ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Sem meias palavras
Repórter emotivo entrevista o escritor James Ellroy
Paulo Nogueira | Edição 46, Julho 2010
O entrevistador chegou com o coração acelerado. Pura emoção. Em poucos instantes, iria conhecer o escritor americano James Ellroy, autor de thrillers que conseguem o prodígio de evocar tanto a prosa sombria de Dashiell Hammett como as pirotecnias estilísticas de James Joyce. O escritor tem hoje 63 anos, mas aparenta mais. É esguio e elegante, quase janota, como um Tom Wolfe amarrotado. Estava em Lisboa para lançar seu romance mais recente, Blood’s a Rover – na edição portuguesa, em preparação, Sangue Errante. O livro encerra a sua trilogia Underworld USA.
Já na presença do grande homem, o jornalista intuiu que o prazer do encontro não era mútuo. Como um gato antes da ração diária, o ficcionista exalava crispações por todos os poros. Diplomático, o entrevistador deixou claro que não havia ali um iconoclasta, mas um idólatra: “Sou um grande fã. É uma honra conhecê-lo”, salmodiou. O autor reagiu como se o interlocutor tivesse comentado que estava chovendo ou que eram três da tarde. O jornalista então ligou o gravador, que Ellroy olhou como se contemplasse alguma substância produzida nos intestinos.
Para desanuviar, o entrevistador julgou aconselhável começar com uma amena nota biográfica. “Sei que há muito tempo o senhor trabalhou como caddy.” O escritor grunhiu:
– Sim.
Bem, adiante. “Aprendeu a jogar golfe? Aprecia algum esporte?”
– Não.
Duas coisas se tornavam evidentes: 1) que a negativa abrangia ambas as perguntas (e quase todas as próximas); 2) que Ellroy considerava entrevistas uma modalidade de esporte particularmente repulsiva. A linguagem corporal do entrevistado indicava que ele estava passando com alarmante rapidez do descontentamento à fúria. O repórter examinou-se de soslaio. Teria a braguilha aberta? Uma coisa verde nos dentes? O nariz escorrendo? Nada.
Então meditou: abrir a conversa lembrando os tempos em que o autor carregara tacos de golfe para sobreviver lhe parecera uma ideia sensata, decerto amparado pelos melhores manuais de jornalismo, pois com ela desbravava o caminho para o entrevistado falar de sua estação no inferno: na adolescência, a mãe dele fora brutalmente assassinada e nunca encontraram o assassino (foi a inspiração para Dália Negra), expulsaram-no da escola e de casa, ele dormira em parques e sob viadutos, pilhara lojas de conveniência, invadira casas para surrupiar calcinhas, virara alcoólatra, fora preso. Depois veio a literatura, a sublimação, a redenção. Tinha mais de 30 anos quando publicou o primeiro livro. Era aí que o entrevistador queria chegar, quixotescamente. Decidiu persistir. Bastava de questiúnculas.
“Quatro de seus romances integram o que o senhor chamou de ‘o quarteto de Los Angeles’ e muitas das suas obras se desenrolam na mesma cidade. Porém, o senhor hoje vive em Kansas City. É por concordar com Raymond Chandler, para quem ‘L.A. tem tanta personalidade quanto um copo de plástico?'” A sumidade fez um esgar de repugnância:
– Você está redondamente enganado – e é a segunda vez em duas perguntas! Moro em Kansas City, mas ainda resido em Los Angeles. E Chandler era um péssimo escritor. Não entendia bulhufas de policiais.
O jornalista engoliu a seco (e o entrevistado ouviu, é certo). Pensou em suplicar a Ellroy que explicasse como conseguia morar em um lugar e residir em outro, mas a pergunta expirou na garganta. Agora o escritor já não falava: rangia os dentes, apoplético. O entrevistador pensou em surtar, mas era um profissional e balbuciou com estoicismo: “Por causa da sua prosa pessimista, até niilista, o senhor já foi chamado de o Demon Dog do policial americano. Mas alguns dos seus protagonistas – Lloyd Hopkins, por exemplo?– têm a sua própria e visionária moralidade.” Foi o que bastou para que o homem se catapultasse da cadeira com uma expressão de indignação cósmica:
– Criei Hopkins há 20 anos! Ele não me interessa!
O jornalista imaginou Shakespeare vociferando para um repórter elizabetano: “Que se danem Macbeth ou Hamlet. Só falo sobre Próspero!”
O negócio era convergir para a atualidade. “O senhor é visto como um conservador. Mas se opôs à pena de morte e defendeu a restrição à venda de armas.” Ellroy cravou seus olhos nos olhos do rapaz com a concentração de um oftalmologista à procura de cataratas:
– Sou a favor da pena de morte. Há certas pessoas que não merecem viver…
Foi quando o jornalista receou ter os dias contados. Mas Ellroy prosseguiu:
– É verdade que aprovo o controle do comércio de armas.
Ufa. Aliviado, o repórter esboçou uma cumplicidade melíflua: “Eis um mistério que gostaria que me ajudasse a solucionar. Vários dos melhores escritores policiais são mulheres. No entanto, as estatísticas indicam que poucas leitoras gostam de romances policiais. Tem uma pista para essa charada?”
– É verdade que há boas autoras de policiais. Não faço a mínima ideia por que razão as mulheres não leem policiais.
E, com isso, olhou para o relógio. Só faltou sacudi-lo. Era imperiosa uma nova estratégia. Quem sabe dar ao homem a oportunidade de espezinhar os seus contemporâneos… Pois nada como sabotar a concorrência para desopilar um fígado. E Ellroy não se cansa de repetir que não lê os colegas “para não ser influenciado”. Reserva os elogios para as gerações anteriores (já falecidas), tendo inclusive declarado ser, ele próprio, “como Tolstói para o romance russo e Beethoven para a música”. O jornalista mergulhou de cabeça: “Nos últimos tempos, o policial foi reduzido a duas modas: a dos serial killers e a da antropologia forense, com computadores e análises de DNA.” Ellroy revirou os olhos.
– Eu já escrevia sobre essas coisas há séculos.
Caramba. Ah, algo que ele também escrevera e que era a sua marca registrada! “O senhor parece preferir as forças policiais aos detetives particulares.”
– Claro. Os investigadores privados não entendem nada do assunto. São amadores bisonhos.
Ocorreu então ao jornalista que ninguém leva a mal um elogio. “Diversas obras suas foram adaptadas para o cinema com muito sucesso. Los Angeles, Cidade Proibida foi indicado para nove Oscars e ganhou dois. Como o senhor se sente ao ver os produtos da sua imaginação projetados na tela?”
– É só uma forma de ganhar dinheiro.
Dito isso, afundou num silêncio sideral e encarou o jornalista com um olhar de ouriço. Quem passasse por ali teria achado mais prudente dar marcha a ré. Com os olhos marejados, o jornalista decidiu capitular. Foi por dever de ofício que gemeu a última pergunta: “O seu novo romance, Blood’s a Rover, reconstitui fatos históricos e introduz personalidades célebres, como Howard Hughes e J. Edgar Hoover. Será correto afirmar que se trata menos de uma obra policial do que de ficção histórica?”
– Sim.
Sim?
Rápido como um raio, o jornalista desligou o gravador. Pela primeira vez, James Ellroy não apenas concordara com o entrevistador, como parecera se resignar com o fato de ele respirar.