavalesco, com desdém coreografado.
De sobrancelhas franzidas e bigodes reluzentes, portando uniformes cáqui engomados, e com uma garrida crista vermelha na cabeça, os soldados indianos marcham rumo ao Paquistão num ritmo que um espectador distraído atribuiria a um mal intestinal súbito. Chegados à marca da fronteira, passam a balançar os braços em sincronia e produzem chutes voadores que aproximam o pé da cabeça. Alternadamente, bufam a plenos pulmões e batem os pés com vigor, mantendo os peitos inflados contra o inimigo vizinho. Evoluções semelhantes são repetidas pela soldadesca paquistanesa.
Houve época em que a coreografia incluía meneios de cabeça e sinais negativos com as mãos. Mas, com o intuito de melhorar as relações entre os dois países, foram arquivados de parte a parte.
O clímax do espetáculo é reservado para o final, quando os soldados começam a arriar as bandeiras. É de suma importância que elas desçam rigorosamente ao mesmo tempo. Quando ocorre alguma diferença milimétrica, o pandemônio se instala. Na cerimônia daquele sábado de março, o lado paquistanês entoou um urro uníssono de gáudio quando o pavilhão nacional pareceu estar ligeiramente acima da bandeira indiana. Às arquibancadas indianas só restou responder com loas à pátria. Ao fim, dois soldados, um indiano e um paquistanês, trocam um aperto de mãos sorrateiro, seguido de um sorriso envergonhado, logo camuflado pelo estrondo que acompanha o fechamento dos portões.
A cerimônia, que dura uma hora e meia, termina com o pôr do sol e encerra mais um dia de convívio áspero entre os dois vizinhos. Desde a partição da Índia britânica, mais de 1 milhão de pessoas morreram em confrontos entre hindus e muçulmanos. Mas um jovem indiano sentado na arquibancada disse não sentir nenhum ódio do país cujo nome não ousa pronunciar: “Não tenho nada contra as pessoas de lá, gostaria até mesmo de atravessar a fronteira algum dia.”
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