Família Soprano abriu uma porta para o experimentalismo televisivo. Porém, mal essa porta foi aberta, fecharam-na de novo. O olhar contemplativo foi substituído pelo ritmo “thrilleresco”; a distância analítica, pela imersão escapista FOTO: ENTERTAINMENT PICTURES/ALAMY STOCK PHOTO
Sem herdeiros
Obra-prima da tevê, Família Soprano influenciou pouco os seriados posteriores
Alejandro Chacoff | Edição 147, Dezembro 2018
A certa altura da primeira temporada de Família Soprano (The Sopranos), Christopher Moltisanti, o sobrinho[1] do mafioso Anthony (Tony) Soprano, protagonista da série de tevê, aparece sentado no sofá de sua sala, com um laptop aberto e um cigarro na mão. Com uma expressão de ansiedade no rosto, fita a tela do computador – no documento Word em aberto vê-se um diálogo banal entre dois mafiosos, escrito por Christopher num inglês gramaticalmente errado. Ele pede a opinião de sua futura noiva, Adriana, sobre o roteiro de um filme que está tentando escrever. Primeiro, ela o provoca, corrigindo a gramática dele, mas logo em seguida o elogia: “Sabe, nunca vi você se dedicar tanto a algo.” Christopher se anima e conta para Adriana sobre um conhecido dele que tem contato com uma assistente de Quentin Tarantino e disse que histórias da máfia sempre vendem bem. Depois, fala de sua paixão por filmes e salas de cinema: “Aquele cheiro de carpete e de balinhas me deixa chapado.” Certo fim de semana, ele e Adriana vão a uma boate e, depois de serem barrados pelo segurança na porta, veem Martin Scorsese chegar numa limusine – o diretor entra na boate sob os olhares deslumbrados do casal.
Essa autoconsciência de operar num gênero já desgastado é uma das qualidades fundamentais de Família Soprano. Tony Soprano às vezes reúne amigos para assistir a O Poderoso Chefão. Christopher cita os diálogos do filme errado; Silvio, o braço direito de Tony, faz uma imitação terrível de Al Pacino, mas que todos acham sublime. A vinheta de abertura da série mostra Tony dirigindo pela paisagem urbana arrasada de Nova Jersey: casas decrépitas, terrenos baldios, lojinhas e comércios cinzentos. A cena evoca não só uma desromantização do gênero, mas uma decadência mais generalizada. Tony usa uma correntinha de ouro cafona no pulso e tem um charuto na boca. O seu carro é um veículo utilitário esportivo (suv, na sigla em inglês) – espécie de caminhonete muito popular nos Estados Unidos na época em que a série foi filmada (entre 1999 e 2006) e que, devido ao seu alto gasto de combustível, tornou-se símbolo da frivolidade consumista e da presença militar do país no Oriente Médio.
Christopher e Adriana vivem num apartamento minúsculo e pouco arejado no estado de Nova Jersey; a iluminação é ruim, e no centro da sala há um sofá escuro. Ele trabalha com o seu tio na máfia; ela, como hostess num restaurante ítalo-americano do bairro cujo proprietário é um amigo de infância de Tony. Nos fins de semana, o casal vai a festas e se droga. O tempo todo, Christopher mostra-se ressentido com a riqueza e o autoritarismo do tio, e seu sonho de escrever um roteiro para Hollywood é só uma entre outras tentativas vãs de ascender financeiramente e romper com os grilhões empregatícios e familiares. As pressões do cotidiano o levam ao vício em heroína e aos livros de autoajuda (“Na minha cabeça, eu sempre uso a técnica da visualização positiva”, diz ao tio quando este o insulta. “Por que então sempre me sinto diminuído?”).
Tony acha o sobrinho um desastre, e vive atormentado por não poder confiar nele como seu sucessor; mas a sua própria vida não é tão diferente da de Christopher. Tony tem dinheiro e mora com a mulher e os dois filhos numa casa suntuosa num bairro arborizado. Entretanto, quando aparece pela primeira vez na série, encontra-se sentado na poltrona de um consultório asséptico, tentando expor à sua nova psiquiatra, Jennifer Melfi, os eventos que o levaram a ter um ataque de pânico. Narra a sua relação emotiva com uma família de patos que apareceu de repente na piscina de sua casa e descreve o seu cotidiano estressante à psiquiatra, editando as partes mais violentas com alguns eufemismos cruciais (“Trabalho com a manutenção e a armazenagem de lixo e detritos”). Dra. Melfi escuta tudo com uma expressão neutra e faz alguns comentários pontuais. No fim, receita uma medicação. Christopher injeta heroína; Tony toma Prozac.
Em casa, sob os efeitos de uma depressão, Tony tenta manter fortes os laços familiares e cultiva certo orgulho dos seus antepassados. Cita Sacco e Vanzetti para os filhos entediados, fala de Michelangelo e, quando o filho indaga se é verdade que os chineses inventaram o macarrão, ele devolve outra pergunta, em tom bonachão: “Por que pessoas que comem com pauzinhos inventariam uma comida que se come com o garfo?” Em outra cena, a psiquiatra, que também é descendente de italianos, janta com o filho e o ex-marido, que, irritado com a decisão dela de tratar um mafioso, reclama da má fama dos ítalo-americanos, uma comunidade de 20 milhões de pessoas manchada pela reputação de 5 mil indivíduos e por filmes como O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros.
“São bons filmes”, o filho diz ao pai, e continua a comer.
Essa autoconsciência metaficcional dos personagens de Família Soprano ainda parece radical, quase vinte anos após a estreia do primeiro episódio, em 10 de janeiro de 1999. Além das referências ao cinema, poucas séries de tevê foram tão sinceras ao representar a influência da própria televisão na vida doméstica. Muitas cenas se dão enquanto Tony, de camiseta regata, toma um pote de sorvete e assiste ao canal The History Channel ou a filmes antigos (ele leva a sua admiração pelo estilo “forte e silencioso” de Gary Cooper para as sessões de análise). Anthony Junior (A. J.), o seu filho adolescente preguiçoso, também está quase sempre na frente da tevê, jogando videogame ou vendo algum programa de besteirol.
Mas a autoconsciência é só um aspecto da ambição formal da série. Ela também desbrava zonas temáticas que até então pareciam ser um monopólio da literatura americana da época: o vazio existencial no capitalismo tardio; a medicação e o abuso de entorpecentes como meio de enfrentar um cotidiano frenético e desprovido de sentido; a diluição da identidade cultural pela adoção e banalização de estereótipos étnicos. Os personagens deprimidos e medicados do escritor David Foster Wallace encontram eco nos mafiosos bonachões e melancólicos de David Chase, criador da série; e as famílias disfuncionais dos romances de Jonathan Franzen têm certo parentesco com a família de Tony, um sociopata que não consegue se livrar dos julgamentos ácidos de sua mãe, Livia Soprano, talvez a mais terrível mãe castradora da ficção televisiva contemporânea.
A ruptura de Família Soprano com os dramas televisivos da década de 80 e 90 não é só temática; ela se dá também na forma. Os episódios não terminam com ganchos. As cenas de violência são menos frequentes do que é praxe nos filmes de máfia. A maioria dos mafiosos mais relevantes da série morre não em tiroteios ou brigas, mas de câncer, aneurismas e infartos; outro sofre de demência na velhice. Como Tolstói, Chase introduz na trama personagens com nomes iguais, indicando que a série não se preocupa muito com a capacidade do espectador de diferenciar “personagens”. E os nomes de novos personagens muitas vezes são introduzidos de repente, em diálogos oblíquos; cabe ao espectador tentar pescá-los no conjunto da série e entender o que se passa.
Há grandes momentos de tédio romanesco. Numa cena da segunda temporada, Paulie Gualtieri, um dos “capos” de Tony, prepara um macarrão com ragu, enquanto os seus companheiros esperam na antessala: alguns jogam cartas, outros olham revistas pornográficas. Tony pega um aparelhinho novo de limpar sapatos, que tem uma espécie de escova elétrica na ponta – liga o aparelho e escova o sapato, mas logo depois, como uma criancinha curiosa, começa a passá-lo sobre os pelos do braço, deleitando-se com aquilo. A cena é interrompida quando, de repente, alguém bate o carro na esquina (“Carmine” é o nome do personagem do acidente, e por alguns segundos o espectador fica desconcertado, já que esse é também o nome do chefão da máfia de Nova York). A cena, gratuita no que diz respeito à trama, dura quase três minutos – o que em tempo de tevê deve equivaler a um monólogo de mais ou menos cinquenta páginas de um romance.
Esse realismo impiedoso é aplicado sobretudo ao protagonista. Tony não é elegante como Michael ou Vito Corleone: gordo e parrudo, com respiração ofegante, é alguém que reflete os excessos de seu momento histórico. Ele anda pela casa enrolado num roupão branco, roubando salames da geladeira e tomando chantilly diretamente do frasco; vai à análise quando lhe convém e abandona o Prozac quando está com preguiça ou acha que já melhorou da cabeça. O seu racismo casual, a sua mistura de inteligência estratégica e falta de cultura, os altos e baixos de suas crises de ansiedade ajudam a criar um retrato mais convincente do mafioso que as atitudes dos personagens de outrora. Quando a série foi lançada, o comprometimento de Chase com o realismo social deixou claro quão irreais e higienizadas eram as séries dramáticas anteriores, com suas amizades interraciais e personagens que, mesmo mal-empregados, viviam em apartamentos caros em áreas nobres das metrópoles americanas.
Ao longo dos episódios, Tony ascende de capo a chefe da máfia de Nova Jersey, e depois luta para se manter na posição (esse é o fio condutor numa série que, como a vida, não parece ter uma trama central, além da existência tumultuada do protagonista). Ele progride na carreira, mas continua a ser mais ou menos a mesma pessoa: separa-se da mulher e volta a traí-la depois da reconciliação; de cada três ou quatro impulsos violentos, só consegue coibir um. A sua psiquiatra ressalta muitas vezes o “progresso” que ele está tendo na análise, porém há algo de vagamente irônico nessa insistência: é como se Chase ressaltasse para o espectador que o protagonista não progride de fato. O axioma famoso do romancista inglês E. M. Forster de que personagens relevantes sempre crescem, se desenvolvem e mudam é negado por Tony Soprano, um protagonista complexo e profundo que simplesmente não muda nunca.
Quando está escrevendo o seu roteiro, Christopher recebe a visita de Paulie Gualtieri, que a pedido de Tony vai ver o que está acontecendo com o sobrinho do chefe, que anda muito sumido. “Isso daqui parece um chiqueiro”, Paulie diz, quando vê latinhas de cerveja espalhadas pela sala. Deprimido, Christopher explica a ele que nos manuais de roteiro de Hollywood está escrito que toda história deve ter um “arco” (no sentido de “arco narrativo”, uma história relativamente estruturada, com começo, meio e fim bem delineados, além de clímax e desfecho). Mas a sua vida não é assim. “Onde está o meu arco?”, Christopher pergunta, cheio de autocomiseração. Paulie primeiro diz para ele tomar cuidado com essa coisa de roteiro (“Aquele escritor lá, o das touradas, meteu um tiro na própria cabeça”, diz, referindo-se a Hemingway). Depois se mostra cético quanto à existência do tal arco. “Ei, eu também não tenho arco”, diz Paulie, com uma leveza terna, tentando animar Christopher: “Eu nasci. Eu cresci. Passei alguns anos no Exército, outros na cadeia, e agora estou aqui: um mafioso meia-boca.”
Em 2000, o crítico inglês James Wood resenhou para a revista americana The New Republic o primeiro romance de Zadie Smith, Dentes Brancos. O texto – talvez a crítica literária de língua inglesa mais influente das últimas décadas – celebrizou-se menos pela opinião de Wood sobre o romance do que por cunhar a expressão “realismo histérico”, com a qual definia não só o estilo de Smith, mas também o de autores como David Foster Wallace, Don DeLillo, Thomas Pynchon e Salman Rushdie, entre outros. Wood argumentou que muitos romances, àquela altura, estavam animados por uma busca pela “vitalidade a qualquer custo”, tinham um gosto excessivo pela caricatura cômica e fetichizavam a informação e o saber enciclopédico, como se estivessem numa competição e buscassem superar na escrita o absurdo e o fluxo frenético de acontecimentos da realidade na virada do século. “O grande romance contemporâneo é uma máquina de moto-perpétuo”, escreveu Wood, citando no texto alguns dos personagens daqueles livros volumosos: um cientista judeu que tenta modificar geneticamente um rato (em Dentes Brancos); um queijo octagonal gigante (em Mason e Dixon, de Thomas Pynchon); um grupo de terroristas dedicados à libertação de Quebec (em Graça Infinita, de David Foster Wallace). “Tramas e subtramas pululam a cada página”, frutos de uma espécie de “congestão glamorosa”, escreveu Wood. O romance, segundo ele, se envergonhara do silêncio, do sussurro, da quietude.
Por seu alcance e influência, o texto de Wood foi e ainda é polarizante, e talvez o mais honesto a fazer seja posicionar-se logo de cara no debate: quase vinte anos após a publicação da resenha, o diagnóstico daquela época literária feito por ele ainda me parece perfeito. A impressão que se tem ao ler um romance como Graça Infinita é não apenas que a decadência e o solipsismo da virada do século dominam o tema e a forma, mas que o próprio romance, com o fim da centralidade que possuía na cultura, luta contra o seu declínio. A profusão de dados enciclopédicos, notas de rodapé gigantes, gráficos e vinhetas eruditas acabam por causar uma sensação paradoxal: o de uma vitalidade que denota certo cansaço, um esticamento dos músculos literários até o ponto de enrijecê-los e limitar movimentos posteriores (DeLillo nunca mais escreveu um livro como Submundo; Foster Wallace sabia que nunca mais escreveria algo como Graça Infinita). Os romances de Pynchon, DeLillo, Foster Wallace – a grande tríade pós-moderna americana – são exercícios virtuosos admirados até por aqueles que, como eu, não sentem tanto prazer assim em lê-los. Mas a questão subjacente ao texto de Wood era outra: é isso que o romance deve fazer? E até quando ele poderá se sustentar nesse caminho de aceleração?
A facilidade de Família Soprano em captar as mesmas atmosferas almejadas pela literatura da época – a paranoia pré e pós-11 de Setembro; o cotidiano de indivíduos cada vez mais solipsistas – de um jeito mais direto, acessível e até mais engraçado torna a pergunta de Wood relevante. A sensibilidade e as técnicas literárias de Chase – que são bem mais arcaicas e clássicas quando comparadas com as dos escritores elencados por Wood – acabam por prover um retrato mais pungente da vida contemporânea americana na virada do século. Que esse retrato poderoso se dê justamente na televisão é um pouco irônico, visto que essa mídia frequentemente aparece na literatura como instrumento de alienação intelectual. Chase pode ser entendido como uma espécie de romancista que entendeu o potencial de justapor técnicas literárias há muito tempo consagradas à forma televisiva.
Chase opera num gênero desgastado, mas recorrendo a uma forma jovem. O seriado de televisão cerebral e ambicioso ainda era algo raro quando ele começou a fazer Família Soprano; e essa novidade formal refletiu-se no senso de desbravamento com que ele e Matthew Weiner, seu corroteirista, passaram a fazer experimentações na tela. Num episódio da terceira temporada, Paulie e Christopher recebem a tarefa de matar um homem russo, mas não conseguem dominá-lo fisicamente, e ele escapa para uma floresta. Paulie e Christopher vão atrás e se perdem na floresta. Isolados, com frio e fome, têm o senso de cooperação e a estabilidade psicológica testados – o que permite uma espécie de digressão autoral dos roteiristas. No fim da quinta temporada, um episódio inteiro é dedicado a um sonho de Tony, em que personagens e cenas de sua infância se misturam a acontecimentos recentes. Ele encontra o seu ex-treinador de futebol do colégio, vê amigos mortos e, quando vai pegar as balas para colocar num revólver, elas se desmancham em suas mãos como se fossem pedacinhos de fezes. O episódio é uma obra-prima, o ponto alto de um conjunto de sequências oníricas apresentadas em temporadas anteriores; é uma sequência em que fica patente a vontade de Chase de expandir os limites do que se pode mostrar na televisão.
Por causa dessa inventividade estética e ambição temática, e por elevar o “cachê intelectual” da série dramática, Família Soprano ainda é visto como uma espécie de marco zero, um momento fundacional de uma suposta era de ouro da televisão, que seguiria com séries como The Wire (2002-08), de David Simon, Mad Men (2007-15), de Matthew Weiner, e Breaking Bad (2008-13), de Vince Gilligan.
Essa crença de que vivemos uma “era de ouro” da tevê é, porém, difícil de averiguar – em parte pela imprecisão da expressão. Se a tomarmos num sentido meramente pecuniário, “era de ouro” de fato define o que a tevê está vivendo. A quantidade de séries produzidas nos últimos anos é imensa, a ponto de provocar reconfigurações impactantes no mundo do trabalho anglo-saxão no campo da arte – o escritor bósnio-americano Aleksandar Hemon, ele próprio roteirista da série Sense8, disse recentemente que quase todos os romancistas americanos que ele conhece estão trabalhando em algum roteiro no momento. Uma reportagem do New York Times publicada em setembro mostrou que o ritmo frenético das produções televisivas já começou a gerar problemas de mão de obra: o número de roteiristas experientes não tem sido suficiente para suprir a demanda. E o consumo obsessivo dos produtos parece refletir o ritmo da oferta – a forma “maratonesca” de assistir às séries, com investimentos de muitas horas seguidas, enterra de vez a falácia de que as pessoas não leem por falta de tempo.
O valor artístico desse momento áureo, contudo, é mais difícil de medir. O ruído promocional (sempre proporcional à quantidade de recursos de cada indústria) coloca a crítica na defensiva, em parte pela mera incapacidade humana de apreciar tal abundância de séries. A sensação é menos de complacência crítica do que de certo voluntarismo: a indústria estabelece a narrativa da era de ouro da televisão, e cabe às séries novas preenchê-la, e aos espectadores e críticos reafirmá-la. Essa narrativa promocional é sedutora, quase subliminar – e por isso sentei-me para rever Família Soprano com certo temor condescendente, esperando me deparar com um documento histórico gasto. Imaginei que assistir à série outra vez seria um pouco como reler Madame Bovary: um exercício em que se vai anotando mentalmente as inovações que a essa altura já foram absorvidas e trituradas e regurgitadas pelas obras posteriores.
Não foi o que aconteceu. Vinte anos após a sua estreia, a influência de Família Soprano é difícil de captar. Os momentos gratuitos de tédio romanesco, o anseio de retratar a realidade social sem pisar em ovos e o uso pungente da metaficção não parecem ocorrer nas séries seguintes. O ritmo lento, os episódios de autocontenção (muitos deles tratados como “contos”, tenuamente relacionados à trama central), a escassez de ganchos, a densidade dos personagens secundários tampouco parecem ter sido incorporados ao Zeitgeist televisivo. Pelo contrário. São justamente essas características as que parecem menos presentes nas séries atuais, em que o frenesi da produção se alia ao frenesi das tramas. Julgar o estado atual da produção televisiva americana como um todo é tarefa difícil (e análises assim não costumam ser muito úteis), mas já vi um número suficiente de séries para notar que o tratamento da narrativa e da forma é muito distinto do adotado em Família Soprano.
A energia “literária” desta série e de algumas posteriores, como The Wire e Mad Men, parece ter se dissipado, e é estranho que elas sejam vistas como inspirações para a era atual, quando na verdade são fenômenos excepcionais no sistema de produção televisivo (um pouco como foi, em sua época, Twin Peaks, a série noir de David Lynch lançada em 1990 e que viria a influenciar Chase).
Família Soprano abriu uma porta para o experimentalismo televisivo. Porém, mal essa porta foi aberta, fecharam-na de novo. Na imensa quantidade de séries produzidas é possível notar alguns traços compartilhados por quase todas elas: o ritmo acelerado; os ganchos nos finais de cada episódio; um desequilíbrio entre as imagens meticulosamente estetizadas e o pragmatismo dos roteiros desidratados (com conflitos centrais bem delineados e subtramas enxertadas para não deixar escapar o espectador); e, não raro, uma espécie de Santo Graal no final, uma surpresa máxima que encerra a temporada. Nas grandes produções recentes (Game of Thrones, The Walking Dead, Westworld); nas antologias de qualidade irregular (True Detective, Black Mirror); nas odes nostálgicas de ocasião (Stranger Things, Maniac) ou nos blockbusters com pretensões espúrias de densidade intelectual (Billions, Succession), essas características se mostram sempre presentes.
Não se trata de afirmar que essas séries sejam piores do que Família Soprano – o que seria uma acusação fútil, um pouco como contrastar Madame Bovary a exemplos aleatórios do que veio depois na literatura –, mas sim de ressaltar que mesmo as produções mais refinadas compartilham um éthos distinto de Família Soprano, um éthos de fato oposto ao dessa obra que frequentemente é chamada de “mãe de todas as séries”. O olhar contemplativo foi substituído pelo ritmo “thrilleresco”; a autoconsciência e distância analítica pela imersão escapista. O questionamento dos tradicionais “arcos narrativos”, tal como fez Família Soprano, foi erodido por uma avalanche acrítica do storytelling vendido nos manuais comprados por Christopher Moltisanti.
Aliás, termos como “arcos” e storytelling são tão ubíquos hoje que foram incorporados ao discurso dos próprios espectadores – ao conversar com consumidores mais assíduos de séries tem-se a impressão de estar diante de roteiristas em potencial. Certa inocência escapista (lembro-me de uma época em que espectadores apenas diziam “se identificar” com os personagens) foi substituída, na audiência, por uma astúcia mercadológica difusa. Ao mesmo tempo, criadores de séries voltaram a uma visão mais escapista e bem menos inventiva, adepta de um jeito quase publicitário de contar histórias. Família Soprano, nesse contexto, parece menos um momento fundacional de uma nova era televisiva do que uma oportunidade desperdiçada.
Enquanto passa um tempo numa clínica de reabilitação, Christopher Moltisanti conhece J. T. Dolan, um paciente viciado em jogo e heroína que é professor de escrita criativa e trabalha como roteirista de tevê. Após começarem uma vaga amizade, Christopher faz um empréstimo a Dolan, que gasta o dinheiro no pôquer e apostando em cavalos. Dolan não paga a dívida, e Christopher manda a máfia atrás dele. Depois de perseguir o suposto amigo, Christopher o sequestra e sugere uma troca: ele congelará a dívida se Dolan concordar em escrever o seu roteiro de filme. Dolan aceita, e o resultado é Cleaver (Cutelo), filme de máfia e de terror, definido como um amálgama de “Jogos Mortais com O Poderoso Chefão”.
Christopher tenta convencer estrelas de Hollywood a participar de seu projeto. Há uma cena cômica e triste em que o ator Ben Kingsley, que interpreta a si mesmo na série, é convencido por sua agente a se reunir com Christopher. O ator trata o mafioso com arrogância e um ar distante, de tão irrelevante que Christopher lhe parece. Em outro momento, o ator e diretor Jon Favreau (que também interpreta a si mesmo), animado com a ideia de conhecer alguém da máfia, se encontra com Christopher em um hotel para discutir o roteiro. Enquanto Christopher cheira cocaína, Favreau faz perguntas infantiloides: “Você está armado agora?” Christopher saca o revólver e joga a arma no colo do diretor, que, como uma criancinha deslumbrada, a segura com cuidado e admira, boquiaberto.
No fim, Cleaver é produzido com o dinheiro de mafiosos – Tony é um dos principais investidores. Na noite de estreia, a sala de cinema está apinhada de gente, a maioria formada por parentes e amigos ligados à máfia. O filme começa e na tela logo aparece o vilão: um mafioso parrudo que usa roupão branco e esculhamba os seus subordinados. Carmela, a esposa de Tony, aponta para a tela e diz ao marido, com um ar de felicidade: “Esse é você.” Tony balança a cabeça em negação; o resto da sala, porém, logo reconhece as similaridades.
O processo que envolve o roteiro e a filmagem de Cleaver é o clímax da metaficção chasiana, e remete à importância de aspectos autobiográficos na obra de Chase – ele já ressaltou, em muitas entrevistas, que Livia Soprano foi inspirada na sua mãe, e as sessões de análise de Tony, nas suas próprias sessões. Ao mesmo tempo, o retrato pouco lisonjeador de Hollywood mostra que Chase tem consciência da relação predatória que a indústria de filmes tem com o mundo da máfia – Christopher, afinal, só é interessante por que ele pode dar aos diretores anedotas autênticas. Favreau, um riquinho que nunca chegou perto de um criminoso, demonstra ter interesse antropológico nele, mas por fim, como todo mundo em Hollywood, prefere não virar seu sócio. A relação entre Dolan e Christopher também termina mal. Quando o roteirista se recupera de seu vício, afasta-se de Christopher e diz, exasperado, que não quer contato com gente da máfia. Magoado, Christopher lhe mete uma bala na cabeça.
De forma mais ampla, o filme Cleaver alude às transações difíceis e às vezes antiéticas de obras que misturam autobiografia e ficção. Tony passa a maior parte da série com medo de que Christopher, ao escrever o roteiro, divulgue informações confidenciais da máfia. Mas, após todos os flertes do sobrinho com Hollywood, é o próprio Tony quem acaba bancando o filme. Por outro lado, o personagem fictício baseado nele é grotesco, fruto das mágoas pessoais e do ressentimento de Christopher em relação ao tio e patrão. Nada impede, porém, que Christopher faça uma menção especial a Tony e o agradeça publicamente na noite de estreia, com o ar inocente do artista que não vê as contradições de sua própria obra.
À medida que as temporadas de Família Soprano avançam, esses jogos metaficcionais e autorreferentes de Chase vão se tornando mais refinados. Se os temas do começo da série coincidem com boa parte da literatura da época, os das últimas temporadas parecem apontar para a literatura autoficcional mais recente. O dilema (e a complicação moral) de Cleaver é essencialmente o dilema da autoficção – essa vertente da escrita que marca a literatura mais notável da última década, representada por escritores tão díspares como Teju Cole, Ben Lerner, Sheila Heti, Tao Lin, Elif Batuman, Rachel Cusk, Karl Ove Knausgård, entre muitos outros.
É interessante notar que muitos desses autores autoficcionais retomaram o olhar contemplativo e a lentidão, jogaram fora o fardo das tramas e subtramas frenéticas, a ansiedade performática e o virtuosismo enciclopédico do “realismo histérico”. James Wood deve ter vivido uma sensação estranha ao ver essas gerações surgirem, pois de certa forma é como se o desejo da sua resenha publicada em 2000 tivesse sido realizado. Foster Wallace, DeLillo e Pynchon foram canonizados com justiça, mas não mantêm a influência de outrora; Zadie Smith abandonou o estilo criticado por Wood em seu terceiro livro; Salman Rushdie é um bicho estranho, um escritor estupidamente famoso cujos livros não parecem nem sequer fazer marola.
A ficção literária americana desacelerou; a televisão americana voltou a colocar o pé no acelerador. O talento de Chase elevou a série de tevê ao nível da melhor literatura, mas o caminho aberto por ele não teve muitos novos exploradores. O gênero mafioso continua em voga, com séries e documentários recentes, pois, como diria a assistente fictícia de Tarantino, histórias da máfia sempre vendem. Em 2016, quando perguntado durante uma entrevista se conseguiria fazer Família Soprano hoje, Chase pôs de lado a diplomacia. Respondeu que provavelmente não, e emendou: “Penso que as coisas na televisão mudaram.”
[1] Christopher Moltisanti é na verdade sobrinho da esposa de Tony, Carmela Soprano, mas Tony, que é seu primo, o trata afetuosamente de “sobrinho”.