ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Sequência de saltos
Um solista brasileiro no tradicional Balé Mariinsky
Gustavo Zeitel | Edição 167, Agosto 2020
Os holofotes do Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, na Rússia, buscam o fundo do palco. Victor Caixeta, de 21 anos, sai da coxia esquerda e se apresenta à plateia com o corpo besuntado de tinta dourada. Ao encarnar o Ídolo de Bronze, personagem do balé La Bayadère, o jovem enfrenta, naquela noite de 12 de março, um desafio particular: ter de levar o público ao delírio em dois minutos e dezenove segundos. “É muito mais difícil do que dançar o papel principal. Não tem como construir um personagem”, diz.
Caixeta é o primeiro brasileiro a ser contratado como solista pelo Balé Mariinsky. O prestígio de uma das companhias de dança mais importantes do mundo é proporcional à exigência depositada nos bailarinos. “Preparei a coreografia em uma semana. Não estava esperando. Esses solos normalmente são atribuídos aos bailarinos de menor estatura”, afirma Caixeta, que mede 1,86 metro.
Com agilidade, ele constrói uma sequência de saltos. É necessário ter precisão com os ângulos: oito integrantes do corpo de baile movimentam-se simultaneamente. No cenário, observa-se um templo indiano sustentado por colunas levemente abobadadas. Bayadère é a tradução francesa para devadássi, nome dado na Índia às jovens dançarinas que se dedicavam por toda vida a um templo e à adoração de um deus (em Goa, antiga colônia portuguesa, eram chamadas “bailadeiras”).
É nesse ambiente religioso que se passa a trama do balé – musicado por Ludwig Minkus e coreografado por Marius Petipa (que também assinou o libreto com Sergei Khudenov). A dançarina Nikiya apaixona-se por Solor, um jovem guerreiro, e o casal jura se amar eternamente. Solor, porém, quebra a promessa, quando Rajá oferece a ele a mão de sua filha Gamzatti em casamento. Eis a tragédia. O Ídolo de Bronze, vivido por Caixeta, simboliza a espiritualidade do local e foi seu último papel antes da pandemia.
Fazia três anos que Caixeta não vinha ao Brasil. Com o avanço da Covid-19, o bailarino decidiu deixar São Petersburgo e se reunir à família em Uberlândia, onde nasceu. “Logo que cheguei, senti um choque cultural. O balé aqui é visto como atividade extracurricular”, diz Caixeta, na sala de estar da sua casa em Minas Gerais, durante a entrevista via internet.
Ele conta que sua primeira infância foi bastante difícil. Criado pela mãe e pela avó, Caixeta começou sua história no balé tardiamente, aos 12 anos. “Entrei em um projeto social da cidade, onde tínhamos que fazer todas as atividades, inclusive balé. A professora Guiomar Boaventura me viu dançar e me deu uma bolsa na companhia Vórtice”, lembra.
O adolescente executou um voo rápido. Três anos depois, foi o mais jovem bailarino a disputar a edição do Prêmio Lausanne, na Suíça, onde os especialistas garimpam talentos.
As imagens do campeonato são esclarecedoras. Vemos um menino de aparência serena esperando a autorização do diretor para iniciar o Solo para Diego, uma coreografia de Richard Wherlock com música de Mikis Theodorakis. A apresentação mistura elementos da dança contemporânea e do balé clássico. Caixeta faz giros de corpo e cabeça com muita exatidão e consegue manter o eixo de equilíbrio em brevíssimo développé (momento em que o bailarino estica uma das pernas bem alto e para frente).
Ele foi classificado entre os finalistas e saiu do concurso com “dezoito bolsas de estudos”, conta. Optou por uma companhia no Canadá, onde viveu uma grande decepção. “Descobri que a técnica russa não era o foco deles. Também vi outras crianças muito talentosas. Foi difícil.”
Em 2016, o jovem mudou-se para a Escola Estatal de Balé de Berlim, onde foi bem acolhido, e no ano seguinte deu um passo largo, ao decidir participar de uma competição na Rússia. “Briguei com a minha escola, escrevi um texto dizendo que iria por iniciativa própria.” Na mesma época, sofreu com uma fratura de estresse no pé. “No quarto onde eu fiquei, em Moscou, aplicava injeções em mim mesmo.”
O esforço valeu a pena. Já na primeira fase da 13ª Competição Internacional de Balé de Moscou, o diretor do Balé Mariinsky, Yuri Fateev, chamou o brasileiro para um jantar. Na sobremesa, Caixeta já estava com o contrato assinado.
O Balé Mariinsky, fundado nos anos 1740, é uma das instituições mais importantes e conservadoras do mundo da dança. Não costuma aceitar estrangeiros, e as montagens sempre buscam dialogar com as tradições. Ao se mudar para a Rússia, em 2017, Caixeta teve de enfrentar a xenofobia do público e, sobretudo, dos colegas. “Faziam comentários em russo muito desagradáveis na coxia. A crítica, em um primeiro momento, não aceitou ver estrangeiros como solistas.”
Seu primeiro treinador foi Gennady Selyutsky, uma celebridade no país, que só se afastou do Mariinsky em 2019, aos 81 anos, deixando em seu lugar o discípulo Viktor Baranov. No balé russo, os treinadores são como gurus, que caminham lado a lado com o aluno, em profundo exercício pedagógico. Apesar disso, a solidão foi o primeiro desafio do rapaz em São Petersburgo. “Na Rússia, mesmo tendo apenas 17 anos, tive que me virar sozinho.”
Não tardou para o brasileiro assumir papéis importantes. Em 2019, deu vida a Basílio em Dom Quixote. Neste ano, realizou o sonho de encarnar o protagonista de Romeu e Julieta. “Para que fosse amor à primeira vista, eu e minha partner, May Nagahisa, ficamos separados nos bastidores. Na cena da minha morte, eu sentia as lágrimas dela caírem em mim.”
No Mariinsky, Caixeta treina todos os dias, a partir das 11 horas. Após o almoço, participa dos ensaios, que se estendem até a noite. A companhia exige que os bailarinos mantenham o padrão corporal prescrito pelo balé e 72 kg, no máximo. Os espetáculos de dança acontecem de terça a domingo, dia de sessão dupla. Caso esteja escalado para o programa do dia, o bailarino, geralmente, não comparece aos ensaios. “No meu tempo livre, vou à fisioterapia ou ao spa. Mas também gosto de sair com os meus amigos”, ele diz, e ressalta: “Tenho que ser uma pessoa normal, às vezes.”