CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Segundas-feiras felizes
Uma fotógrafa com síndrome de Down em Brasília
Letícia Sorg | Edição 207, Dezembro 2023
Jéssica Mendes de Figueiredo adora segundas-feiras – e pela mesma razão que faz o primeiro dia útil da semana ser universalmente detestado. “Ela gosta porque vai trabalhar! Você acredita?”, diz seu pai, o empresário Guilherme de Figueiredo Melo. Aos 31 anos, a fotógrafa brasiliense, que tem síndrome de Down, integra uma minoria: a das pessoas com deficiência intelectual que concluíram um curso superior e conseguiram emprego em sua área de formação.
“Eu nunca tinha tido trabalho ou estágio”, ela conta. “Tem muito preconceito e capacitismo.” Jéssica começou a fotografar aos 14 anos. Formou-se em fotografia no Instituto de Educação Superior de Brasília e há dez anos é funcionária terceirizada da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Ela fotografa eventos oficiais. Quando não está com a câmera na mão, desempenha outras funções, como validar conteúdos em linguagem simples que a secretaria produz para que possam ser entendidos por todos. Um deles foi uma “tradução” da Pnad Contínua de 2022, a pesquisa do IBGE que incluiu, pela primeira vez, dados sobre a população com deficiência no Brasil.
Não são números animadores: 71% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar estão fora do mercado. Quando se considera apenas aquelas que têm limitações cognitivas, a taxa de desocupação chega perto dos 80%. Na secretaria que zela pelos direitos desse público, Figueiredo é até agora a primeira e única funcionária com síndrome de Down a ser contratada pela secretaria. Em seu posto, a fotógrafa atravessou os governos Dilma, Temer e Bolsonaro, o que é raro para quem não passou por concurso.
Entre os concursados no serviço público federal, que prevê uma cota de 5% para deficientes, estes representam menos de 1%. Os números vão constar na próxima edição do livro Política da pessoa com deficiência no Brasil: percorrendo o labirinto, de Jorge Amaro de Souza Borges, ex-coordenador do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). Foi ele quem admitiu Jéssica, em 2013. “Como não havia regra para esse tipo de colaboração, fizemos um contrato com o Conade até ela ser contratada por uma empresa terceirizada, um ano depois”, conta Amaro, que hoje é vereador pelo Progressistas em Mostardas, município do Rio Grande do Sul, mas segue atento aos desafios da inclusão. “Para incluir, é preciso considerar os talentos e as limitações das pessoas. E, nos concursos, isso pode significar aplicar uma prova diferente.”
A inclusão de pessoas com deficiência é um assunto relativamente novo no Brasil. É verdade que a lei que estabelece uma cota de 2% a 5% de contratados com deficiência nas empresas é de 1991, mas, segundo análise de Amaro com base na Relação Anual de Informações Sociais, 50% das cotas não estão preenchidas.
O país assinou a convenção da ONU sobre o tema em 2009 e aprovou a Lei Brasileira de Inclusão em 2015. Desdobramentos da regulamentação ainda precisam ser colocados em prática, como o chamado emprego apoiado, em que a pessoa com deficiência é treinada dentro da empresa, com o auxílio de um consultor.
Na falta dessa figura no posto de trabalho da fotógrafa, coube a sua mãe, a advogada Ana Mendes de Figueiredo, de 58 anos, cumprir, intuitivamente, esse papel. Nos primeiros anos, sua presença na secretaria era constante. “Eu tinha muito receio de a Jéssica ficar como um bibelô, sem tarefas, na vitrine”, diz. “Ela tem que prestar o serviço para o qual está recebendo. Como todos, as pessoas com deficiência têm direitos e deveres.”
Desde a infância de Jéssica, seus pais se dedicaram a garantir o máximo desenvolvimento da filha, adotando protocolos de estimulação precoce. Em 1995, a menina foi aprovada num exame que lhe permitiu ingressar no jardim da infância. Como a educação inclusiva ainda não era um direito consagrado, foi necessário recorrer à Secretaria de Educação para matricular em uma escola pública. A luta estava só começando.
Certo dia, ao visitar a escola, Ana encontrou a filha ao lado de um aluno cadeirante num canto da sala, enquanto os demais estavam trabalhando em grupos. A professora alegou que a cadeira do menino não se adaptava às carteiras, por isso ele não havia se juntado aos colegas. Solidária, Jéssica tinha decidido ficar com ele. Mais impedimentos ocorreram, até que Ana decidiu buscar outra escola para a filha.
Na faculdade também houve episódios de exclusão. Certa vez, um grupo de onze estudantes foi fotografar em um local que só permitia a entrada de oito pessoas. Alguns decidiram deixar Jéssica e duas alunas surdas de fora. “Eles falaram baixo, mas eu ouvi. Fiquei muito triste e saí chorando”, conta a fotógrafa.
Ana perguntou se a jovem queria sair do curso ou ajuizar uma ação de indenização por danos morais. “Eu já estava quase terminando, decidi continuar. Também não quis levar para a Justiça, não queria prejudicar meus colegas.” Ficou decidido que haveria um trabalho de conscientização na faculdade. “O diretor disse que os colegas precisavam respeitar meu tempo. E eles pediram perdão para mim. Tem que ter coração. Não quero levar esse peso.” Jéssica formou-se em 2013.
No mesmo ano, ela fez a exposição Asas e flores, apresentada inicialmente na Câmara dos Deputados. Em 2017, o trabalho virou um livro de fotos da natureza, seu tema preferido.
Jéssica se orgulha de ter feito em 2016, por iniciativa própria, uma narrativa fotográfica sobre educação inclusiva. No ano seguinte, o trabalho foi exibido na ONU, em Nova York, durante a 10ª Conferência dos Estados Partes da Convenção das Nações sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (um resumo da exposição pode ser visto no vídeo abaixo, com narração da autora). Coube a Izabel Maior, que já comandara a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, apresentar o trabalho de Jéssica, que não estava presente.
Das fotos que integram a narrativa, a autora tem uma favorita: uma imagem obtida com exposição em baixa velocidade, capturando os movimentos de uma menina com Down no pátio da escola. “Gigi está feliz, pulando durante o recreio. É como um respiro”, ela descreve.