ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Santo baile
O funk afrorreligioso da cantora MC Tha
Thallys Braga | Edição 191, Agosto 2022
No bairro boêmio da Lapa, no Rio de Janeiro, os garçons arrumam as mesas para a noite de sexta-feira. É um fim de tarde de julho e o Centro da cidade já está em alvoroço. Buzinas soam no trânsito frenético e a música irradia dos botecos para as calçadas. Uma voz feminina, entretanto, se impõe sobre a barulhada. Ela entoa os versos de Afreketê, canção lançada em 1987 por Alcione que homenageia Xangô, com uma roupagem nova: o que era um afoxé se tornou um funk de 145 bpm (batidas por minuto).
A voz é da paulistana Thais Dayane da Silva, conhecida como MC Tha, que ensaia no Circo Voador a apresentação que fará à meia-noite. A cantora de 29 anos tem chamado a atenção por levar a cultura afrorreligiosa às letras do funk. Na capa do seu primeiro disco, Rito de Passá, lançado em 2019, ela aparece como uma ancestral futurista: segura um par de velas e traja véu vermelho, boné de lado e óculos de sol espelhados tipo Juliet, muito usados nos bailes de favela.
Em junho, MC Tha lançou um EP (extended play, formato de gravação maior que o single e menor que o álbum) com cinco músicas da discografia de Alcione. Todas referenciam as religiões de matriz africana, mas acabaram se perdendo entre os sucessos românticos da sambista maranhense. No abafado camarim do Circo Voador, descansando em um sofá, a MC lembra que ouvia São Jorge quando começou a frequentar o terreiro de umbanda, em 2016, porém não reconhecia a voz da intérprete. “Um dia, pesquisei a letra da música no YouTube e dei de cara com o disco da Alcione”, conta.
Acomodado no mesmo sofá está o produtor musical Mahal Pita, que colaborou com a cantora na produção do EP. Os dois atravessaram 2021 isolados em Salvador, pesquisando as origens do funk. Ao analisar músicas de terreiro, Pita identificou que a base rítmica é constituída pelos sons de atabaque e agogô, este responsável pela clave aguda – o mesmo som que está na gênese do funk. “Se você reparar, é o mesmo tum tá tá tum tum tá”, diz o produtor.
A música que abre o ep é Agolonã. De origem iorubá, a palavra significa “com licença”. Também é uma saudação a Exu, o senhor dos caminhos. A versão de MC Tha e Pita tem ares místicos: por dois minutos e meio, a voz aveludada da cantora cresce junto a um instrumental misterioso, até desembocar em um funk.
Thais Dayane da Silva nasceu e cresceu na Cidade Tiradentes, distrito da Zona Leste que tem a menor expectativa de vida da capital paulista. Na adolescência, quando via seu bairro aparecer no noticiário, quase sempre era nas páginas policiais. E os bailes funks, que alegravam os jovens da região, não entravam nos cadernos de cultura. Aos 15 anos, MC Tha foi a primeira garota a se apresentar em uma daquelas festas. Seus shows eram singulares: no meio do batidão, ela desatava a cantar Elza Soares e Tim Maia. O público ficava desorientado.
A voz de MC Tha a diferenciava por ser suave (ao contrário do tom grave dos funkeiros de sucesso). E, para desespero dos contratantes de seus shows, a jovem não rebolava no palco. “O funk é a manifestação cultural mais inventiva que a gente tem no Brasil hoje. Sempre enxerguei o ritmo como uma possibilidade para fazer a minha própria poesia. Ter que ficar escutando o que eu deveria fazer ou não em cima do palco era extremamente cansativo”, diz ela.
Aos 18 anos, a MC deixou Cidade Tiradentes para fazer jornalismo em uma universidade privada no Centro de São Paulo. Afastou-se dos bailes. No primeiro ano da faculdade, conheceu o paraense Jaloo, cantor e produtor musical indie que causava frisson com seu disco de estreia. Com ele, gravou sua primeira música em estúdio, Olha Quem Chegou, de 2014. Mas a cantora diz que só encontrou sua identidade como funkeira quatro anos depois, quando gravou Valente, um funk sobre a coragem.
Hoje, as chances de escutar as gravações de MC Tha nos bailes de favela são muito pequenas. Em algumas dessas festas, o ritmo já acelerou até as 190 bpm. O trabalho dela tampouco segue a fórmula das músicas que fazem sucesso no país.
A paulistana, porém, conquistou uma base de fãs aguerrida, formada majoritariamente por jovens que acompanham a nova MPB, pela comunidade LGBTQIA+ e por adeptos das religiões de matriz africana. Em março, eles se espremeram no gramado do Autódromo de Interlagos para assistir ao primeiro show de MC Tha no Lollapalooza Brasil. “Quando lancei o clipe de Rito de Passá, a maioria das visualizações veio de pessoas de terreiro que descobriram o vídeo em grupos para umbandistas nas redes”, diz. “Na época em que entrei no terreiro, quase não tinha gente jovem. Agora a galera está lá, posta até stories no Instagram dentro da gira.”
Mahal Pita e MC Tha e chegaram mais cedo ao Circo Voador para arrumar o cenário do palco. “Quando você se propõe a fazer um trabalho visual elaborado e não tem grana, o jeito é colocar a mão na massa”, diz o produtor. A MC lança sua música de forma independente, sem gravadoras. Para promover o novo EP, ela gravou um vídeo de 25 minutos inspirado no programa Alerta Geral, que Alcione comandou na Rede Globo no final da década de 1970. As cenas foram registradas por uma equipe de quatro pessoas na casa onde MC Tha e Pita moram em Salvador.
No Circo Voador, a artista entra em cena descalça, em um vestido de tricô preto, o cabelo preso numa trança que beira o chão. Ao fim da primeira música, pede justiça às comunidades que tiveram seus terreiros destruídos. “Que Xangô esteja presente nos nossos caminhos”, diz.
A penúltima música do show é Comigo Ninguém Pode. Na letra, MC Tha se descreve como a guerreira que canta/Encanta e vence a guerra/Eu sou o passo mais largo/Que já andou nessa terra. O funk foi lançado há três anos, e desde então ela encontrou novas maneiras de se definir. Há algumas semanas, decidiu que seu próximo álbum vai se chamar Santha.
Antes de deixar o palco, perto das duas da madrugada, ela puxa uma cantiga que reverencia Exu nos terreiros. É meia-noite em ponto e o galo cantou/Cantou pra anunciar que Tiriri chegou, cantarola. O chão do Circo Voador treme com a batida grave do funk.