Serra e a favela na serra
O governador quer tirar os ocupantes de uma das poucas matas paulistas que sobraram
| Edição 5, Fevereiro 2007
Numa noite quente do mês passado, durante um jantar en petit comité no Palácio dos Bandeirantes, perguntou-se de supetão a José Serra qual era o maior problema de São Paulo. Ele não titubeou na resposta, que surpreendeu seus convivas. Não, não era a segurança pública. Nem os presídios. Nem mesmo o desemprego. “São as favelas na Serra do Mar”, disse. Até tomar posse como governador, menos de quinze dias antes, ele nem sabia que havia favelas ali. Ou melhor, sabia da existência daquelas que estão fincadas no sopé dos morros desde, mais ou menos, quando padre Anchieta subiu a serra pela primeira vez. Não tinha idéia de que há em torno de 40 mil pessoas vivendo – na ilegalidade e em condições mais do que precárias – num dos raros santuários de mata atlântica no estado.
A má notícia fez o governador perder o sono (o que lhe é fácil) e acordar bem cedo (o que é raro). Despertou sem despertador e telefonou para o secretário da Habitação, o engenheiro Lair Alberto Krähenbühl. Disse-lhe que fizesse uma pesquisa com os moradores das favelas. Para saber de onde vieram, quem são, se e no quê trabalham. “São informações essenciais para que possamos tirar essas pessoas de lá”, disse.
Krähenbühl botou uma equipe de pesquisadores em campo. Conseguiu também com que a polícia realizasse um trabalho de espionagem nas áreas recentemente ocupadas por barracos. Os dados de que dispõe ainda estão incompletos. Mas ele já sabe um punhado de coisas – todas alarmantes. Por exemplo, que a instalação de barracos na serra se acelerou brutalmente nos últimos tempos. Desde 2005, dobrou a população favelada do Parque Estadual da Serra do Mar, sobretudo nos arredores de Cubatão. Haveria hoje algo como 13 mil famílias instaladas em zonas de mata nativa.
Outro dado: a criminalidade é rompante nas novas favelas. “Há tráfico de drogas pesado e um contrabando para lá de esquisito”, diz Krähenbühl. Por “esquisito” entenda-se que a mercadoria chega em grandes quantidades, vinda do porto de Santos, é dividida em pequenas porções nas favelas e delas segue para a capital, onde é redistribuída. A maioria dos moradores da serra trabalha em Cubatão. Quando encontra trabalho, é no setor informal. Os novos favelados, em resumo, são gente paupérrima, que se submete a morar no meio de criminosos, em casebres sem água, esgoto e gás encanado.
Por fim, há o problema dos acidentes. Algumas das novas ocupações, como a de Pé de Galinha, ficam junto a viadutos de rodovias – no caso, no entroncamento da Imigrantes com a Padre Manoel da Nóbrega. “As construções, que são frágeis, podem provocar erosões junto aos alicerces, colocando as estradas em risco”, disse o secretário da Habitação. “No limite, as favelas podem interromper o tráfego do maior corredor de exportação do Brasil, a Imigrantes”, completou. Não é à toa que o governador perca o sono.
Como foi possível que a favelização tenha sido tão rápida quanto silenciosa, que cerca de 20 mil pessoas tenham se instalado na serra em apenas meia-dúzia de anos? A responsabilidade maior é dos governadores do período, Mario Covas e Geraldo Alckmin. Políticos, em geral, não gostam de mexer com favelas. Tanto que o secretário Krähenbühl desconfia de que alguns dos núcleos foram criados diretamente por vereadores de Cubatão, para neles engordar seus currais eleitorais.
Depois que as favelas se instalam, a tendência delas é crescer. A remoção fica praticamente impossível. Todo mundo é contra, dos políticos à igreja, passando pelo grosso da imprensa e pela opinião pública, que preferem os paliativos da “urbanização” à retirada pura e simples dos favelados. Não é essa a posição de José Serra. “As pessoas têm que sair de lá”, disse ele. No raciocínio do governador, a aceitação da privatização na marra seria uma irresponsabilidade, um atentado ao patrimônio natural do estado e um desrespeito aos próprios favelados.
O secretário Krähenbühl, que nos anos 90 foi secretário da Habitação do então prefeito Paulo Maluf, esboçou um plano de remoção. O projeto começa com o truísmo de que a remoção por meio da força militar é inviável (“o lacerdismo dos anos 50 acabou”, diz ele). Passa pela avaliação de que é preciso que os próprios favelados impeçam o crescimento dos núcleos (“eles devem fazer um censo, para organizar a transferência”). E termina com a pregação de que é necessário construir conjuntos habitacionais (“ninguém sai de uma casa de graça, sem a perspectiva de ir para outra melhor”).
Há dois elementos essenciais para que o plano possa ser levado a bom termo: dinheiro e política. Quanto ao primeiro item, Serra determinou que uma verba de 300 milhões de reais seja usada na remoção dos favelados e na reestatização das matas. Quanto ao segundo, o governador ordenou que seis secretarias de Estado funcionem de maneira coordenada – para saber quem são os favelados, quem os apadrinha, quais são as forças criminosas em ação na área, e quais são os interesses econômicos envolvidos na proliferação dos barracos.
Terminado o jantar, Serra fez um tour com os convidados pelo Bandeirantes. O estilo do palácio, neoclássico, é pesadão, sem graça. Reflete a época em que começou a ser construído, há meio século, num terreno da família Matarazzo, para sediar uma universidade. Na ocasião, o bairro do Morumbi era campo, com, aqui e ali, diversos bosques de mata atlântica. Hoje, no mesmo Morumbi, a pouco mais de mil metros do Palácio dos Bandeirantes, fica a favela de Paraisópolis. Ela tem mais de 80 mil habitantes e é uma das mais violentas da cidade.