Dispomos apenas de aritmética e imaginação para tentar entender. Até a chegada de Sherazade os reis Shahryar e Shazaman mataram 2.213 pessoas. Dessas, apenas onze eram homens ILUSTRAÇÃO: THE BRIDGEMAN ART LIBRARY_GETTY IMAGES
Sangue
ou um questionamento sobre As 1001 Noites
Salman Rushdie | Edição 4, Janeiro 2007
para Anish Kapoor
Então: Quantas mulheres eles realmente mataram, o rei, Shahryar, o grande rei sassânida da ilha ou península (jazira) da “Índia e China”, e seu irmão Shahzaman, monarca soberano de Samarcanda? Reza a lenda que tudo começou quando Shahzaman flagrou sua mulher nos braços de um cozinheiro do palácio, que era, acima de tudo, a) negro b) forte e c) gorduroso. Apesar desses atributos, ou justamente por causa disso, a rainha de Samarcanda se esbaldava, de modo que Shahzaman cortou os dois em pedacinhos, abandonou-os no leito de seus prazeres e se dirigiu à casa de seu irmão. Lá chegando, não muito tempo depois, acabou espiando, perto de uma fonte no jardim, sua cunhada, a rainha esposa de Shahryar, acompanhada por dez damas de companhia e dez escravos. Os vinte se entretinham em satisfações mútuas. A rainha, entretanto, chamou seu próprio amante, que desceu de uma árvore onde estava escondido. Ele era – pasmem! – a) negro b) forte e c) sentimental. Que diversão, os vinte e a rainha com seu “negão”! Ah, vai entender a malícia e a perfídia das mulheres e os inexplicáveis atrativos de negros feios, fortes e suados! Shahzaman contou a seu irmão o que tinha visto, levando todos, damas de companhia, escravos brancos e rainha, a encontrarem seu destino, pelas mãos do primeiro-ministro de Shahryar, seu vizir. O sentimental amante negro da rainha, ao que tudo indica, conseguiu fugir. Como explicar, se não, sua ausência na lista dos mortos?
Homem de sorte!
O rei Shahryar e o rei Shahzaman se vingaram devidamente da infidelidade das mulheres. Todas as noites, durante três anos, eles se casavam com uma virgem diferente, trepavam com ela e depois mandavam executá-la. Não se sabe muito bem como Shahzaman levou adiante sua sanguinolência em Samarcanda, mas há muito o que dizer sobre os métodos de Shahryar. Conta-se, por exemplo, que o vizir, sábio ministro de Shahryar e pai de Sherazade, era obrigado a realizar as execuções pessoalmente. Todos aqueles lindos corpos juvenis, decapitados; cabeças decepadas em jorros de sangue. Ora, o vizir era um homem culto, um cavalheiro, que não só tinha poder, mas também discernimento, e até uma refinada sensibilidade, ou ele não teria criado uma filha como Sherazade, tão cheia de virtudes, valente, altruísta, um verdadeiro exemplo de perfeição, isso sem falar na sua filha mais nova, Dunyazade, uma menina inteligente e de bom coração. O que teria levado a alma do pai de tão puras criaturas a degolar centenas de mulheres e ver suas vidas se esvaírem na sua mão? Que secreta fúria lhe brotava no fundo do peito insidioso? Não se sabe. O que se sabe, contudo, é que os súditos de Shahryar se enfureceram e fugiram com suas mulheres, de modo que, três anos depois, não havia uma única virgem em toda a cidade.
Nenhuma virgem, com exceção de Sherazade e Dunyazade.
Como Shahryar se comportava em relação às suas noivas condenadas? Mostrava-se frio ou fervoroso? Descabaçava-as violentamente e depois as atirava com desdém nas mãos de seu algoz de confiança, ou as tratava, durante aquela única noite no leito matrimonial, como as rainhas efêmeras que elas agora fatalmente eram? Enternecia-se deveras, excitava-se apenas ou preocupava-se em deleitá-las na mesma medida em que se deleitava com elas? Será que esses acasalamentos reais encontraram alguma vez, ainda que sob a mirada atenta da Morte, momentos de entrega delirante? E se as moçoilas vislumbravam desejo nos olhos de Shahryar, terão ousado sonhar, em todas as suas terríveis primeiras e ao mesmo tempo últimas noites, que o tesão do rei poderia salvá-las? Atormentava ele as suas vítimas com priápicas ilusões de esperança?
Não há respostas, só perguntas. Estamos entregues à nossa imaginação, e à aritmética.
Três anos: mil e noventa e cinco noites. Mil e noventa e cinco rainhas mortas por Shahryar, mil e noventa e cinco rainhas mortas por Shahzaman, ou mil e noventa e seis cada um, se entrar no cálculo um ano bissexto. Erremos para baixo: mil e noventa e cinco cada um. Sem contar os vinte e três mortos do início da história. Foi nessa época que Sherazade entrou em cena. Casou-se com o rei Shahryar e ordenou à sua irmã que se sentasse ao pé de seu leito nupcial e lhe pedisse para contar, ao término de seu defloramento, uma história de ninar. Nessa época, Shahryar e Shahzaman já respondiam por duas mil, duzentas e treze mortes. Só onze dos mortos eram homens.
Shahryar, logo após desposar Sherazade e cativado por suas histórias, parou de matar mulheres. Shahzaman, não refreado pela literatura, prosseguiu em sua obra vingativa, abatendo de manhã a virgem que ele estuprara à noite, uma demonstração do poderio dos homens sobre as mulheres, da facilidade masculina para distinguir amor de fornicação e da inevitável conjunção, no que se refere ao sexo feminino, de morte e sexualidade. A carnificina em Samarcanda continuou pelo menos por mil e uma noites, porque só no fim da narrativa de Sherazade, quando ela, a grande contadora de histórias, implorou para que o rei a poupasse, não em reconhecimento a suas aptidões, mas pelo bem dos três filhos que ela lhe dera naqueles anos fabulosos, e quando Shahryar confessou seu amor por ela, a última de suas mil e noventa e oito esposas, e abriu mão de todas as suas aspirações assassinas, é que a desforra de Shahzaman também chega ao fim. Purgado finalmente de seus desejos sanguinários, Shahzaman se casa com a doce Dunyazade.
O número total de mortos naquela altura, segundo meus cálculos, chegava a três mil, duzentos e quatorze.
Só onze dos mortos eram homens.
Três mil, duzentas e três rainhas descabeçadas. O corpo humano contém 5,6 litros de sangue. Se as rainhas morreram em uma decapitação simples, seus corações pararam de bater na hora, e grande parte desse sangue ficou coagulado dentro de seus corpos inanimados. Agora, se elas morreram como animais, ou seja, degoladas de modo que seus corações continuassem batendo por um tempo, então quase dezoito mil litros de sangue humano foram bombeados para fora de três mil e poucos corpos. A capacidade média de uma banheira doméstica é de duzentos litros. Com o sangue esguichado das rainhas, dava para encher noventa banheiras, o que equivale a dizer que Shahryar e Shahzaman poderiam tomar banho em sangue humano uma vez por mês, durante três anos pré-Sherazade, e Shahzaman ainda continuar se banhando assim, mensalmente, até ele também ver a luz. Foi o que eles fizeram? Não há como saber. Dispomos apenas de aritmética e imaginação para tentar entender.
Noventa banheiras de sangue. Imagina só.
Entra Sherazade.
Sherazade, cujo nome significava ‘nascida na cidade’ e que era sem dúvida uma menina de cidade grande, astuta, perspicaz, por vezes sentimental e cínica, uma exemplar narradora de seu tempo e lugar – Sherazade, que capturou o príncipe com sua história interminável. Sherazade, que contava histórias para salvar sua vida, fabulando literalmente contra a Morte, uma Estátua da Liberdade feita de palavras, não de metal. Sherazade, que insistiu, contrariando seu pai, em ter um lugar no cortejo rumo ao funesto boudoir real. Sherazade, que assumiu a heróica tarefa de domar o rei para salvar suas irmãs; que teve fé, que teve que ter fé, no homem por trás do monstro facínora, e em sua própria habilidade em restituí-lo, contando-lhe histórias, à sua verdadeira humanidade.
Que mulher!
É fácil entender como e por que o rei Shahryar se apaixonou por ela. Porque na certa ele se apaixonou, tornando-se o pai de seus filhos e compreendendo, com o passar das noites, que seu anseio de execução se esvaziara, que ele não seria mais capaz de pedir a seu vizir, pai de Sherazade, para executar mais ninguém. Sua selvageria embotou-se graças ao gênio de uma mulher que, por mil e uma noites, arriscou sua própria vida para salvar a vida de outras, que confiou em sua imaginação para desafiar a brutalidade e superá-la, não à força, mas, incrível, civilizando-a.
Rei sortudo!
Mas por que – esta é a grande questão não respondida de As Mil e Uma Noites – por que cargas d’água ela se apaixonou por ele?
E, como nota de rodapé: Por que Dunyazade, sua irmã mais nova, que se sentara ao pé do leito nupcial por mil e uma noites e assistira à sua irmã sendo comida por aquele rei atroz, para depois ouvir suas histórias – Dunyazade, a eterna ouvinte, mas também voyeur – por que ela aceitou se casar com Shahzaman, um homem ainda mais sanguissedento do que seu irmão enfeitiçado?
Como entender essas mulheres?
Um dos últimos quadros de Henri Matisse, intitulado As Mil e Uma Noites, celebra uma frase marcante, que fecha todas as noites, com exceção da última: Elle vît apparaître le matin; elle se tut discrètement. ‘Ela viu a aproximação da manhã e se calou discretamente’. A vida está nas palavras, mas também no silêncio discreto e oportuno.
Mas há um silêncio na narrativa que clama por romper-se. Por trás do reluzente mar de fabulosas palavras oculta-se, como uma cidade submersa, um grande romance psicológico: a majestosa, perversa e profunda história de amor, esse mistério, de Sherazade e Shahryar.
Como contar essa história?
Esgotada a aritmética, resta-nos a imaginação.
Sabe-se que: findas as histórias, Shahzaman e Dunyazade se casaram, sob uma única condição, imposta por Sherazade: Shahzaman deveria deixar seu reino e vir morar com Shahryar, para que ela e sua irmã não se afastassem. Foi o que ele fez. Shahryar designou, para reger Samarcanda no lugar de seu irmão, aquele mesmo vizir, que agora era também seu sogro. Ao chegar em Samarcanda, o vizir recebeu as calorosas boas-vindas dos habitantes da cidade, e todos os nobres da região rezaram para que ele reinasse ali por muito tempo. Foi o que aconteceu.
Os silêncios no final são gritantes.
Terá havido uma conspiração entre pai e filha? Será que Sherazade e o vizir mancomunaram um plano secreto? Pois, graças à condição imposta por Sherazade, Shahzaman já não era mais rei em Samarcanda. Graças à condição imposta por ela, seu pai já não era mais um reles cortesão e contrafeito verdugo, era rei por merecimento, um rei amado, e mais, um sábio, um pacificador, no lugar de um cruento bicho-papão. Um dia, sem mais nem menos, a Morte carregou consigo as almas de Shahryar e Shahzaman. A Morte, a destruidora dos prazeres, a implacável, a desoladora dos lugares habitados, a estoquista dos cemitérios. O palácio deles ficou em ruínas e eles foram substituídos por um sábio soberano, cujo nome não se sabe.
Eis que surge um enigma. Como e por que a ‘destruidora dos prazeres’ chegou? Que história é essa de que os dois irmãos morreram ao mesmo tempo, como sugere o texto, e por que o palácio deles, logo depois, reduziu-se a ruínas? E ainda: quem foi esse sucessor, sábio e inominado?
A história não chega à conclusão. Imaginem, mais uma vez, o vizir possuído de fúria por ter que derramar todo aquele sangue inocente. Imaginem o medo dele, por anos, mil e uma noites de medo, com suas filhas, carne de sua carne, sangue de seu sangue, desaparecidas no quarto de Shahryar, o destino delas por um fio, o fio da meada.
Onde estava a mãe de Sherazade e Dunyazade esse tempo todo? Tantos volumes de história e nem uma única palavra sobre a mãe delas. Tinha morrido ou estava viva? Se morrera, as filhas eram tudo o que aquele enlutado marido conservava de sua amada esposa, o que multiplicava seu pavor de perdê-las, e sua ira. Porém, se a mãe delas ainda estivesse viva, seu pânico e sua cólera afluiriam à mesma correnteza de sentimentos violentos de seu marido – e que possante enxurrada de sangue teria sido!
Quanto tempo um homem espera para se vingar?
Esperará mais do que mil e uma noites?
E o que dizer sobre Sherazade e Dunyazade? Eram duas vigaristas astuciosas, enganadoras, que entregavam seus corpos por um tempo – bastante tempo, no caso de Sherazade, um pouco menos, no caso de Dunyazade – para, no fim, se vingarem da parelha sanguinolenta, reivindicando os cadáveres de seus maridos em nome de todas as mortas e do luto de seus pais?
Questões mais estranhas sobrevêm.
Terão essas mulheres realmente conseguido amar seus tenebrosos e sangrentos maridos? Será que tal selvageria engendrou nessas meninas perfeitas um desejo proibido mas eroticamente vivificante? Sherazade terá sucumbido, ao longo daqueles terríveis anos reclusa, aos encantos de seu caliginoso monarca, sobre seu leito real de sangue, e também Dunyazade, após seu casamento arranjado, terá começado a sentir alguma coisa pelo homem, ex-inumano, talvez bonito, atrativo talvez, de quem havia se tornado noiva? Veio o amor a se transformar, com o tempo, em uma força mais poderosa do que a lembrança da Morte? Será que elas mataram seus cônjuges apesar do amor que sentiam – conspiraram para a morte dos dois reis, amando-os, porque o sangue dos mortos os reclamava, porque o sangue dos mortos os acusaram e sentenciaram, provando, no final, ser um valor mais presente do que o poder do amor?
Terá sido o vizir aquele sábio soberano que veio reinar na ilha ou península (jazira) de toda a Índia e China no lugar dos irmãos mortos?
Será que os reis morreram nas afáveis ou enganadoras mãos de suas mulheres?
Eu não saberia contar essa história. Só Sherazade, já que essa era sua última e mais secreta história. Ela decidiu, no entanto, não contá-la. Amor e sangue guerreavam dentro dela, e ela não conseguiu falar. Ela viu a aproximação da manhã e se calou discretamente.
O cômputo final de mortos foi de três mil, duzentos e dezesseis.
Treze dos mortos eram homens.