ILUSTRAÇÕES: ROBERTO NEGREIROS_2016
Se nos permite uma sugestão
Ao fazer uma limpeza em seu computador, um ex-editor de livros encontrou alguns e-mails
Maria Emilia Bender | Edição Se nos permite uma sugestão,
PARA: GRACILIANO RAMOS
ASSUNTO: VIDAS SECAS
Prezado senhor,
Lemos seus originais com interesse, a despeito da aridez do tema. Aliás, o título vem bem a calhar nesse momento de crise hídrica pelo qual passa o planeta (hahahaha). Julgamos, porém, que a narrativa ganharia se ao final oferecesse alguma possibilidade de redenção. É muita desgraça. Aqueles coitados sofrem o tempo todo, o leitor não tem nem um momento de trégua, é só ziquizira. Tanto pessimismo afasta as pessoas, acredite em nós, temos experiência no ramo. Nosso departamento comercial encomendou inúmeras pesquisas e os resultados foram eloquentes: ninguém, absolutamente ninguém quer saber de adversidade. De amarga basta a vida, como diz o outro. E mais: morte de animal já extrapola qualquer limite.
Pelo menos o caçula poderia se sair bem, abrindo um negócio no Sul, não? Ah, justamente: O Menino Mais Novo. Eis outro ponto a ser considerado: a ausência de nome dos filhos do protagonista. Se até a cadela Baleia, que Deus a tenha, é nomeada, por que o senhor condenou os meninos ao anonimato? Teria sido esquecimento?
Seguem algumas sugestões (não se peje em adotá-las, caso seu livro encontre acolhida em alguma casa editorial):
* Filho mais velho: Fábio Júnior, Marlon Wagner, Marcelantony, Selton (têm forte apelo midiático);
* Filho mais novo: Cauã, Fiuk, Justin, Chay Suede (estimulam o imaginário das adolescentes).
Boa sorte!
ASSUNTO: MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS E DOM CASMURRO
Prezado postulante,
Talvez o senhor não esteja sendo bem orientado (seu agente literário tem péssima reputação na praça – quem avisa amigo é…), mas via de regra os candidatos a um lugar ao sol no inclemente mercado editorial deveriam enviar apenas um, e olhe lá, original por vez.
O romance delirante que o senhor classificou como “memórias póstumas” definitivamente não nos interessa. Como assim, um autor defunto? É do conhecimento de todos que não somos uma editora de filiação kardecista. Podemos, no entanto, encaminhar sua obra aos responsáveis pelo nosso selo de religião, autoajuda e assuntos espirituais. Avise-nos, caso seja de seu interesse (por e-mail, por favor, pois não dispomos de infraestrutura para receber uma comunicação mediúnica, do tipo mesa branca).
Quanto ao outro original, aquela história de um casamento malsucedido, Dom Casmurro, detectamos um problema na trama: afinal, Capitu traiu ou não o marido? Isso não fica claro. Talvez fosse preciso reescrever o texto adotando outro ponto de vista que não o de Bentinho, parte interessada em nos fazer crer ter sido ele vítima de adultério. E se a narradora fosse a prima Justina, que “dizia francamente a Pedro o mal que pensava de Paulo, e a Paulo o que pensava de Pedro”? Parece-nos uma voz mais isenta, capaz de narrar os acontecimentos com a distância que o enredo exige.
Last but not least, para usar uma expressão do agrado dos autores anglo-saxônicos que o senhor frequenta, gostaríamos de reconhecer sua coragem e perseverança em nos ter submetido outros exercícios literários de sua lavra, não obstante havermos recusado Casa Velha. Magoounos, porém, seu agente (ele, de novo…) ter vazado para a imprensa a notícia da recusa (cf. Folha de S.Paulo de 21.04.1999). Isso não se faz.
Por ora, são esses os nossos comentários.
ASSUNTO: OS SERTÕES
Senhor,
Nesses dias de econômicos 140 toques, é digno de louvor seu fôlego, que o levou a produzir uma obra de mais de 1 milhão de caracteres. Mas, por favor, raciocine conosco: quem, em sã consciência, empunharia esse catatau e o leria na praia, na piscina ou mesmo na cama, antes de dormir? Sim, o leitor é, antes de tudo, um forte (kkkkk), mas não vamos exagerar. Nos tempos atuais, o que tem de gente com tendinite não é um fator a ser desprezado. As estimativas da OMS estão aí, para comprovar.
Por isso, na hipótese de nosso parecer final vir a ser favorável (não conseguimos terminar a primeira parte, bem pedregosa, por sinal), seria de bom alvitre considerar a possibilidade de uma edição apenas em e-book, já que o leitor digital não pesa mais de 200 gramas. E ainda há que se ponderar uma vantagem: o dispositivo oferece a opção de se clicar na palavra e a definição da mesma surgir na tela instantaneamente. Como seu livro está coalhado de termos esdrúxulos, tal facilidade evitaria que o leitor precisasse recorrer amiúde ao dicionário.
Entraremos em contato posteriormente.
PS: Um de nossos colaboradores (freelancer no departamento de marketing), afeito à numerologia, aventou a troca do “i” de seu nome por um “y”: Euclydes. Fica a dica.PARA: MÁRIO DE ANDRADE
ASSUNTO: MACUNAÍMA
Anauê![1]
Foi com júbilo que recebemos seus originais, nesse momento em que as Diretrizes Curriculares Nacionais privilegiam a cultura indígena, afro-brasileira e africana. Agora é a hora e a vez da cultura de raiz, como dizem.
No entanto… A trama desenvolvida, não obstante as pesquisas etnolinguísticas levadas a cabo pelo senhor, não só é muito confusa, como está eivada de preconceitos. Por exemplo: o protagonista é filho de mãe indígena, mas nasce preto. Ao pai, supostamente afrodescendente, não é feita nenhuma referência. Essa passagem não poderia ser lida como uma crítica velada ao homem negro que abandona a família, não assumindo a paternidade? Fosse branco, estaria presente, poderíamos deduzir.
Não bastasse a principal virtude do “herói” ser a preguiça, ele se dedica incansavelmente a “brincar”, passando a ideia de que a civilização avança à custa de jogos sexuais. É isso mesmo que o senhor advoga? E o trabalho? A meritocracia?
Se concordar em rever esses tópicos (o senhor inventa um pai amoroso para o protagonista, que por sua vez trabalha mais e brinca menos, entre outros), talvez pudéssemos considerar uma eventual publicação. Mas seria indispensável esclarecer as referências com notas de rodapé ou num glossário, para não deixar o leitor tão à deriva. Quem sabe uma linha do tempo, um caderno de imagens com documentos históricos atestando o jugo do colonizador sobre o povo ameríndio?
Por favor, pense com carinho nessa sugestão.
Até breve.[2]
—
[1] Favor não confundir com a saudação integralista, trata-se apenas de um cumprimento em tupi, contagiados que fomos pela linguagem de suas páginas.
[2] Ou, se preferir, jajo hecháta ko’erõ.
ASSUNTO: GRANDE SERTÃO: VEREDAS
Prezado senhor,
Primeiramente, gostaríamos de parabenizá-lo pela atualidade da trama, que incorpora um dos tópicos que permeiam nossa sociedade, como a questão de gênero. É muito bonito o modo como o leitor é conduzido à revelação de que Diadorim é um travesti (ou seria transexual? Transgênero, talvez?). No entanto, a fatura da obra, como um todo, não está à altura da ambição a que o senhor pretende. E isso se deve única e exclusivamente a sua linguagem.
Se nos permite uma consideração franca e objetiva, pareceu-nos que o senhor se encantou sobremaneira com o personagem Yoda, da série Guerra nas Estrelas. Vê-se que a saga o fisgou. Vamos aos exemplos.
Ao abrirmos seus originais aleatoriamente, em qualquer trecho, à maneira do I Ching (não nos passou despercebida sua profunda ligação com o plano místico da existência, portanto decerto o senhor está familiarizado com o Livro das Mutações), encontraremos frases cuja sintaxe apresenta clara inspiração nas falas do Mestre Jedi:
* “Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato ele muito não acreditava.”
* “Permeio com quantos, removido no estatuto deles, com uns poucos me acompanheirei, daqueles jagunços, conforme que os anjos da guarda.”
* “Até amigo meu pudesse mesmo ser; um homem, que havia.”
* “Verdadeiro meu propósito era esse, como está dito.”
Mas não desanime, não é o caso de deletar tudo. Pensamos que a obra poderia ser desmembrada, de modo a resultar num florilégio de frases (algumas delas muito tocantes, a bem da verdade), que decerto encontraria excelente recepção entre os internautas. A título de exemplo, pinçamos:
* “O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…”
* “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”
* “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”
* “Viver é um descuido prosseguido.”
* “Um sentir é o do sentente, mas o outro é o do sentidor.”
* “Deus existe mesmo quando não há.”
* “O diabo não há! Existe é homem humano. Travessia.”
Se a ideia o agradar, poderemos disponibilizar um de nossos estagiários para compilar o livrete. (Que tal o título Qualquer Maneira de Amor Vale a Pena? Nosso time de vendas disse ter apelo.) Caso o volume tenha bom desempenho comercial, poderemos pensar em subprodutos, como agendas com frases inseridas a cada dia do ano, à guisa de máximas (cf. o sucesso de Mario Quintana), ou um estimulante jogo de caça-palavras.
Sempre poderemos fazer de um limão uma limonada, não é mesmo? Afinal, “a morte é para os que morrem”.
Sem mais.
ASSUNTO: O IRMÃO ALEMÃO
Meu caro,
A essa altura dos acontecimentos, quando já ficou evidente – por vídeo veiculado por sua própria equipe,[1] na tentativa arquimanjada de encobrir a verdade dos fatos falando abertamente deles – que o senhor não só compra músicas de um punhado de compositores (mulheres, velhos, loucos, marginais) sem acesso aos veículos da mídia – bancada, como se sabe, pelo comunismo internacional –, como é cliente assíduo das melhores óticas especializadas em lentes de contato coloridas (sobretudo as de Paris!), chegou a hora de dar um basta a essa farsa.
Não, não nos interessa examinar esse novo original que o senhor acaba de nos submeter. Urge, sim, dar nome aos bois! Que a verdade venha à tona.
Descobrimos que Estorvo, sua estreia no gênero romance, é da autoria do crítico Roberto Schwarz. Que não apenas lhe cedeu o romance, como não se constrangeu em louvá-lo apenas o livro veio a lume. Sua segunda investida, Benjamim, foi fruto da pena do senhor André Schwarcz, o finado pai de seu então editor. As primeiras reimpressões inclusive traziam uma foto daquele senhor na capa (ideia do designer, talvez? Envergonhado com a falcatrua, ele de algum modo teria procurado nos dar uma pista do verdadeiro autor). Alertada por um assistente perspicaz, a editora mudou o projeto gráfico depois de um tempinho.
Budapeste, só não viu quem não quis: aquele jogo de espelhos e trocadilhos, de lances que se desmentem assim que o pobre leitor se resignou a aceitá-los, as infinitas discussões sobre o plágio (ahá, mais uma vez fazendo piada da verdade, de novo a cortina de fumaça!), foi criado pelo professor e compositor José Miguel Wisnik, um sujeito que domina essas brincadeiras verbais de gosto duvidoso. Não bastasse, os editores delegaram ao próprio José Costa, quer dizer, José Miguel Wisnik, a elaboração do release que foi enviado à mídia.
O romance Leite Derramado não nos exigiu pesquisas muito extensas. A vida do centenário Eulálio d’Assumpção, pertencente à elite política fluminense, expoente da oligarquia saquarema, foi encomendada ao historiador Boris Fausto, é fato incontestável. Próximo do professor Antonio Candido de Mello e Souza, notório expert da genealogia de nossos antepassados de bem (e bens), não foram poucas as ocasiões em que Fausto recorreu à fabulosa memória do amigo para levar a cabo sua empreitada.
Assim sendo, não leremos uma palavra desse “seu” novo livro, até que o senhor decline a identidade do autor de direito.
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[1] Cf. a série de 12 DVDs “Chico Buarque Especial” lançada em 2005–2006.
PARA: DILMA ROUSSEFF
ASSUNTO: DIÁRIOS DA PRESIDÊNCIA
Excelentíssima senhora,
Sem dúvida, diários e memórias de chefes de Estado costumam encontrar guarida promissora por parte do público, mais não fosse pela oportunidade que nós, (e)leitores, temos de compartilhar da intimidade do poder. Lembramos, ademais, que a literatura só tem a ganhar com iniciativas que tais – Winston Churchill chegou a encaçapar um prêmio Nobel; Fernando Henrique Cardoso já estava envergando o fardão da Academia Brasileira de Letras antes mesmo do lançamento de seus diários.
A proposta que a senhora nos encaminhou, porém, surpreende pelo inusitado. E nem sempre o inusitado é um bom conselheiro, por mais que as escolas de marketing, e de samba, insistam no quesito originalidade.
Um tomo ilustrado por um quadrinista, com entradas diárias de quatro a cinco linhas, comentando carteados, telenovelas ou tinturas de cabelo, tecendo loas à forma física de autoridades do exterior ou enaltecendo bigodeiras nacionais, francamente. O que dirá de nós o futuro? (Se for o mesmo que anda divulgando seu irmão mais novo, o presente, continuaremos em maus lençóis.)
Podemos, em contrapartida, propor-lhe uma compilação dos provérbios que, ao longo de sua estada no Alvorada, a senhora cunhou, para gáudio da nova geração de linguistas e filólogos. Por exemplo:
* Em tempo de crise, ovo de codorna é caviar
* Não se dá peixe pra foca antes de ela fazer o truque
* Em terra de malandro, rainha usa boné
* Sutil é o cágado, que não pede abrigo a ninguém
* Diante de Napoleão de hospício é melhor ser Josefina
* Urubu que vai à praia volta de papo seco
* Sardinha que dá nó em pingo d’água acaba de nadadeira amarrada
A título de bônus, ao final do volume elencaríamos os inúmeros links com cantorias e dancinhas que a senhora e sua equipe fizeram viralizar nas redes sociais, como Estocando o Vento, Saudando a Mandioca, Mosquita, A Meta etc.
Bem, como diria um ex-colega seu, a fructibus cognoscitur arbor.