ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Sempre dá tempo
São necessários 23.400 segundos para entrar no ar
Cristina Tardáguila | Edição 48, Setembro 2010
O telespectador é um habitudinário. Há quatro anos, sempre por volta das oito e meia da noite, ele para um minuto para pensar no dia seguinte. A senha são os acordes eletrônicos que chamam Rosana Jatobá à tela do Jornal Nacional. Com um sotaque levemente baiano, ela falará do menos imprevisível dos assuntos, ao menos nessas latitudes: massas de ar quente que entram, frentes frias que partem, índices de umidade abaixo ou acima da média e tédios climáticos que não merecem mais do que um bocejo. Tudo muito benfeito, profissional e sintético: dura apenas um minutinho.
É quando a mente curiosa se indaga: se a saga meteorológica ocupa não mais de oito frases que se desdobram ao longo de 60 segundos, o que faz Rosana Jatobá durante o resto do dia?
Rosana chega aos estúdios da Globo em São Paulo às duas da tarde. No dia 17 de agosto, lá estava ela, rente que nem pão quente. Usava um vestido floral e um trench coat cinza, proteção contra o frio que anunciara na noite anterior. (Presume-se que um dos benefícios inerentes à profissão é nunca errar no guarda-roupa.)
Foi direto para a sala de maquiagem, onde os seus olhos muito escuros ganharam destaque com uma forte camada de lápis e sombra prata. Na boca, uma corzinha discreta e brilho. Alcançar a proporção certa entre naturalidade e artifício, essencial à função que exerce, acabara de ocupar 50 minutos de sua jornada.
Às 15 horas a apresentadora especial – assim diz o crachá – sentou-se diante de um computador. À sua esquerda, uma equipe da cobertura de cidades corria de um lado para outro. Ao fundo, o cenário do jornal Hoje era desmontado às pressas para dar lugar ao platô do Jornal da Globo. Mais à frente, Carlos Tramontina se preparava para uma entrada ao vivo. Rosana era pura calmaria.
Primeiro ela leu e-mails e acessou o roteiro do . Em seguida, discou para o meteorologista Wando Amorim, o seu Sancho Pança. Àquela altura ele já sabia que o JN exibiria um videoteipe sobre queimadas. Era o gancho do texto que ele esboçara para Rosana: “O tempo muito seco em várias cidades do Centro-Oeste e do Norte pode agravar o problema das queimadas nos próximos dias…” Rosana refletiu um instante e decidiu que gostava, mas pediu a inserção de uma frase: “…nos próximos dias. Não há previsão de chuva nestas regiões pelo menos até…”. Amorim levantaria a informação. É ele também quem repassa à equipe de arte as instruções técnicas sobre os mapas que dão suporte visual ao boletim do tempo.
As deliberações com o meteorologista avançaram até as 15h30. Num dia comum, Rosana agora telefonaria para as redações da Globo em diferentes praças, em busca de imagens relacionadas à previsão do dia – pastos calcinados pela seca, ruas tomadas por enchentes. Ocorre que justo naquele dia ela recebera um golpe duro. O horário eleitoral roubara um quarto do tempo dela no ar – 15 segundos –, menos que o necessário para ler este parágrafo.
Com o desfalque operado pelo espetáculo da democracia, Rosana teve mais folga para descer à cafeteria e conversar por quase 120 minutos sobre o trabalho com o tempo. Não se imagine que a moça não passa de uma beldade. Que é, ninguém nega. Chegou a disputar o concurso de Miss Bahia e parecia ter chances, até ser desclassificada por desmascarar uma artimanha em favor da sobrinha de Marta Rocha. Mas ela não estacionou nos louros da beleza. A uma pergunta capciosa sobre a diferença entre um ciclone, um furacão e um tufão, responde bem – trata-se do mesmo fenômeno – e conta com graça que fez um curso sobre meteorologia no respeitado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, com três dias de duração.
Por volta das 17h30, de novo na redação, Rosana leu o texto que apareceria no teleprompter. Agora só faltava entrar no terninho preto providenciado pela figurinista Marli Gonçalves. A cor ajudava a disfarçar os quatro meses da sua gestação de gêmeos.
Quando chega ao estúdio 3, às 18 horas em ponto, ela se posiciona junto a um painel verde em que Amorim rabiscou um mapa do Brasil. Respira fundo para se sentir segura. O câmera Oswaldo Secco está a postos, e também Marli. Marcelo Rocha, o diretor, cuidará de atender aos padrões de jornalismo da casa. É um homem exigente. Na primeira tentativa, Rosana bate o bico do sapato no painel e prejudica a clareza do áudio. Na segunda e na terceira vez, estoura o cronômetro. Na quarta, troca um estado por uma selva: “Rosana, é Roraima e não Amazônia”, avisa o diretor. Na quinta vez, saiu. Mas não demorou: 15 minutos.
“O tempo muito seco em várias cidades do Centro-Oeste e do Norte pode agravar o problema das queimadas nos próximos dias”, informa a apresentadora, andando quatro passos para a direita. “Não há previsão de chuva nestas regiões pelo menos até segunda-feira. Amanhã, os índices de umidade podem ficar abaixo de 20% à tarde entre Mato Grosso e o Acre. Chove forte entre o Pará, o Amapá e Roraima.” Rosana faz gestos de aeromoça para o painel verde, sobre o qual o telespectador – mas não ela – vê projetado o mapa do país: “Chuva rápida apenas no extremo Sul do país e do litoral da Bahia ao do Rio Grande do Norte.”
Ela gira de leve o ombro e inicia um vagaroso deslocamento no rumo oposto, completado com três passos para a esquerda: “Mínima de 8 graus em São Paulo, com sensação térmica de apenas 3 graus. Máxima de 35 graus em Rio Branco.” Apontando no ar para absolutamente nada – o quadro de temperaturas está num monitor a metros de distância –, conclui: “Nos próximos dias, o tempo continua instável em Maceió. Em Curitiba, São Paulo e no Rio, a temperatura sobe lentamente.” O sorriso meio Monalisa não se desarma em nenhum momento, nem mesmo ao falar do temporal no Pará.
Terminada a função às 18h15, agora é esperar o aval das instâncias superiores. “O Bonner tem que aprovar”, diz Rosana. Para ela é sempre uma tensãozinha. É comum que o chefe do JN peça regravações. Recentemente mandou trocar “secura” por “tempo seco”. O imprimátur bonneriano virá às 20 horas.
Enquanto isso, Rosana grava o quadro meteorológico do SPTV. Depois ela se dedica às vicissitudes climáticas do dia seguinte. Amorim já mastigou os dados meteorológicos e engatilha a previsão para o Globo Rural diário, às seis e pouco da manhã. Quaisquer que sejam os desígnios de São Pedro, eles estarão prevenidos.
Eram 20h45 quando a jornalista deixou a emissora. Havia mobilizado seis funcionários e cumprira quase sete horas de trabalho para preencher com sete frases os seus 45 segundos no ar.