No cemitério paulistano da Vila Formosa II, a quadra 4M abriga os membros seccionados IMAGEM: MÔNICA MANIR_2017
Sem choro nem vela
Para onde vão as partes amputadas do corpo?
Mônica Manir | Edição 134, Novembro 2017
“Nada de toques de finados, nada de círios ao redor de um ataúde, nada de cantos e, muitas vezes, nada de sepultura individual.” Assim o livro História do Medo no Ocidente, de Jean Delumeau, descreve os enterros na Europa medieval durante a peste negra. A pandemia dizimava tanta gente que as cidades abdicavam dos ritos fúnebres. Supressão idêntica prevalece na quadra 4M do Cemitério da Vila Formosa II, em São Paulo. Nenhum paramento, nenhuma vela, nenhuma coroa de flores, nenhuma lamentação. Ali, pernas, braços e mais raramente dedos são enterrados na ala dos membros amputados sem a liturgia dos funerais corriqueiros. O único som familiar é o da enxada do sepultador, que puxa a terra seca sobre quinze ou vinte pequenos caixões alinhados.
O procedimento não acontece todos os dias. Depende do número de “peças” – termo empregado pelos profissionais de saúde – que os hospitais da capital paulista acumulam. Em 2016, houve 147 sepultamentos do gênero na metrópole, 90% deles de pernas. Entre janeiro e setembro deste ano, 303 membros se distribuíram pelos cemitérios públicos designados para abrigá-los: Vila Formosa I e II, na Zona Leste; São Luiz, na Zona Sul; e Dom Bosco, na Zona Norte.
Talvez por causa do tamanho menor das covas, as alas dos amputados costumam se emparelhar com as das crianças, o que lhes acentua o perfil árido. Enquanto nos “túmulos dos anjinhos” os familiares espalham brinquedos e fincam cata-ventos coloridos, nas valas contíguas não há enfeite algum e nem mesmo identificação. Quem quiser saber o que jaz por lá tem de perguntar ao funcionário responsável por anotar em letra cursiva informações sobre o dono da “peça”, como nome e idade, seguidas de siglas que identificam o que a vítima perdeu: M.I.E. (membro inferior esquerdo), M.S.D. (membro superior direito) etc. O apontamento se dá no Livro de Registro de Óbitos, embora não exista óbito.
Que se saiba, e pode ser lenda, apenas um amputado foi ao Vila Formosa II atrás da parte que lhe faltava. Era um motociclista. Chegou montado nas 350 cilindradas, com uma perna só e decidido a resgatar a outra para sepultá-la no túmulo da família. Saiu desenxabido porque o acidente ocorrera havia pouco tempo. Ele só poderia exumar o membro perdido dois anos após a amputação, conforme determina um decreto estadual.
Em quase três décadas de atuação no serviço funerário paulistano, o assistente de gestão Ricardo Sergio Thomaz se lembra de uma única tentativa de resgate na cidade. Os parentes de uma senhora que agonizava desejavam saber o paradeiro da perna dela para enterrá-la na cova da moribunda. “Gastei uma cartilha explicando à família que seria complicado encontrar a peça”, contou ele. A perna fora colocada num esquife coletivo, com membros de outras pessoas, o que por vezes acontece na rotina hospitalar.
“Dificilmente os donos reivindicam levar as partes amputadas para seus jazigos”, disse Sidnei Castro em maio passado, quando ainda dirigia o Departamento Técnico de Produção no Serviço Funerário de São Paulo. A repartição armazenava cerca de 4 500 caixões, que depois seriam comercializados. Praticamente todos os modelos exibiam nomes de flor. O mais caro – orquídea – custava quase 11 mil reais. Foi usado para acolher os corpos do ator Domingos Montagner, que morreu afogado no rio São Francisco, e do presidenciável Eduardo Campos, vítima de um desastre aéreo.
Em ordem decrescente de valor, havia os modelos dália, lírio, camélia, azaleia, hortênsia, gardênia, angélica, girassol, bromélia, petúnia, acácia, jasmim e django. Django é o nome genérico que os funcionários municipais usam para identificar a urna social, gratuita, em formato de paralelogramo, destinada tanto a corpos de desconhecidos como a membros. Algo a ver com jungle, a floresta inteira, talvez? Ninguém do departamento confirmou – nem negou.
Nos cemitérios públicos, as “peças” podem ser enterradas em djangos com 1,20 metro ou 2 metros de comprimento, ou em djanguinhos de 80 centímetros. Todos são brancos e de madeira. Por dever de ofício, a Tabela de Preços de Contratação dos Serviços Funerais também traz uma coluna cujo título é “membros amputados”. Destina-se aos raríssimos que desejam pagar do próprio bolso não somente pelo ataúde como pelo sepultamento das próprias partes em túmulos particulares. O pacote de serviços, no esquife “jasmim menor”, sai por 440,37 reais.
Para André Pedrinelli, por dezoito anos chefe do grupo de amputados no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas, em São Paulo, a falta de interesse pelo destino do membro seccionado faz sentido: “A última coisa que uma pessoa que sofreu uma intervenção dessas quer saber é o que será feito da sua perna ou do seu braço.” Ele se refere, sobretudo, às vítimas de acidentes que, de uma hora para outra, se veem mutiladas. Alguém com doença arterial periférica ou diabete, por exemplo, a priori aceitaria melhor a deterioração do quadro crônico.
No Brasil, em 2011, apenas o SUS – Sistema Único de Saúde – notificou 49 mil amputações (não há dados recentes disponíveis). Já a Aliança Americana de Amputados, uma organização sem fins lucrativos, registra em média 185 mil perdas de membros por ano nos Estados Unidos. Na Inglaterra, onde os habitantes podem levar as partes amputadas para casa e enterrá-las nos locais que quiserem, fala-se em 8 500 secções anuais.
Pedrinelli, que costuma tratar de atletas paralímpicos, não realiza amputações eletivas sem que um psicólogo converse antes com o paciente. É o papel de Lia Luz, colega do ortopedista no HC. Ela explica que muitas vezes cabe a um parente da vítima autorizar a cirurgia. “O familiar está tão angustiado na hora de assinar o termo de consentimento que não se preocupa muito com o destino da peça.” O membro pode ser enterrado, incinerado ou doado para faculdades, caso ainda se preste a estudos.
Ranimiro Lotufo, palestrante motivacional de 56 anos, não mede as palavras quando lhe perguntam qual o destino da perna que perdeu em 1995: “Sei lá. Deve ter virado carne para cachorro.” À época, era modelo profissional e viu seu parapente se enroscar em fios elétricos durante uma disputa esportiva. A alta tensão lhe roubou a perna direita.
Em contrapartida, o bancário Bruno Antevelly, de 27 anos, deixou clara sua escolha. Em 2013, após operações frustradas para salvar a perna esquerda, esmagada num acidente de moto, ele aceitou ter o membro cortado quatro dedos abaixo do joelho e optou por sua incineração. “Eu não quis enterrar. Achei estranho… Vai que aquela parte chamasse o resto.”
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