Sem xixi na galocha
O bandeirantismo completa cem anos com rãs, pelúcia e banho de cano, mas sem o entusiasmo de uma invasão do Palácio de Cristal
Vanessa Barbara | Edição 30, Março 2009
No dia 4 de setembro de 1909, no Palácio de Cristal, em Londres, 11 mil meninos de várias partes do Reino Unido se juntaram para encontrar pela primeira vez o criador do escotismo, lord Robert Stephenson Smyth, o barão Baden-Powell. Sem serem convidadas, 24 garotas se infiltraram na reunião dos escoteiros. “Ficamos sabendo do encontro por meio do grupo escoteiro local”, contou uma delas, que tinha 13 anos e morava em Camberwell, ao sul de Londres. “Não havíamos sido convidadas e nem tínhamos permissão para ir, mas pegamos emprestados alguns uniformes e chapéus e fomos.” Algumas das meninas escreveram cartas a Baden-Powell usando apenas suas iniciais, para que ele pensasse que eram rapazes, e assim conseguiram se inscrever.
Apesar do dia frio e chuvoso, elas andaram quase 10 quilômetros até o Palácio de Cristal porque não tinham dinheiro para o ônibus. Ao chegarem, foram barradas por um organizador que fez troça das moçoilas – o escotismo era uma organização estritamente masculina. Incansáveis, elas conseguiram entrar sorrateiramente, por entre um grupo de escoteiros.
Dentro do palácio, filas de rapazes, com seus totens e chapéus, desfilavam e saudavam Baden-Powell, que, satisfeitíssimo, inspecionava as tropas. Seu humor azedou quando vislumbrou o grupinho de fedelhas num dos cantos da arena. Elas ainda tentaram se esconder, mas ele se aproximou a passos largos e inquiriu: “Que diabos vocês estão fazendo aqui?” A líder das meninas respondeu: “Queremos fazer a mesma coisa que os rapazes, queremos ser escoteiras.” Baden-Powell respondeu que era impossível, mas, mais tarde, disse que ia pensar no caso.
Durante o resto da cerimônia, as garotas foram apupadas pelos rapazes, e mesmo assim não se abalaram. Depois da leitura de um telegrama de cumprimentos do rei Eduardo VII, como todos os presentes elas ergueram seus chapéus e totens. Foi graças à pressão das meninas que, no ano seguinte, Baden-Powell determinou que sua irmã Agnes fundasse a vertente feminina do escotismo, que no Brasil se chamou Movimento Bandeirante, em homenagem aos brasilianos de São Paulo que, a poder de ferro e fogo, dilataram a fé católica e o império luso.
O bandeirantismo brasileiro comemora neste ano nove décadas de vida. Em 2010, será a vez do centenário mundial, quando todos os membros da World Association of Girl Guides and Girl Scouts organizarão festas nacionais e internacionais para celebrar a data, sempre no centésimo dia do ano (10 de abril). As comemorações se estenderão por três anos, o tempo que, da Inglaterra, o movimento levou para se espalhar pelo mundo. O primeiro acampamento mundial comemorativo está marcado para o ano que vem, no Canadá, e até lá os bandeirantes firmaram o compromisso de fazer 100 grandes amigos.
Sim: os bandeirantes. Ao contrário do que imaginam os leigos, o bandeirantismo não é uma associação só para moças. A partir da década de 60, passou a receber também meninos e hoje é uma organização mista, distinta do escotismo, mas com princípios e técnicas semelhantes. Pode-se dizer que o escotismo se concentra em aventuras e pioneirias (amarras, bivaques, orientação, sobrevivência na selva) e o bandeirantismo, em campanhas beneficentes, projetos educacionais e jogos – embora isso não seja regra e comportamentos possam variar de região para região.
Espíritos malignos invadiram o acampamento durante a noite. Foi em outubro de 2001, em Araçariguama, no interior paulista, quando uma menina fez xixi nas galochas de tanto medo e as crianças tiveram que resgatar a chama da magia por entre as árvores, sem pistas e sem lanterna – e parece que havia morcegos.
Três anos antes, num acampamento em Parelheiros, na periferia de São Paulo, uma bruxa horrenda assaltou o forte apache e, em uma atitude destemida que virou notícia, “a Camila pegou uma minhoca com a mão”.
Em 1992, sempre em São Paulo, dessa vez em Boituva, foi a máfia chinesa que assombrou. Quatro sábios de branco vagaram pelas barracas distribuindo pistas, enquanto os malfeitores de preto capturavam membros das equipes. Alguém passou por uma ponte baixa e foi agarrado pelo pé. Nos acampamentos bandeirantes, os jogos são mirabolantes e até as crianças de 5 anos enfrentam monstros, índios loucos e esqueletos.
Em abril passado, num sítio em São Bernardo do Campo, os núcleos bandeirantes Acauã e Itatiaia organizaram um acampamento para cinquenta participantes. O tema, que em geral é apenas uma desculpa para criar os jogos, era “alto astral”, ou seja, horóscopo. Os jogos foram preparados com algumas semanas de antecedência e incluíam circuitos com cordas, lama e toldos escorregadios. Os bandeirantes foram divididos em quatro equipes, simbolizando a terra, a água, o fogo e o ar, e tiveram de cumprir uma infinidade de tarefas vagamente relacionadas aos signos. Por exemplo: na base do signo de Sagitário, que, segundo o zodíaco, é marcado pela liberdade e a aventura, passaram por um labirinto de cordas com os olhos vendados e apanharam ingredientes para um almoço mateiro.
Os bandeirantes só costumam descobrir o tema na abertura do acampamento. Às vezes, são surpreendidos pelos jogos em andamento enquanto lavam a louça ou escovam os dentes: surge um feiticeiro envolto em uma nuvem de fumaça e começa a ditar as regras. Ou então os adultos (chefes escoteiros ou coordenadores) desaparecem misteriosamente, deixando o acampamento às moscas e um mistério para as crianças desvendarem. Outras vezes, os jogos são contínuos e as equipes passam dias e dias na sequência da mesma história, incorporando os personagens relativos ao tema. As fadas e os magos – os bandeirantes de 5 a 9 anos – já estão acostumados com a idéia. Em suas reuniões semanais, que em geral acontecem aos sábados, participam do “encantamento”, atividade em que formam um círculo e, cantando uma música, assumem a personalidade de médicos, besouros, artistas, expedicionários, marcianos, ou bananas. Levam a brincadeira tão a sério que, num feriado de Semana Santa, uma coordenadora teve que “desencantar” por telefone uma criança que tinha saído mais cedo da atividade e continuava agindo como uma cenoura.
As demais categorias de bandeirantes (B1 e B2, de 9 a 15 anos) e guias (de 15 a 18 anos) também realizam reuniões semanais, em que participam de jogos educativos nas áreas de saúde, habilidades, cultura, cidadania, meio ambiente e participação comunitária. O bandeirantismo também se dedica a gincanas, visitas a creches e asilos, competições esportivas, brincadeiras de roda (às vezes com letras em espanhol que ninguém entende, ou cantigas famosas de significados obscuros como “Era um sapo/ que morava no rio/ com seu traje verde,/ mas morria de frio/ E a senhora sapa/ tinha um amigo/ que era professor”), jogos de cidade, caças ao tesouro, debates, pinturas, teatro etc. A idéia geral é ensinar através de jogos.
Na saída para o acampamento, uma coordenadora foi logo avisando: “Olha o dedo no nariz!” As crianças se dispersaram pelo ônibus. As fadas e magos dormiram na frente com seus macaquinhos de pelúcia, os B1 ficaram falando sobre a escola e comendo salgadinhos, algumas B2 comentaram que gostavam de tomar banho frio porque faz bem para a pele e os guias tocaram pandeiro. Ao chegar ao sítio Garça Branca, todos descarregaram a bagagem e começaram a montar o acampamento.
Foram postas de pé duas cozinhas (com mesas de bambu e toldo) e doze barracas para os B1 e B2, além de onze redes para os guias. A montagem levou a tarde inteira e foi cansativa. “Tem uma rã no seu pé”, avisou uma das guias e a amiga, ocupada em reforçar uma amarra, nem se incomodou. Alguém reclamou que seria mais rápido montar um kit instantâneo de redes e toldo, e a coordenadora de guias retrucou que seria como comprar hambúrguer pronto para o acampamento. Ou pedir pizza.
Redes de náilon foram estendidas entre troncos de árvores, em dois ou três andares. Os que dormiam no último andar não podiam levantar à noite para ir ao banheiro. Há uma técnica complexa de subir nas redes, que exige agilidade e equilíbrio. Nenhum tombo grave foi registrado.
As fadas e os magos, que não precisavam montar o próprio alojamento, pois iam dormir num galpão, se dispersaram pelo campo. Duas fadinhas apostaram corrida: “Quem chegar primeiro perde”, disse a pequena Letícia, de 5 anos, a tempo de se corrigir: “Não, não, quem chegar por último, senão a gente vai ficar parada.” A certa altura da tarde, ela e Luna, dois anos mais velha, pediram socorro aos bandeirantes que passavam com bambus: “Alguém ajuda a gente a descer da gangorra?”
A bandeira do acampamento foi hasteada quase no final da tarde e assim começou o cerimonial de abertura com brincadeiras e divisão de equipes, quando os bandeirantes produzem gritos de guerra, totens e identificação. A equipe Minhoca saiu na frente. O jantar foi macarrão com almôndegas.
Baden-Powell fez carreira militar na Índia e na África e chegou a general. Comandou inúmeros regimentos, entre os quais promovia espetáculos de teatro, competições de caça ao javali e passeios de bicicleta. Um dia, dividiu os soldados em pequenas unidades de meia dúzia (que, no escotismo, foram chamadas de patrulhas e, no bandeirantismo, de equipes) que nomeavam seu próprio líder. Também criou insígnias e prêmios de eficiência. Ele achava que o trabalho, inclusive o militar, rendia mais se fosse realizado de maneira interessante. Desenvolveu jogos e competições que uniam a prática e a diversão, e os aplicou no escotismo.
O primeiro acampamento escoteiro da história foi organizado por Baden-Powell em 31 de julho de 1907, na Ilha de Brownsea. Compareceram vinte meninos. No primeiro dia, foram formadas quatro patrulhas: Maçaricos, Corvos, Lobos e Touros, sendo escolhidos os monitores e distribuídos os demais cargos. Cada patrulha tinha sua barraca e era identificada pelas cores das quatro fitas que os integrantes portavam no ombro e pela bandeirola que os líderes carregavam num bastão. Em cada dia, os escoteiros trabalharam um tema diferente: técnica de acampamento, observação, artes mateiras, cavalheirismo, salvamento de vidas e patriotismo. Lá ocorreu o primeiro Fogo de Conselho (cerimônia em torno de uma fogueira com histórias, esquetes e músicas).
O acampamento foi um sucesso e Baden-Powell reuniu sua filosofia em um manual, Escotismo para rapazes, publicado em 1908, que é usado até hoje. Ele afirma no livro que “compreendeu que estava aí a oportunidade de ajudar os rapazes de sua pátria a se desenvolverem para uma robusta virilidade”. Há outros trechos memoráveis, como uma seção dedicada à continência ou abstenção de prazeres sexuais, na qual o autor diz que o desejo pode ser despertado por se ter comido demais, pela constipação ou por se dormir em cama macia, muito quente, com muitas cobertas. O livro ensina como tocaiar emas, como ficar de cócoras e como afiar bons cotocos. A despeito de alguns ensinamentos ultrapassados, é um bom manual de referência para pioneirias, orientação, cozinha mateira, sinais de pista, observação e outras técnicas de campo.
Com suas técnicas e jogos, Baden-Powell queria que as crianças e jovens aprendessem a agir por conta própria e se autoconhecessem. “O instinto natural do menino é de fazer despontar a própria personalidade por meio de um exercício que chamamos jogo”, escreveu. “Ele tem um desejo de realizar-se: quer fazer coisas e superar dificuldades para se sentir diferente.” O general cita a educadora Maria Montessori para dizer que, encorajando as crianças nos seus desejos naturais, em vez de instruí-las naquilo que o adulto pensa que deveriam fazer, é possível educar sobre uma base mais sólida e mais ampla.
A chuva atrapalhou um bocado o acampamento em São Bernardo. No segundo dia, o jogo noturno foi cancelado porque a tempestade estava forte e, em vez de Fogo de Conselho, fez-se uma lamparada, na qual a fogueira é substituída por lampiões. O banho de B2 e guias aconteceu numa “cachoeira” a quinze minutos do campo – na verdade, três canos de plástico que desaguavam num riacho. Na volta do banho, a chuva apertou. Alguns jogos foram feitos debaixo do aguaceiro. As fadas e magos se dispersavam de cinco em cinco minutos e alguns se recusaram a participar. “Santa Catarina é longe, fica perto do Japão”, informou uma das fadas à amiga, durante um jogo, sem qualquer motivo aparente. Patos e galinhas passeavam placidamente pelo campo, enquanto os bandeirantes tentavam acender uma fogueira debaixo de chuva para preparar o almoço. Às vezes, os maiores também se dispersavam e as brincadeiras se estendiam além da conta.
Desde a invasão das meninas no Palácio de Cristal, o Movimento Bandeirante passou por várias modificações. Nos anos 60, atingiu no Brasil o auge de 20 mil membros. Hoje, segundo o censo da Federação de Bandeirantes do Brasil, o efetivo é de 4 500 inscritos em catorze estados. Recentemente, o movimento aderiu à onda do “ano do voluntariado” e passou a dar mais atenção a projetos como Ouça, Aprenda e Viva (de prevenção a Aids), o Dia Global do Voluntariado Jovem e o Dia de Fazer a Diferença. Ao mesmo tempo, para os cerimoniais de reflexão, adotaram-se mensagens edificantes de paz e harmonia, como textos falsamente atribuídos a escritores famosos que falam de persistência, arco-íris, criatividade e lendas milenares da China rural. Os jogos deram lugar a dinâmicas de auto-ajuda. Baden-Powell foi ficando para trás.
O jogo é uma ocupação voluntária, exercida dentro de certos limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria, e de uma consciência de ser diferente da vida cotidiana. Essa é a definição do historiador Johan Huizinga, que, em Homo Ludens, enumera as suas principais características: liberdade, evasão da vida real, desinteresse, isolamento, ordem e limitação. Ainda assim, não é o oposto da seriedade, pois pressupõe que os participantes adotem seu universo com a maior gravidade possível – ele funciona melhor quanto mais for levado a sério.
É o caso da criança que não podia deixar de agir como cenoura. Ou dos muitos casos de agressão, com vassouras e panelas, aos adultos fantasiados de Sujeira ou Vírus, mesmo depois de eles terem retirado as máscaras de vilões. O segredo é despertar nas crianças um entusiasmo que chegue ao arrebatamento, sustentando um ar de mistério e de segredo compartilhado. Nas palavras de Huizinga, “a sensação de estar ‘separadamente juntos’, numa situação excepcional, de partilhar algo importante, afastando-se do resto do mundo e recusando as normas habituais, conserva sua magia para além da duração do jogo”.
Para a educadora Vania D’Angelo Dohme, a informalidade com que Baden-Powell colocou em prática suas idéias educacionais, utilizando elementos desafiadores para a época, pode ter prejudicado a aplicação de seu método nos dias de hoje. Eis o que ela escreveu num artigo para a União dos Escoteiros do Brasil: “Elementos inovadores e criativos ficam um pouco abafados perante tradições e costumes característicos da época em que foram concebidos, e acabam por fazer parte do seu contexto, dando uma aparência, para quem os observa apenas superficialmente, um pouco velha e ‘rançosa’. Neste panorama, o conteúdo educacional fica pouco visível à sociedade em geral e, às vezes, até pouco percebido e explorado pelos próprios integrantes.”
A maioria dos coordenadores bandeirantes não tem formação em pedagogia ou conhecimentos específicos para cuidar das crianças. Apesar de frequentarem treinamentos ocasionais, são movidos a puro ânimo e boas intenções. Muitos são bandeirantes desde a infância e passaram por todos os ramos antes de assumir a coordenação de um grupo, aos 18 anos. Eles se conhecem de outros acampamentos, identificam-se em fotos de dez anos atrás e continuam empolgados com o bandeirantismo. Outros são pais dos novos bandeirantes que, um dia, se oferecem para ajudar numa atividade e acabam ficando para compor a diretoria (secretaria, tesouraria, presidência) ou a coordenação. Todos os cargos não remunerados.
Há ainda jovens voluntários que ficaram sabendo do movimento e resolveram participar: são estudantes de direito, marketing ou administração, além de professores de geografia, comerciantes, bancários ou nutricionistas que demoram a se acostumar com o método bandeirante. Para coordenar as crianças, o requisito básico é possuir uma espécie de entusiasmo peculiar que lhes dá disposição para participar de reuniões de planejamento aos domingos de manhã, desfiles cívicos nos feriados e longas madrugadas recortando sinais de pista.
Alguns núcleos têm a sorte de possuir coordenadores com essa característica, outros não. É esse, em suma, o risco que corre o Movimento Bandeirante: perder o entusiasmo que o mantém de pé. O mesmo entusiasmo que levou as meninas inglesas a invadirem o Palácio de Cristal.
Em 1995, no pico do Jaraguá, duas bandeirantes receberam a tarefa de um coordenador faminto: atravessar o campo à noite para buscar caquis. Na reta final, perceberam que os caquis eram tomates, e tiveram que fazer tudo de novo, correndo de olhos fechados e mãos dadas, numa mistura de pavor e empolgação.
Em 1999, em Embu-Guaçu, uma “bomba-relógio” teve que ser desarmada pelas equipes, que quase atingiram a histeria coletiva à medida que o tempo se esgotava.
Em 2001, bandeirantes chegaram sozinhos até a rodoviária paulistana, guiados por uma bússola e uma carta de navegação.
No acampamento de São Bernardo não houve nada parecido. Ao contrário, houve dispersão e desatenção. Em meio a um jogo de bases, duas fadinhas fugiram para ir ao banheiro e não voltaram mais para suas equipes. Uma B2 impaciente pediu para uma coordenadora ler mais rápido as tarefas da base. Um bumerangue clandestino foi apreendido. Para tristeza dos coordenadores, ninguém chegou a fazer xixi nas galochas.