A fantasia do “supremacismo negro”: a ideia de que os negros querem subjugar os brancos é um produto perverso do racismo, pois o que eles buscam é o direito elementar de poder viver CREDITO: RÉQUIEM_ANTONIO OBÁ_2019_CORTESIA DO ARTISTA E MENDES WOOD DM_SÃO PAULO, BRUXELAS, NOVA YORK
“Sei quando um país está em crise”
Dois congoleses desistem do Brasil e seguem para os Estados Unidos pela “rota da morte”
Matheus de Moura | Edição 186, Março 2022
Um casal abraçado e um amigo aguardavam, sentados, no andar térreo do Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Galeão, no Rio de Janeiro, enquanto a chuva crepitava no teto. O congolês Moïse Eureka, de 27 anos, com um chapéu pescador branco adornado com corações, recebia um carinho de sua companheira, a capixaba Fany Serafim, de 28 anos, que havia prendido o cabelo afro num coque puff (arranjado no alto da cabeça). Ao lado deles, o também congolês Elvis Kembilu, de 28 anos, conhecido como Ali – apelido que leva tatuado no peito em letras garrafais – batalhava contra o sono. A chegada do amigo Cyrille Mamanu Kalala, de 22 anos, animou o grupo. Ça va?, perguntou Eureka. Ça va, respondeu Kalala.
Eram quase seis da tarde do dia 7 de fevereiro passado, segunda-feira. Eureka e Kembilu esperavam a chamada para um voo rumo a São Paulo. A capital paulista seria apenas uma primeira etapa da viagem à fronteira do México com os Estados Unidos. Da capital paulista, eles pegariam outro voo, para Rio Branco, no Acre, de onde seguiriam para o Peru. Em seguida, adentrariam a Colômbia, até atingir a região da selva de Darién, considerada um dos lugares mais desafiadores e perigosos do planeta – o que não tem impedido que milhares de imigrantes se arrisquem em suas montanhas, mata cerrada e rios caudalosos, até atingir o Panamá. Os perigos vêm de toda parte: animais, traficantes que atuam na área, bandidos avulsos, policiais corruptos e grupos guerrilheiros. São muitos os que não chegam ao destino ao atravessar essa “rota da morte”, como costuma ser chamada. No ano passado, até outubro, o Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses do Panamá registrou 53 mortes de imigrantes na região.
Por pressão de Fany Serafim, que estava preocupada com o horário, o grupo subiu para o segundo andar, onde fica a área de embarques domésticos. Quando perceberam que o voo que aguardavam não aparecia nos telões, procuraram o balcão de atendimento da companhia aérea. Ali, foram informados de que o avião havia decolado às 18h25 – e não às 19 horas, como acreditavam que seria. Por algum motivo, eles tinham memorizado um horário errado e passaram os últimos dias no Brasil repetindo para si e para todos: “Nosso voo é às sete da noite.”
Agora, para ir a São Paulo, Kembilu e Eureka precisariam acertar uma nova viagem com a agência de turismo que lhes vendera as passagens ou comprar novas no aeroporto, a 1,5 mil reais cada uma. Os dois amigos começaram a dialogar nervosamente em lingala – língua do ramo bantu falada por 80% da população da República Democrática do Congo.
Enquanto discutiam sobre o que fazer, chegou Chadrac Kembilu, de 26 anos, irmão de Elvis, acompanhado de sua amiga Fernanda Lima, da advogada Maria Baqueriza, da Cáritas Internacional, ONG da Igreja Católica, e da psicóloga Yasmin França, do Projeto Ação Integrada, fruto de uma parceria da organização religiosa com o Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro. Baqueriza e França, que também achavam que o voo era às sete da noite, tinham ido até o aeroporto para persuadir a dupla a não embarcar na arriscada travessia. A fim de convencê-los a não pegar outro voo, ofereceram assistência para arranjar emprego, casa, alimentação e curso profissionalizante.
A representante da ONG ficara sabendo da viagem de Eureka e Elvis Kembilu por meio da psicóloga que atende Chadrac, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Após uma consulta recente, ela soube que Chadrac, o irmão e o amigo estavam planejando deixar o país. Chadrac, que é naturalizado brasileiro desde o ano passado (o pedido de naturalização de Elvis ainda não saiu), pensava em ir direto até um país da América Central – sem precisar atravessar a rota da morte –, onde se hospedaria por duas semanas na casa de um amigo congolês, esperando Elvis e Eureka chegarem. Juntos, os três seguiriam dali até a fronteira do México com a Califórnia, onde pediriam asilo.
Esse era o plano, até Chadrac ceder ao apelo das representantes da Cáritas e desistir da viagem – “por pouco tempo”, ele disse. Sua ideia é juntar mais dinheiro para chegar aos Estados Unidos. Nas contas de Eureka e Elvis Kembilu, cada um gastaria na viagem entre 2 e 3 mil dólares, incluindo os 100 dólares cobrados por “coiotes” – as pessoas que guiam imigrantes irregulares na travessia de fronteiras – no Panamá e no México.
Embora tenham imigrado para o Brasil há cerca de oito anos, Moïse Eureka, Elvis e Chadrac Kembilu não conseguem mais se imaginar vivendo aqui, depois que o também congolês Moïse Kabagambe, um amigo que chamavam de “irmão”, foi assassinado a pauladas no Rio, na noite de 24 de janeiro passado. Residente no Brasil com sua família desde 2011, Kabagambe, de 24 anos, trabalhava no quiosque Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca, e quando foi cobrar uma dívida de 200 reais de seu empregador acabou sendo espancado até a morte por cinco homens.
Assim como Kabagambe, seus amigos congoleses haviam chegado ainda adolescentes ao Brasil para escapar da violência no país natal e encontrar uma vida melhor, juntando-se às 1 073 pessoas da República Democrática do Congo que desde 2011 imigraram para cá, segundo dados do Ministério da Justiça. Agora, tendo entrado na maturidade, eles não vislumbravam mais nenhuma chance de escapar da pobreza e da violência no Brasil. A morte do amigo colocou a tragédia outra vez em suas vidas e acelerou a vontade de dar a elas outro rumo, urgentemente.
Ao contrário do que se passou com Chadrac, não foi possível convencer Elvis e Eureka a desistir da viagem. Os dois compraram novas passagens para Rio Branco, com conexão no Aeroporto Internacional de Guarulhos, para um voo que sairia às 4h20. A psicóloga e a advogada foram embora, e os amigos iniciaram uma longa despedida. Os que continuariam no Brasil pediram aos viajantes que enviassem fotos e vídeos ao longo do percurso, tal como fizeram outros congoleses que se arriscaram no mesmo caminho, meses antes.
Para amenizar a tristeza geral, Chadrac disse ao irmão e ao amigo que logo os encontraria. E foi embora com Kalala em um carro chamado por aplicativo, os dois aos prantos. Fany Serafim esperou ao lado do namorado até o último momento. Na hora prevista, Elvis Kembilu e Moïse Eureka tomaram o voo.
Os irmãos Elvis e Chadrac Kembilu nasceram em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo (RDC), filhos de pais católicos. Moravam em uma casa térrea de cerca de 50 m2 com três quartos e levavam uma vida de classe média para os padrões do país. O pai deles, Tresor Kembilu, trabalhou por um longo período como burocrata na Sociedade Congolesa de Correios e Telecomunicações, e possui alguns negócios na capital. Teve vinte filhos de quatro relacionamentos, mas nunca se casou. Um deles, porém, perdura até hoje – com Veronique Nkusu, a mãe de Elvis e Chadrac, que, durante o período mais difícil da vida da família, vendeu bolos e pães nas ruas de Kinshasa.
Quando faltava dinheiro em casa, os Kembilu alimentavam-se de sopas e fufu, uma mistura de mandioca com farinhas. Quando podiam gastar mais, o prato do dia era feijão-branco e peixes da região, como a perca-do-nilo. Durante alguns anos, Elvis e Chadrac frequentaram um internato católico no interior do país, de disciplina militar, segundo eles. Na RDC, o ensino intermediário termina com um curso profissionalizante – Chadrac optou por se tornar pedagogo, e Elvis, eletricista.
A ideia de imigrar para o Brasil começou a ocupar a mente dos irmãos quando eles passaram a ser cortejados ora pelo exército nacional, ora por milícias hutus, para se juntarem a eles. A perspectiva de ter que empunhar uma arma e enfrentar conflitos letais não estava nos planos dos rapazes. Eles queriam escapar desse destino. Quando crianças, testemunharam o choque causado em sua família pelo assassinato do presidente Laurent-Désiré Kabila, morto a tiros em 16 de janeiro de 2001 por um de seus seguranças pessoais, dentro do salão presidencial – o que desencadeou novos conflitos no país. “Eu me lembro da minha família chorando, o clima pesou, ninguém tinha coragem mais de sair de casa… Tiroteios começaram a acontecer na minha rua”, recorda Chadrac. Ainda adolescentes, os irmãos Kembilu haviam perdido amigos nas disputas políticas do país.
A República Democrática do Congo é um caldeirão de conflitos e guerras causados por rivalidades de vários tipos, desde étnicas a políticas. Com 2,3 milhões de km2, é o maior país da África Subsaariana, mais ou menos do tamanho dos estados do Amazonas e de Mato Grosso juntos. Faz fronteira com outras nove nações, dentre elas Ruanda, onde ocorreu um dos maiores genocídios do século XX, promovido pelos hutus contra os tútsis. A própria história da RDC está marcada por um dos mais cruéis genocídios da história, em que os colonizadores belgas mataram cerca de 10 milhões de pessoas.
As feridas do colonialismo brutal nunca se fecharam por completo no país, mesmo após a independência, em 1960, conquistada graças ao movimento liderado por Patrice Lumumba, próximo da União Soviética. No mesmo ano, uma rebelião comandada por Moïse Tshombe, com o apoio da Bélgica e dos Estados Unidos, depôs Lumumba, que foi assassinado no ano seguinte por mercenários belgas e teve seu corpo dissolvido em ácido. Restou dele apenas um dente de ouro, que um policial belga guardou e que será restituído à família de Lumumba, considerado hoje um herói nacional, o pai da independência do país.
Em 1965, ocorreu um novo golpe de Estado, sob o comando de Mobutu Sese Seko, que permaneceu no poder ditatorialmente por 32 anos, apoiado pelos Estados Unidos. Certa prosperidade foi alcançada pelo país nesses anos, mas não resultou em melhoria das condições de vida da população.
Em 1990, estourou na vizinha Ruanda uma nova guerra entre os dois grupos étnicos predominantes, os hutus – maioria – e os tútsis. Durou quatro anos, mas em cem dias do ano de 1994 aproximadamente 800 mil tútsis foram mortos pelos hutus. Os tútsis, entretanto, tomaram o poder, vencendo a guerra civil – e cerca de 1 milhão de hutus, entre os quais havia líderes do genocídio, se refugiaram na República Democrática do Congo.
A presença maciça dos hutus de Ruanda no Leste da RDC causou forte impacto na região, habitada por tútsis baniamulenges, que iniciaram uma revolta contra o governo de Mobutu, apoiados pela população, em crescente miséria. Em 1997, o ditador foi derrubado. Laurent-Désiré Kabila assumiu o poder, mas foi morto em 2001, naquele atentado que não sai da memória de Chadrac. Foi sucedido pelo filho, Joseph Kabila, que iniciou um processo de democratização. Cinco anos depois, ocorreram as primeiras eleições gerais no país desde a década de 1960. Joseph Kabila se candidatou e foi eleito presidente.
Apesar de conseguir sustentar uma relativa estabilidade política e econômica, o novo líder não teve sucesso em conter os conflitos armados. Eles ocorrem até hoje, motivados por intolerância racial, disputas políticas e pelo controle da extração mineral – o país é rico em minérios, como diamantes, ouro e sobretudo cobalto, essencial para a fabricação de aparelhos eletrônicos e do qual detém 50% da reserva mundial. Apesar dessa pujança material, 73% da população congolesa sobrevive com 1,90 dólar por dia, uma das menores rendas per capita do mundo, segundo o Banco Mundial.
Um padre da Igreja São Vicente de Paulo, que os Kembilu frequentavam em Kinshasa, ofereceu à família a possibilidade de Elvis e Chadrac migrarem para o Brasil e construírem suas vidas aqui, longe das guerras congolesas. Os dois irmãos embarcaram num dos aviões que trouxeram jovens africanos católicos para a Jornada Mundial da Juventude, ocorrida entre 23 e 28 de julho de 2013, quando o papa Francisco veio ao Brasil. Da República Democrática do Congo, eles foram para Brazzaville, capital da vizinha República do Congo, seguiram para Togo, país no Golfo da Guiné, e chegaram a Adis Abeba, na Etiópia, onde finalmente tomaram o voo para São Paulo.
Na capital paulista, os irmãos conheceram o frio pela primeira vez. Emocionado por pisar no país que seus amigos tanto elogiavam, Chadrac se perguntou se o clima brasileiro seria sempre assim. A resposta foi um retumbante “não”, quando desembarcaram no Rio de Janeiro, onde ocorreria a Jornada Mundial da Juventude.
Após terem acompanhado o evento católico, Elvis e Chadrac, que não sabiam uma palavra de português, foram levados por padres até o salão de beleza do congolês Nsuka Kaluba, no bairro da Saúde, região central do Rio de Janeiro. Permaneceram algumas horas ali, até serem conduzidos, com a ajuda do cabelereiro e de religiosos, à comunidade Cinco Bocas, nos arredores do bairro de Brás de Pina, na Zona Norte, conhecida por abrigar numerosos congoleses. “A gente ouvia falar muito do Brasil, foi uma emoção chegar aqui”, contou Chadrac. Ele sabia que o país tinha muitos problemas, mas ao menos era conhecido por não expulsar imigrantes.
Durante cerca de seis meses, os Kembilu contaram com a ajuda da Cáritas, que deu a eles cesta básica e os colocou em contato com a assistência social. Os irmãos começaram a buscar trabalho, que eram sempre temporários. “No começo fiz coisas que eu não faria mais hoje”, disse Elvis, que não quis dar detalhes sobre que serviços foram esses.
Em 2014, Moïse Eureka deixou Kinshasa e também imigrou para o Brasil. A mãe do rapaz, Martide Feza, estimulada por parentes que residiam no Rio havia um par de anos, o ajudou a escapar da falta de perspectivas e dos conflitos que tiraram a vida de seu marido, sob circunstâncias nunca esclarecidas. Eureka também havia se formado como técnico eletricista em seu país e, no Brasil, tal como Elvis e Chadrac, foi morar na Cinco Bocas.
Os irmãos Kembilu, Eureka e Cyrille Kalala acabaram se tornando amigos. Após se mudarem para diferentes bairros do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana, eles foram morar no Conjunto Habitacional Haroldo de Andrade, na Zona Norte do Rio. Junto com a Cinco Bocas, o conjunto é o local onde mais se encontram moradores congoleses na cidade. Por isso mesmo, os brasileiros que vivem no condomínio cunharam uma das praças como “dos angolanos”, confundindo a nacionalidade dos vizinhos. É nela que toda noite reúnem-se alguns congoleses e brasileiros que abraçaram a cultura deles.
O conjunto é um labirinto de 63 prédios de seis pisos, em tons de bege, entre o Shopping Jardim Guadalupe, na Avenida Brasil, e a Estação de Barros Filho, um terminal ferroviário. Entre os prédios maltratados, existem pequenas praças sem árvores, com bancos de cimento, onde sempre são vistas crianças, mulheres e rapazes reunidos. Quem se aproxima, pode deparar logo de cara com algum homem portando pistola num lado da cintura e um rádio de comunicação no outro – o local é controlado pela organização criminosa Terceiro Comando Puro.
Em um churrasco promovido pelos compatriotas no bairro de Irajá, próximo de Brás de Pina, eles conheceram Moïse Kabagambe, o jovem morto no quiosque. “Ele estava cuidando da churrasqueira. Dizia que ali era o canto dele, porque gostava de fazer a carne”, contou Eureka, que não se lembra exatamente da data do encontro entre 2016 e 2017. Kabagambe, que morava com a mãe em Madureira, costumava frequentar o local para encontrar amigos.
O apartamento de Chadrac e Kalala fica no quinto andar do bloco 3 do conjunto habitacional. O de Elvis e Eureka, que foram se arriscar na rota da morte, era no bloco 8, em frente. Quando, no início de fevereiro, a piauí visitou o apartamento desses dois, no segundo andar, havia na sala de paredes nuas três sofás de dois lugares com uma mesa de centro e uma televisão pequena. Um dos quartos dispunha apenas de uma cama com colchão. O outro, de um colchão fino e puído disposto no chão. Na cozinha, uma geladeira e um fogão velhos, onde eles cozinhavam de preferência feijão-branco, frango ou carne de porco. Elvis e Eureka dividiam o aluguel de 400 reais.
Até o assassinato de Kabagambe, o cotidiano dos quatro amigos era parecido: eles acordavam perto das seis da manhã e iam atrás de trabalho. Os serviços temporários ocorriam em obras, restaurantes, quiosques de praia e na montagem de palco de eventos públicos (como Carnaval e festa de Réveillon). “Tem vez que a gente é contratado pra trabalhar numa obra ou com descarga de caminhão, prometem 120, 150 reais, mas só entregam 100, 90”, disse Chadrac. Os empregadores também costumam atrasar os pagamentos. Kalala, que permanece no Brasil, acrescenta a esses trabalhos a habilidade para fazer dreadlocks, técnica que treina diariamente em seus próprios cabelos. “Cada dia que passa meus dreads estão diferentes do anterior”, disse, com orgulho.
Eureka contou que conseguia ganhar com os trabalhos temporários cerca de 1,2 mil reais por mês e chegou a ter carteira assinada quando se empregou como faz-tudo em um restaurante da Zona Norte do Rio. Elvis Kembilu também conseguiu ser registrado como eletricista – sua área de formação técnica –, mas em São Paulo, onde morou no ano passado. Por esse trabalho, ganhou salário de 2 mil reais, o maior que tinha obtido até então. O dinheiro ajudou na poupança para a viagem à fronteira dos Estados Unidos.
Entre si, os amigos congoleses raramente comunicam-se em francês, a segunda língua oficial do país. “Lingala está no nosso sangue, francês a gente aprende na escola”, explicou Chadrac, um rapaz baixo e magro, o mais extrovertido dos quatro. Eles adquiriram boa fluência em português, o que facilita no trabalho, mas nem isso nem o fato de falarem francês e terem alguma formação técnica em seu país servem muito para a obtenção de melhores empregos no Brasil.
Elvis chegou a frequentar o Senai para voltar a estudar elétrica, desta vez conforme os parâmetros brasileiros, mas não aguentou a rotina de trabalho e estudo. Chadrac foi o único que buscou validar as disciplinas que cursou na República Democrática do Congo e fez um curso pré-vestibular na UFF para tentar a graduação em sua área de formação, pedagogia. De acordo com ele, o processo de validação está parado por causa da pandemia.
“Eu sei que, por ser imigrante, africano e preto, meu trabalho tem que ser dobrado aqui no Brasil”, disse Elvis, que tem um rosto bonito e por isso é conhecido como “o galã” do grupo. Mas, segundo Fany Serafim, a namorada de Moïse Eureka, os amigos não se dão conta do racismo existente no Brasil. “Eu vivo dizendo para Moïse que as pessoas são maldosas com ele, que não é só piada, mas ele tende a levar tudo na brincadeira”, afirmou. “Para eles, do meu grupo de amigas [pretas e pardas], eu sou a única negra!”
O baile de sexta-feira à noite é o momento de desestresse dos moradores do Conjunto Habitacional Haroldo de Andrade. Acontece numa área de estacionamento na entrada da comunidade, regado a cerveja, funk e rumba (gênero que é também cultivado na República Democrática do Congo). Em rodas de conversa e de dança, eles se unem como uma grande família, referindo-se uns aos outros por vocativos familiares – “irmão”, “primo”, “cunhado” etc. Ao contrário de Kabagambe, o rapaz assassinado no quiosque carioca, Eureka e os irmãos Kembilu não têm parentes de primeiro grau no Brasil.
Entre 2015 e meados de 2017, fazendo trabalhos temporários e privando-se de alguns alimentos, Chadrac Kembilu juntou 5 mil reais e resolveu imigrar para a França. Em junho de 2017, voou para Paris, com conexão em Lisboa, onde foi parado pela polícia alfandegária, apesar de ter um cartão de crédito e uma reserva de hotel. Após ser interrogado, recebeu a notícia de que a reserva não fora confirmada e portanto ele não poderia entrar na União Europeia. Chadrac foi transferido para um espaço destinado a imigrantes ilegais. Com direito a uma ligação de cinco minutos, telefonou para seu pai e pediu que acionasse seus irmãos que vivem na França e na Inglaterra para ajudá-lo. Mas nada foi feito, e ele se viu forçado a embarcar de volta para o Brasil. Traumatizado com a experiência, Chadrac desistiu temporariamente de deixar o país.
A vontade de ir embora do Brasil se reforçou nos amigos com a morte de Moïse Kabagambe, que eles descrevem como uma pessoa alegre e calma, que pesava as palavras antes de entrar em conflito com alguém. No vídeo que circula nas redes sociais mostrando o assassinato de Kabagambe, em determinado momento ele tira a camiseta. Chadrac interpreta esse gesto como uma demonstração de insatisfação. “Eu conheço o Moïse, ele era guerreiro, tirou a camiseta porque queria mostrar que estavam sendo injustos com ele”, diz.
Nos dois protestos organizados na Barra da Tijuca, em 29 de janeiro e 5 de fevereiro, para cobrar justiça pela morte de Kabagambe, ouvia-se: “Tropical, assassino. Africano, trabalhador.” Na segunda manifestação, Eureka – um homem de 1,78 metro, 85 kg e personalidade forte – se exaltou e teve de ser contido por Fany Serafim e amigos. Depois, ele foi até a beira do mar, onde chorou e gritou: “É injusto, Moïse não merecia isso.” Dias mais tarde, no aeroporto, ele diria: “Eu vim de um país em crise. Eu sei ver quando um país está em crise. O Brasil está assim. Aqui é muito violento. No Congo tinha guerra, sim, mas não era como aqui, que você vê arma o tempo todo.”
No dia 23 de fevereiro, Elvis Kembilu e Moïse Eureka já haviam chegado à selva de Darién, conforme as mensagens que enviaram a Fany Serafim, mestranda em assistência social na PUC-Rio. De acordo com a rota planejada, eles atravessaram o Peru, o Equador e a Colômbia. Depois de cruzarem a selva, seguirão por Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, Guatemala e México – até enfrentarem a fronteira dos Estados Unidos.
Os dois amigos fizeram um cálculo que prevê quarenta dias na estrada, com pouco tempo para descansar. Uma das principais preocupações de Serafim é com o fato de que precisarão atravessar alguns rios na selva de Darién, e Eureka não sabe nadar.
No aeroporto, Serafim contou que, depois de chorar por uma semana, acabou se conformando com a partida do namorado. “Eu tenho amigos e familiares que acham que é um exagero deles deixar o Brasil, que eles não tentaram o suficiente. As pessoas falam sem refletir sobre o que significa passar quase uma década aqui e não encontrar nenhuma oportunidade, mesmo se matando todo dia”, disse ela. “Podem prometer o que for para eles ficarem, mas não conseguem dar garantia nenhuma de uma vida melhor no Brasil. Eles precisam fazer essa viagem.”