ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Santa cratera, buracão!
Mais um serviço para o herói do subúrbio
Roberto Kaz | Edição 37, Outubro 2009
Era meio-dia quando o repórter Fernando Torres entrou na sala de reuniões do jornal Extra. Embora os dois sofás estivessem ocupados por cinco figuras masculinas de sapato, calça, camisa social e boné, o silêncio imperava. Torres encarou de perto cada um deles, analisando: “Esse não serve, está muito bem-vestido. Esse outro também não, precisa de reparo.” Após uma breve pausa, decidiu: “Vai ser esse aqui, com crachá do jornal.” Pegou a figura no colo, qual noiva em noite de núpcias, e levou-a em direção ao carro. “São três buracos para a gente achar hoje.”
Aos 26 anos, Fernando Torres é o responsável por ter encontrado e batizado João Buracão, o caçador de crateras, que em menos de um ano se transformou em super-herói do subúrbio fluminense. O primeiro encontro entre os dois ocorreu na quarta-feira, 11 de fevereiro, quando Torres completara cinco meses como funcionário do jornal. “Eu tinha acabado de cobrir um enterro de pai e filha, em Irajá, e precisava chegar em Nova Iguaçu para apurar o fechamento de um parque de diversões ilegal”, contou. Na esperança de cruzar com algo mais interessante que um carrossel lacrado, pediu ao motorista que evitasse a via expressa, seguindo por dentro dos bairros. Foi quando avistou, em uma ruela de Marechal Hermes, um boneco em tamanho real, sentado em uma cadeira de escritório, no meio da rua, com uma vara de pescar apontada para um buraco. Mandou parar o carro.
Desceu para procurar o responsável, que logo se apresentou: o borracheiro Irandi Pereira da Rocha, de 39 anos. Ele contou ao repórter que o boneco de 15 quilos, feito de jornal, espuma, papel higiênico e fita durex, havia sido criado por ele vinte dias antes – e que o buraco já somava seis meses. Em seguida, deu-se o seguinte diálogo:
– Ele tem nome, seu Irandi?
– Não sei. Coloca aí Boneco Pescador.
– Mas Boneco Pescador não é bom. Vamos colocar João, que dá uma humanizada, é uma coisa brasileira.
O borracheiro concordou e ficou com o telefone do repórter, para a eventual – e improvável – hipótese de ocorrer alguma mudança. A reportagem foi publicada dias depois, com uma foto de João Buracão diante da cratera, sob o título “Nome e sobrenome para o descaso público”. Às sete e meia da manhã, o telefone de Fernando Torres tocou. Era Pereira da Rocha, estarrecido: “Fernando, isso nunca aconteceu antes. O pessoal da prefeitura já está aqui, tapando o buraco.” Em agradecimento, o borracheiro doou o boneco ao jornal, que, no dia seguinte, o escancarou na primeira página: “Rua esburacada? João Buracão é a solução!”
Era um sábado, 14 de fevereiro de 2009. O mito estava criado.
A disseminação do mito foi fulminante, ao menos nos subúrbios e na Baixada Fluminense. No dia 16, com fotos do boneco diante de crateras em Campo Grande, Realengo e Duque de Caxias, o diário anunciava: “João Buracão começa a fiscalizar reclamações de leitores do Extra.” No dia 17, o jornal colocava um box com número de telefone e horários para se fazer uma denúncia, abaixo do título: “Um dia após visita do ‘Caça-Cratera’, rua é consertada em Caxias. Ontem, o boneco esteve em ‘açude’ na Pavuna.”
Em março, João Buracão foi levado à rua onde mora Aparecida Panisset, prefeita de São Gonçalo, para mostrar que, à diferença da maior parte do município, o asfalto lá parecia um tapete negro de veludo, de tão novo e caprichado. Ao se deparar com a movimentação, Márcio Panisset, irmão da prefeita, e por coincidência também secretário municipal de Saúde, saiu de casa, agrediu o fotógrafo, roubou-lhe a câmera e levou-a, junto com João Buracão, para dentro de sua garagem. Ao ser informado, o chefe de reportagem do jornal, Octavio Guedes, entrou no ar ao vivo, pela Rádio Globo (tanto o jornal quanto a emissora pertencem às Organizações Globo) para denunciar a agressão ao fotógrafo e o sequestro do Caça-Cratera. “Em menos de uma hora, apareceu muita gente por lá para fazer pressão”, conta Fernando Torres. O boneco foi liberado e um processo foi aberto no 1º Juizado Especial Criminal da Comarca de São Gonçalo.
Com o respaldo popular – e, principalmente, das Organizações Globo –, João Buracão virou figura internacional. Fez greve de fome, apostou na Mega-Sena, apareceu no Jornal Nacional, no Fantástico, na novela Caminho das Índias, em reportagens da tevê espanhola e da BBC latina. Foi tema de dois raps, um funk, um samba, um pagode e de um folheto de cordel. Recebeu convite do prefeito do Rio, Eduardo Paes, para visitá-lo em seu gabinete. Foi homenageado duas vezes na Câmara dos Vereadores e, na companhia de seu criador, Irandi Pereira da Rocha, recebeu a Medalha Tiradentes, na Assembleia Legislativa. Com a demanda crescente, Pereira da Rocha fez outros quatro bonecos, que ficam guardados na sala de reuniões do jornal. Foram vendidos por 500 reais cada.
João Buracão leva ao menos uma semana para atender a um chamado popular. A vistoria é organizada de acordo com a região em que ele estará: impossível fiscalizar crateras na Baixada Fluminense e em São Gonçalo no mesmo dia. Depois de apurar a notícia, Fernando Torres deixa o número do seu celular com o denunciante, para o caso de o problema não ser sanado: “Quando isso acontece, a gente parte para a ignorância, para a cobrança rasgada.” Ele diz que, em seis meses de trabalho, João Buracão foi responsável direto pelo conserto de 220 crateras – uma delas, em Guadalupe, com dimensões lunares: 8 metros de diâmetro por 5 de profundidade.
Às duas horas de uma tarde recente, depois de investigar e fotografar uma cratera e uma vala em Nova Iguaçu, Buracão e seu fiel escudeiro chegaram à avenida Automóvel Clube, uma das mais movimentadas de São João de Meriti. Num trecho precário, onde o asfalto dava lugar a um caminho de terra, os dois eram aguardados pelo estampador José Carlos de Souza, de 41 anos, que telefonara para o jornal em busca do serviço. Souza contou que dez dias antes um motoqueiro morrera atropelado ao tentar desviar de um dos buracos.
Chovia. Enquanto Torres procurava alguém que se dispusesse a sair na foto com o boneco, um senhor diminuiu a velocidade de um Corsa e bradou, com sotaque português: “Estou cansado. Ninguém resolve nada!” Foi seguido pelo motorista de um Palio Weekend: “Já era hora. Tem outro buraco igual ali na frente.” Um chofer de ônibus da linha 715 buzinou e gritou: “Olha aí o meu amigo João Buracão!” O trocador completou: “A pescaria dele está farta! Depois me chama para a peixada que eu vou!” Um policial da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense ligou a sirene do camburão, em saudação: “Tava demorando para chegar, hein!”
Torres não se surpreendeu. Acomodou Buracão em uma cadeira de praia, cercou-o de crianças e, ajeitando o foco da máquina, comentou, antes de disparar: “Ele não tem falha, time, preferência política, não fala mal de ninguém. No início, quando eu chegava, as pessoas me perguntavam se o boneco estava comigo. Agora dizem: ‘É você que está com o Buracão?'”