Para eles, cobrir a cabeça era um gesto feminista, porque deixava claro que a mulher exigia respeito: com ela não ocorriam mal-entendidos ILUSTRAÇÃO: ANNA PARINI
Sem lenço, sem documento
A Turquia moderna e eu
Elif Batuman | Edição 116, Maio 2016
Em 1924, um ano depois de fundar a República da Turquia sobre as ruínas do Império Otomano, Mustafá Kemal Atatürk, o novo líder do país, aboliu o Califado Otomano, o único califado islâmico sunita remanescente desde 1517. Atatürk introduziu uma Constituição secular e códigos civis e penais de molde ocidental, fechou os alojamentos dos dervixes e as escolas religiosas, aboliu a poligamia, instaurou o casamento civil e criou um concurso nacional de beleza. E também garantiu às mulheres o direito de votar e de se candidatar a cargo eletivo, o direito à propriedade e ao posto de juiz da Suprema Corte. O uso do lenço na cabeça foi desestimulado. A “lei do chapéu”, de 1925, proibiu o turbante e o fez (o chapeuzinho cônico em geral vermelho): os homens só poderiam usar chapéus à moda ocidental. A escrita árabe otomana foi substituída pelo alfabeto latino, e a própria língua foi “purgada” de elementos árabes e persas.
À época, meus avós ou não tinham nascido ou eram muito jovens. Só meu avô materno tinha idade suficiente para lembrar ter jogado o fez para o alto no aniversário do sultão. Meus pais nasceram num país laico. Conheceram-se na melhor faculdade de medicina da Turquia, mudaram-se para os Estados Unidos nos anos 70 e se tornaram pesquisadores e professores. Os dois eram, e continuam sendo, fervorosos apoiadores de Atatürk. Cresci ouvindo que, graças a ele, minha avó não precisou ser uma “mulher coberta”, dependente de um homem para seu sustento: ela estudou num internato, escreveu uma tese sobre Balzac e se tornou professora. Eu era grata a Atatürk por meus pais serem tão bem-educados, sem que a superstição e a religião lhes tivessem atrasado a vida, por eles serem verdadeiros cientistas, que me ensinaram a ler quando eu tinha 3 anos de idade e nunca duvidaram de que eu poderia ser escritora.
Meu pai cresceu em Adana, não muito longe da fronteira síria, no seio de uma família alevita – um ramo da minoria xiita turca. Uma de suas lembranças mais antigas era ouvir o avô recitando o Corão em árabe logo de manhãzinha. É ateu desde o início da adolescência: teve suas primeiras dúvidas religiosas aos 12, quando descobriu Bergson e Comte numa livraria e leu que a religião era parte de um estado primitivo e pré-científico da civilização. Minha mãe cresceu em Ancara, capital da república. Seu pai, um dos engenheiros civis que ajudou a modernizar a Anatólia, era, do ponto de vista político, um secularista incondicional, mas, na intimidade, um muçulmano devoto (ainda que não advogasse o lenço para as mulheres, que ninguém na família usava).
Na escola primária, minha mãe leu no Corão que Deus fecharia os olhos e os ouvidos dos céticos. Ficou tão deprimida que passou dois dias sem sair da cama. Seus pais lhe disseram que Deus era mais misericordioso do que ela pensava, e que as pessoas que faziam o bem iriam para o céu no dia do Juízo Final, independentemente de sua crença. Desde que a conheço, minha mãe é agnóstica – à diferença de meu pai, não tem tanta certeza de que o universo não tenha sido criado por alguma inteligência superior. Mais do que ele, porém, irritava-se quando julgava que o nome de Deus estava sendo invocado para poupar as pessoas de fazer o trabalho que caberia a elas – se, por exemplo, visse um ônibus com um cartaz que dizia: “Que Alá nos proteja.”
Tanto meu pai como minha mãe me disseram que, para ser uma pessoa boa, não era necessário ou desejável acreditar em Deus; era mais nobre e eficaz fazer o bem de forma desinteressada, sem pensar no paraíso. No ambiente em que cresci, na Nova Jersey dos anos 80 e 90, nada se contrapunha ao conceito que eu formara sobre religião – uma coisa desnecessária, não científica, provinciana, em suma, algo que não era bacana. Por um bom tempo, acreditei haver um vínculo permanente entre coisas bacanas e positivismo. Achava que o mundo era assim. Então veio a política da identidade e, na Turquia, a ascensão do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de centro-direita e com raízes islâmicas. Seu líder carismático, Recep Tayyip Erdoğan, é o chefe de Estado desde 2003, quando o AKP teve sua primeira vitória esmagadora.
De repente, os secularistas começaram a parecer retrógrados: racistas, autoritários, elitistas e servilmente pró-ocidente. O jornal The New York Times passou a se referir a eles como “a elite secular”. Em 2007, publicou a notícia de um protesto de centenas de milhares de turcos secularistas contra o AKP, que em parte teria sido motivado por “medo” do estilo de vida dos compatriotas mais religiosos, por queixas “esnobes” de que “os turcos religiosos não tinham educação e eram pobres” – e, além do mais, seus “desagradáveis tapetes para as orações atrapalhavam o caminho nos saguões dos hospitais”. Seria difícil imaginar o Times conferindo o mesmo tratamento às elites americanas que se opõem ao direito cristão.
A visão que o Ocidente tem de Erdoğan acabou por azedar, em especial depois dos protestos de 2013, no Parque Gezi, em Istambul. Criticaram-no por ser supostamente corrupto e por suas atitudes cada vez mais autoritárias contra jornalistas e partidos de oposição. Por um bom tempo, contudo, todos os meus amigos americanos liberais que tinham alguma opinião sobre a Turquia eram pró-Erdoğan. Julgavam insustentável que a Turquia reprimisse e negasse por tanto tempo a própria religião – o povo havia finalmente se manifestado.
Muitos deles tinham grande simpatia pela escritora e antropóloga Jenny White, importante estudiosa da Turquia moderna, cujo livro, Muslim Nationalism and the New Turks [Nacionalismo Muçulmano e os Novos Turcos], identifica na cultura kemalista (pró-Kemal Atatürk) traços de “militarismo, hostilidade, desconfiança e autoritarismo”, assim como raízes na “noção de etnia baseada no sangue”. O nacionalismo muçulmano, pelo contrário, buscou substituir “fronteiras republicanas combatidas ao longo da história” por “fronteiras imperiais otomanas, mais flexíveis”, privilegiando a identidade e a cultura muçulmana em detrimento da raça. Na visão de mundo dos simpatizantes do AKP, os otomanos – a quem os kemalistas haviam acusado de vender a Turquia aos britânicos – gozaram de certa popularidade, como modelo do multiculturalismo islâmico esclarecido.
Eu via o sofrimento de meus pais a cada estocada contra o kemalismo. De minha parte, não sabia o que pensar. Ao contrário deles, fui educada nos Estados Unidos. Para mim, assim como para a maioria dos americanos, parecia um tanto esquisito que quase todo prédio público na Turquia estampasse na parede uma foto de Atatürk. Eu também sabia que, para que a República Turca tivesse êxito, milhões de pessoas haviam sido obrigadas a trocar de língua, de roupa, de estilo de vida, e tudo de uma vez só, porque Atatürk assim o determinara. Sabia que pessoas percebidas como ameaça ao Estado – líderes religiosos, marxistas, curdos, gregos, armênios – haviam sido deportadas, exiladas, presas, torturadas ou mortas. E sabia que, mesmo no início do século XXI, os militares não estavam sob total controle, e que mulheres com lenço na cabeça sofriam discriminação, sendo barradas em certos empregos e universidades.
Além disso, detectava em minha própria família traços semelhantes aos apontados por White em sua crítica ao kemalismo: combatividade e paranoia. O kemalismo, não muito diferente do sionismo, contava com o fato de que sem ele talvez não houvesse Estado turco. No fim da Primeira Guerra Mundial, os aliados vitoriosos assumiram o controle de quase toda a Anatólia; dividiram parte dela entre britânicos e franceses, e lotearam um bom quinhão entre gregos, armênios e curdos. Antes de se tornar legislador, Atatürk era um comandante militar, líder da guerra turca pela independência; e, do ponto de vista militar, todas aquelas pessoas e nações eram antiturcas (como o eram também os árabes, que apoiaram a Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial).
Meus pais sempre sonharam com um mundo pós-nacionalista; ainda criança, toda noite minha mãe rezava a Alá pela formação das Nações Unidas e pela abolição de países e guerras. Por outro lado, lembro ter ouvido, quando menina, que no mundo havia gente antiturca, que nutria antigos rancores e podia causar problemas. Por algum tempo, Erdoğan de fato parecia tentar deter esse tipo de pensamento hostil – promoveu a abertura de negócios e relações diplomáticas com países vizinhos, acabou com tabus relativos à menção da “questão curda” e do genocídio armênio. Sob o governo do AKP, um canal em língua curda estreou em rede nacional na tevê turca; em 2009, Erdoğan foi ao ar desejar boa sorte à emissora em curdo. Pouco tempo antes, isso teria sido impensável.
Em 2010, eu me mudei para Istambul, onde, por três anos, lecionei numa universidade e escrevi para a New Yorker. Descobri que, assim como ocorria nos Estados Unidos, a Turquia estava se polarizando entre dois campos cada vez menos capazes de se entender. Era uma nova dicotomia, da qual eu nunca ouvira falar: os “turcos brancos” (elites seculares ocidentalizadas em Istambul e Ancara) contra os “turcos negros” (muçulmanos devotos das classes média e média-baixa na Anatólia). Os turcos negros eram os desamparados, ao passo que os brancos eram os racistas que os desprezavam. Jenny White escreve: “A expressão ‘turco negro’ é empregada pelos kemalistas para afrontar os turcos de classe baixa ou origem camponesa, considerados incivilizados, patriarcais, não modernos e atolados no islã, ainda que tenham ascendido à classe média.” Erdoğan declarou com orgulho ser um turco negro.
Eu não conseguia compreender a divisão entre negros e brancos. A família de minha mãe – profissionais de Ancara de pele clara que um dia haviam tido motorista e jardineiro – encaixava-se claramente no perfil do “branco”. Já os parentes de meu pai, em Adana, em geral tinham a pele mais escura e haviam recebido menos educação. Meu avô paterno foi dono de uma loja que vendia corante têxtil para ovelheiros. Durante um breve período, meu pai usou bigode. Mas ele também escreveu no anuário do colégio um ensaio em louvor a Atatürk. E suas irmãs eram favoráveis a que a mulher tivesse a escolha do aborto, nenhuma delas usava lenço na cabeça, a não ser quando estava fazendo algum trabalho doméstico, e eu nunca ouvi nenhum deles manifestar a mais remota saudade do passado otomano. Soube, sim, tanto do lado paterno como do materno, que temiam que as reformas de Atatürk fossem por água abaixo e que a Turquia pudesse, então, terminar “como o Irã”. O que era, pois, a família de meu pai? Eram turcos brancos, eles também?
Em Istambul, passei a adotar certa cautela, tratando de não soar – nem ser – orientalista ou islamofóbica. Num começo de noite, enquanto conversava em meu apartamento com um amigo turco, fomos interrompidos pela chamada para as orações, amplificada por alto-falantes. Em meu apartamento, como em muitos pontos da cidade, podiam-se ouvir simultaneamente os chamados de várias mesquitas concorrendo entre si, cinco vezes por dia. Quando eu caminhava pela cidade, gostava daquele som. Havia pessoas que faziam aquilo muito bem. (Minha mãe muitas vezes me contou que, quando o pai dela era menino, tinha uma voz tão bonita e sabia entoar tão bem as orações que quando o muezim ficava doente ele o substituía.)
Ainda assim, quando eu estava em casa, com as janelas fechadas, trabalhando ou tentando conversar, o som alto daquelas vozes masculinas glorificando o islã sempre me parecia, de certo modo, invasivo. “Eu sei que estou sendo idiota ao dizer isso, mas às vezes eu fico muito irritada”, confessei a meu amigo. “Ah, não, você é islamofóbica?”, perguntou ele, brincando. E me disse para pensar no imã como “um cantor, como um Michael Jackson”.
Meu turco falado não era perfeito, eu sorria muito e com frequência viajava sozinha – por isso ouvi muitos conselhos de homens, em especial de taxistas. Alguns eram laicos; outros, com toda uma parafernália religiosa dentro do carro, nem tentavam puxar conversa comigo. Mas ainda havia muitos taxistas extrovertidos, muçulmanos informais que se dedicavam a me explicar as maravilhas do uso do lenço – como era, “na verdade, uma coisa bonita”. Para uma mulher, cobrir a cabeça, diziam, era um gesto feminista, porque deixava claro que ela exigia respeito. Com essas mulheres, não aconteciam os mal-entendidos de que eram vítimas as outras, que andavam com a cabeça descoberta.
Em geral eu não respondia, sobretudo se o taxista parecia irritadiço – o sujeito se punha a discutir e parava de prestar atenção no trânsito, e muitos táxis não possuíam cintos de segurança. Uma vez, porém, um taxista pediu minha opinião de um jeito particularmente simpático, e eu disse algo do tipo: “Acho que todas as mulheres deveriam ser respeitadas, independentemente de esconder ou não o cabelo.”
O motorista respondeu que eu tinha toda a razão, é claro que as mulheres deveriam ser respeitadas – e o lenço na cabeça era a melhor maneira de elas lembrarem ao homem aquela necessidade de respeito. Os homens, afinal, eram piores que as mulheres: eles às vezes podiam perder a cabeça, e aí sobrevinham desgraças, “até mesmo” – e ele falou baixinho, frisando seu incômodo em mencionar uma coisa daquelas na minha frente –, “até mesmo estupros”.
No meu turco rudimentar, respondi que aquilo soava como ameaça: ou a mulher cobre a cabeça ou pode ser estuprada. Com frases rebuscadas, o taxista protestou: ninguém estava ameaçando ninguém ali, falar em ameaça naquela situação era inapropriado, ele podia ver por meu rosto sorridente que eu era uma pessoa de bem e inocente, mas o mundo era um lugar imperfeito, alguns homens eram menos humanos que animais e era bom emitir sinais inequívocos do que se estava ou não procurando. Depois, deixou-me no restaurante especializado em peixes onde eu me encontraria com alguns professores de literatura.
No táxi, éramos só nós dois num vácuo político, e eu não teria me aborrecido com as opiniões do motorista. O carro era dele, o país era dele, e ele estava me levando aonde eu queria ir. Eu sabia que meu turco insuficiente, a meus olhos uma enorme desvantagem, era, para ele, indicador de privilégio – sinal de que eu podia me dar ao luxo de viajar ao exterior e morar fora. Muitas vezes, depois da invariável “De onde a senhora é?”, a segunda pergunta que os taxistas faziam era: “Quanto custou a passagem de avião?”
O táxi, porém, não flutuava num vácuo: estava num país em que o chefe de Estado, cuja mulher portava o lenço, incitava repetidamente as mulheres a ter pelo menos três filhos, ou, de preferência, quatro ou cinco. Erdoğan era contra o aborto, o controle de natalidade e a cesariana. Havia dito que o islã definira uma posição muito clara para as mulheres, mas que não se podia explicá-la às feministas, porque elas “não aceitam o conceito de maternidade”. Quanto mais permanecia no cargo, mais abertamente falava. Em 2014, chegou a descrever o controle de natalidade como uma “traição” pensada “para acabar com nossa linhagem”. Por mais que eu tentasse ser tolerante, por mais solidária que fosse com as feministas muçulmanas que não queriam ser “libertadas” do véu e se sentiam tão julgadas pelo establishment secular quanto as laicas pelo patriarcado muçulmano, eu jamais poderia perdoar Erdoğan por dizer aquelas coisas sobre as mulheres. E como ele as dissesse em nome do islã, tampouco podia perdoar o islã.
No outono de 2011, viajei ao sudeste da Anatólia para fazer uma matéria sobre um sítio neolítico recém-descoberto, que os arqueólogos acreditavam pudesse ter sido o primeiro templo do mundo. O sítio, Göbekli Tepe, ficava perto da cidade de Urfa, local sagrado de peregrinação muçulmana, que os religiosos dizem ter sido a cidade natal de Abraão. (Perto da fronteira da Síria, a cidade é hoje um dos pontos de passagem dos combatentes estrangeiros que vão se juntar ao Estado Islâmico, EI.)
Ao que tudo indicava, eu era a única mulher desacompanhada no hotel. Quando disse ao recepcionista que ficaria seis dias, ele quase teve um troço. “Seis dias?”, repetiu. “Sozinha?” E, quando perguntei sobre o horário do banho de vapor, ele me informou que os banhos eram só para os homens, não importava o horário. Peguei o elevador e fui para o quarto, lamentando que não haveria bebida alcoólica no minibar. Durante todo o tempo que fiquei em Urfa, sempre que cruzava no saguão com alguém do staff do hotel, qualquer um, era invariavelmente saudada com um: “Ah, a senhora ainda está aqui?”
Tive bastante dificuldade em encontrar um táxi que me levasse ao sítio arqueológico. O recepcionista do hotel acabou chamando um motorista que ele conhecia: um sujeito rude, que não só me cobrou exorbitantes 55 dólares pela viagem de ida e volta, como suspirou e resmungou ao longo de todo o percurso. Quando lhe telefonei para me buscar e me levar de volta ao hotel, ele não atendeu. Precisei arrumar uma carona.
Concluí que, se alugasse um carro, minha vida ali ficaria mais fácil. Combinei com uma locadora supostamente localizada na rua 749, em Urfa, de chegar lá às seis da tarde do dia seguinte. Fui, mas me perdi tanto que, às sete, ainda zanzava por um trecho de uma via que parecia começar como rua 771, e depois, sem nenhum sinal aparente, se transformava na rua 764. Como eu já havia passado diversas vezes na frente de uma loja de conveniência, acabei despertando a atenção de um entregador de pães.
“Procurando alguma coisa?”, ele me perguntou. Mostrei-lhe o endereço, que ele exibiu a outro sujeito. Debateram longamente se existia ou não a rua 749. Um terceiro rapaz saiu da loja e se juntou à conversa. Esperei uns poucos minutos, mas era evidente que eles jamais chegariam a um acordo. E àquela altura a locadora já estaria fechada. Agradeci e caminhei rumo ao Centro, para comer alguma coisa.
Boa parte dos restaurantes de Urfa exibia uma placa dizendo RESTAURANTE FAMILIAR, o que significava que havia uma sala só para homens e outra para “famílias”, na qual se permitia a presença de mulheres. Entrei num cuja “sala familiar” ficava no terraço coberto. Duas ou três famílias, com crianças, ocupavam suas mesas – as demais estavam vazias. Escolhi uma mesa de canto para quatro pessoas. As famílias tinham muitos pedidos a fazer, e eu não conseguia chamar a atenção do garçom. Já estava sentada fazia vários minutos, quando um amigo de Istambul telefonou. Comecei a falar inglês, e duas mulheres de uma mesa próxima se voltaram para mim e me encararam boquiabertas. Pensei que talvez desaprovassem o fato de eu estar falando ao celular.
“Eu ligo mais tarde”, disse a meu amigo.
Contudo, mesmo depois de eu ter desligado o aparelho, elas não tiraram os olhos de mim. Tentei sorrir, acenar, mas elas não acenaram de volta nem desviaram o olhar. O garçom, que ainda não me atendera, estava de pé a um canto, absorto por uma tevê que pendia do teto. Desisti e voltei ao hotel. No quarto, comi pãezinhos com gergelim enquanto lia sobre a Revolução Neolítica.
As principais atrações para turistas e religiosos – um antigo castelo, inúmeras mesquitas, uma caverna onde talvez Abraão tenha nascido e por dez anos teria sido amamentado por uma cerva, e o lago da carpa sagrada que se acredita marcar o ponto em que Ninrode tentou queimar o patriarca vivo (Deus teria transformado as brasas em peixes) – ficam todas dentro ou ao redor de um parque verde com muita sombra e inúmeras fontes e roseiras. Todo dia eu ia lá para fugir do calor. Como nos locais sagrados as mulheres tinham de cobrir a cabeça, comprei no mercado um lenço que não tirei da bolsa. Era macio, diáfano, de um verde primaveril e uma intricada estampa de minúsculas videiras e folhas de uva.
Um dia fui visitar a caverna de Abraão e na saída esqueci de tirar o lenço da cabeça. Voltando pelo parque, senti quase de imediato que algo havia mudado. Passei por duas moças de lenço, bonitas, de mãos dadas, que riam de alguma coisa. Quando olhei para elas, as duas olharam bem para o meu rosto, e nossos olhares se cruzaram; continuavam sorrindo, como se as três estivéssemos presenciando uma cena divertida. Percebi que, até aquele momento, nenhuma moça de Urfa havia me olhado nos olhos ou me endereçara um sorriso. Conforme fui caminhando, uma crescente sensação de liberdade tomou conta de mim, como se pela primeira vez eu pudesse olhar para onde quisesse sem o risco de topar com expressões hostis. Voltei para a cidade de lenço.
Não se trata de um estudo científico: não repeti o procedimento nem medi coisa nenhuma. Tudo de que disponho é minha impressão subjetiva, que é a seguinte: andar pela cidade com um lenço na cabeça foi uma experiência completamente diferente. As pessoas foram muito mais simpáticas. Ninguém virou o rosto ao me ver. Senti que me empurravam menos, os homens pareciam abrir caminho, me dar mais espaço. Ao entrar numa loja, um deles segurou a porta para mim, e eu me dei conta de que era a primeira vez que alguém à minha frente me oferecia passagem, sem entrar primeiro e deixar que a porta batesse na minha cara. E, o mais incrível: quando cheguei a um ponto de ônibus pouco depois de ele ter partido, o motorista parou no meio da rua, abriu a porta, outro homem estendeu a mão para me ajudar a embarcar e me chamou de “irmã”. Foi fantástico. A sensação de ser bem-vinda e aceita, de me sentir segura, poder olhar para o rosto de alguém, sorrir e receber um sorriso de volta – era um presente maravilhoso.
Por quanto tempo conseguiria usar o lenço? Foi isso que me peguei pensando, enquanto o ônibus ganhava velocidade e carros buzinavam à nossa volta. Pelo resto do dia? Para sempre?
Por que não tive aquela ideia antes? Por que ninguém havia me dito que eu podia fazer isso? Não era difícil nem caro. Por que eu não haveria de cobrir a cabeça, se aquilo fazia com que as pessoas se sentissem muito melhor? Por que provocar nelas e em mim desconforto tão desnecessário? Por princípio? Que princípio? O princípio de que mulheres e homens eram iguais? A quem eu estava comunicando aquele princípio? E com que grau de sucesso? E se achasse que estava comunicando uma coisa, e as pessoas estivessem entendendo outra? E se o que entendiam era que eu as desaprovava, julgava ultrapassado seu estilo de vida? Aquilo ainda era “comunicar”?
De repente me flagrei pensando em sapatos de salto alto. Além de dolorosos, eles acabavam me saindo muito caros – eu precisava tomar mais táxis, já que andava com mais dificuldade. E, no entanto, eu muitas vezes usara salto para ir a eventos de trabalho em Nova York, sobretudo porque sentia que, desse modo, as pessoas me tratavam com mais consideração. Por que, então, me recusaria a usar o lenço, que me rendia benefício semelhante em termos de aceitação social, e sem a desvantagem de prejudicar minha capacidade de ficar em pé ou caminhar?
Ainda assim, quando pensei em sair de lenço pelo resto de minha permanência na cidade, alguma coisa me pareceu desonesta, quase vergonhosa, como se eu estivesse enganando as pessoas, me valendo de uma estratégia para que elas fossem gentis comigo. Aquelas meninas que haviam sorrido para mim acharam que eu fosse como elas. O sujeito que me ajudou a embarcar no ônibus pensou que eu fosse sua “irmã”.
Então me ocorreu uma espécie de fantasia, um pensamento tão estranho que mal conseguia articulá-lo para mim mesma: E se eu fizesse aquilo para valer? Se usasse o lenço não como disfarce, mas de verdade? Eu tinha 34 anos e um monte de dúvidas sobre o rumo que minha vida estava tomando. Não sem certa relutância, havia feito um aborto no ano anterior – e cada pequena derrota, qualquer sinal mais hostil me machucava um pouco mais. Nunca havia me sentido tão sozinha, e de um modo que naquele momento me pareceu ter sido planejado por mim, como se eu tivesse escolhido aquela vida sem ter consciência disso, anos antes, ao decidir me tornar escritora. Agora, vislumbrava um modo de ser completamente diferente de tudo que pudera imaginar, uma vida de regras claras e deveres a seguir, em troca dos quais poderia ser respeitada e me sentir segura.
Eu teria filhos – não era uma possibilidade, eu teria filhos e pronto. Não precisaria me preocupar com o fato de meu valor social estar irrevogavelmente vinculado a meu valor sexual. Desfrutaria de menos liberdade, sim, mas o que havia de tão extraordinário na liberdade? O que havia de tão extraordinário em ser jornalista e andar por aí torrando a paciência de todo mundo, levando as pessoas a suspeitar de mim ou a tentar me usar em suas estratégias de relações públicas? Viajar sozinha, sobretudo como mulher e em especial numa cultura patriarcal, poderia de fato ser cansativo. Mas isso poderia me induzir a questionar as prioridades básicas em torno das quais minha vida girava. Por exemplo: Por que eu teria um trabalho que me obrigaria a viajar sozinha? Pela literatura? O que é literatura?
Esses pensamentos voltaram a me assolar há pouco tempo, quando li Submissão, o mais recente livro de Michel Houellebecq, uma sátira ambientada em 2022, numa França governada por islamistas moderados eleitos democraticamente. No romance, o islã é, em grande parte, uma fantasia criada para agradar gente exatamente como Houellebecq, pessoas que usufruem de universidades sem problemas de financiamento, degustam aperitivos incríveis, vinhos franceses e libaneses à vontade, e cada intelectual que se converte ao islamismo pode ter múltiplas esposas adolescentes. Mas a retórica política do líder do movimento, Mohammed Ben Abbes, muito bem pensada e coerente, revela certa semelhança com a plataforma real de Erdoğan e é apresentada com uma franqueza e uma lucidez que me fizeram entender a lógica do AKP de um modo como eu jamais havia entendido.
No plano internacional, Ben Abbes busca transformar a Europa numa união mediterrânea e norte-africana de Estados muçulmanos, um programa semelhante ao “neoislamismo” de Ahmet Davutoğlu, o primeiro-ministro do AKP. No plano doméstico, Ben Abbes apoia o empreendedorismo, as empresas familiares e o livre mercado. Socialmente, ele procura estimular a educação muçulmana e encorajar as mulheres a serem donas de casa, ao mesmo tempo que segue incensando o valor supremo do governo democrático. Eu nunca tinha entendido de que maneira todos esses valores se relacionavam, ou mesmo em que medida eram compatíveis.
Como alguém contra o feminismo – e tudo bem, já que metade da população é menos educada que a outra metade – pode ser favorável à democracia? Como uma Constituição democrática pode não ser laica? Como ela pode ser compatível com as religiões abraâmicas ou com o que quer que tenha provindo daquela caverna em Urfa? Eu sempre supus que, em algum ponto, Erdoğan não estivesse sendo sincero: ou fingia se importar com a democracia ou fingia se importar com os valores familiares muçulmanos – ou ainda, como diziam meus parentes, as duas coisas eram uma farsa, e o que lhe interessava mesmo era construir mais shopping centers com o dinheiro do Golfo.
Ao ler Submissão, vi que existe, de fato, uma coerência lógica na plataforma islamita moderada de livre comércio. A democracia, como o capitalismo, é um jogo de números, e “valores familiares”, uma máquina que aumenta a população. Nas palavras de uma das personagens de Houellebecq:
os casais que se reconhecem numa das três religiões do Livro Sagrado, entre os quais os valores patriarcais se mantiveram, têm mais filhos que os casais ateus ou agnósticos; as mulheres são menos educadas, o hedonismo e o individualismo são menos enraizados. Por outro lado, a transcendência é, em grande parte, uma característica geneticamente transmissível: as conversões, ou a rejeição dos valores familiares, têm apenas importância marginal; na imensa maioria dos casos, as pessoas permanecem fiéis ao sistema metafísico em que foram criadas. O humanismo ateu, sobre o qual repousa o “viver juntos” laico, está, portanto, condenado.[1]
No ano de 2022 de Houellebecq, os humanistas ateus estão condenados não apenas à extinção, mas também a não gozar de muito prestígio. O movimento de 1968 na Europa, como a revolução kemalista na Turquia, um dia propôs uma contracultura – acabou ganhando, mas se transformou ele próprio num establishment velho e caindo aos pedaços. Ben Abbes, Houellebecq escreve, não tem nenhum problema com “os últimos remanescentes de Maio de 68, múmias progressistas moribundas, sociologicamente exangues, mas refugiadas em cidadelas midiáticas”. Em menor número, os zumbis irrelevantes, que ainda se creem defensores dos subjugados, são de tal forma “paralisados” pelo multiculturalismo dos muçulmanos que nem sequer lutam.
François, o narrador de Houellebecq, é um professor de literatura francesa de meia-idade, especialista nos romances de Joris-Karl Huysmans. Às Avessas (1884), de Huysmans, considerado por muitos a obra-prima do decadentismo, conta a história de um aristocrata dissoluto entregue a ideais estéticos, como saborear refeições compostas exclusivamente de alimentos negros e andar por aí com uma tartaruga gigante incrustada de joias. Mas isso não lhe traz felicidade, mesmo que pareça esgotar as possibilidades do romance decadente.
Huysmans se converteu ao catolicismo depois de escrever Às Avessas. O paralelo entre François e o herói de Huysmans é claro. François também dedicou sua vida a ideais estéticos: ler, ver tevê, fumar um cigarro atrás do outro, beber vinho de supermercado e sair com alunas da graduação. Ele também acha esses prazeres vazios e exauríveis: a literatura deixa de parecer interessante, e o sexo se torna mais difícil a cada ano. Huysmans se converte ao catolicismo, François se converte ao islamismo.
Quando o governo muçulmano subsidia uma edição de Huysmans para a prestigiosa coleção Pléiade e encarrega François de escrever uma introdução, ele relê o romancista e pela primeira vez percebe que “o único tema verdadeiro de Huysmans foi a felicidade burguesa, uma felicidade burguesa dolorosamente inacessível ao solteiro”. Era tudo que Huysmans havia desejado. No lugar das refeições exclusivamente pretas, da tartaruga incrustada de joias, “uma alegre refeição entre artistas e entre amigos, um pot-au-feu com molho de raiz-forte, acompanhado por um vinho ‘honesto’, e depois uma aguardente de ameixa e um tabaco, ao pé do fogareiro, enquanto as rajadas do vento invernal batem nas torres de Saint-Sulpice”. Essa felicidade é “dolorosamente inacessível ao solteiro”, ainda que rico e com criados – ela depende de uma esposa que saiba cozinhar e entreter, que possa transformar uma casa num lar.
Esse é o preço da felicidade burguesa na utopia islamita de Houellebecq: a independência das mulheres. É fascinante observar como o romancista enfrenta o desafio de tornar aparentemente palatável a escravização da mulher, e não apenas ao François curioso acerca do islamismo, mas, em certa medida, também às mulheres francesas. Logo no começo, por exemplo, ele procura duas de suas ex-namoradas, ambas solteiras, bem-sucedidas e na casa dos 40 anos; essas cenas sugerem, o que não é nada implausível, que as sanções para o envelhecimento e o preço psíquico do namoro e da solteirice sejam ainda piores para as mulheres do que para os homens, e que nada disso é recompensado pelas alegrias de uma carreira no âmbito, digamos, da distribuição de vinhos ou da indústria farmacêutica. Posteriormente, François visita uma ex-colega que se retirou para a vida doméstica devido à islamização da universidade. “Ao vê-la atarefada em sua bancada, vestindo um avental de cozinha bem-humorado do gênero ‘Não esculache a cozinheira, o patrão já faz isso’, a gente custava a crer que dias antes ela era responsável por cursos de doutorado sobre as circunstâncias bem particulares em que Balzac corrigira as provas de Béatrix.” Em seguida, ele observa: “Ela preparara umas tortinhas de pescoço de pato com echalota deliciosas.” Em passagem posterior, ambientada num trem, François contrasta o estresse visível de um empresário muçulmano, que está tendo uma conversa claramente difícil ao telefone, com a animação de suas duas animadas esposas adolescentes, ocupadas com o jogo dos sete erros de um gibi. No “regime islâmico”, François se dá conta, as mulheres – “quer dizer, as bonitas o suficiente para despertar o desejo de um marido rico” – vivem numa infância eterna: primeiramente como crianças, e depois como mães, restando apenas uns poucos anos de “lingerie sexy” de permeio. “É claro que perdiam autonomia, mas fuck autonomy.”
A visão de Houellebecq de um Estado islâmico, em que pese seu caráter caricaturesco, é revestida de certa generosidade imaginativa. Ele retrata o islã não como uma ameaça impessoal que se aproxima sorrateiramente, ou como um último recurso ideológico a que ficam vulneráveis os excluídos pelo Ocidente, mas como um sistema de crenças extremamente atraente a muita gente, pessoas que inclusive têm outras opções. Foi a essa conclusão que cheguei em Urfa. Ninguém tem tudo: todo mundo abre mão de certas coisas para obter outras.
Não voltei a usar o lenço depois daquela tarde. Não sabia como explicar racionalmente, mas não me pareceu direito. Limitei-me à estratégia original de sorrir e ignorar restrições sociais – à americana. “Na imensa maioria dos casos”, disse certa vez um intelectual francês, “as pessoas permanecem fiéis ao sistema metafísico em que foram criadas.”
No curso de múltiplas viagens ao sítio arqueológico, o taxista rude foi aos poucos se abrindo, sobretudo depois que eu elogiei sua habilidade em desviar de pedestres no último segundo. “Isso não foi nada”, ele me disse, e contou da ocasião em que conseguira desviar de um velho que caminhava bem no meio da rua, como se andasse pela calçada, e que em resposta a suas buzinadas não arredara pé e gritara: “Faça de conta que eu sou uma árvore.”
“Como é que se pode argumentar com uma pessoa assim?”, o taxista perguntou, acrescentando que, quando dirigia em Urfa, se pautava pela lógica, e não pelas leis de trânsito, porque a taxa de sobrevivência daqueles que seguiam as leis de trânsito havia caído a 0%.
Encostamos na calçada do hotel. Quando entrei, o recepcionista, não sem senso de humor, comentou: “Então a senhora ainda está com a gente.”
“Claro”, respondi. “Quem haveria de querer ir embora de Urfa?”
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[1] Todas as citações do romance foram extraídas da edição brasileira, publicada pela Editora Objetiva em 2015, com tradução de Rosa Freire d’Aguiar.
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