“O governo Lula é de esquerda? Não dá para falar isso. Com o significado do passado, eu estaria à esquerda do PT. Desenvolvimento virou coisa de esquerda. Política econômica é quase subversivo” FOTO: J.R.DURAN_2009
Serra na hora da decisão
O espelho, as duas almas, os três Eus, as pequisas, as implicâncias e os critérios que o presidenciável levará em conta para resolver se, de fato, será candidato ao Planalto
Daniela Pinheiro | Edição 37, Outubro 2009
Sentado de pernas cruzadas num sofá na sala, enquanto acompanhava o cair da tarde pela ampla janela do seu apartamento que dá vista para uma colina do Pacaembu, Fernando Henrique Cardoso explicou como José Serra desistiu de ser candidato ao Planalto:
Ele queria sair, estava bem nas pesquisas, mas o Alckmin não recuava e ameaçava rachar o partido. Era um domingo, e na terça, algo assim, deveríamos bater o martelo. O Serra passou o fim de semana inteiro no telefone, vendo pesquisas e se encontrando com gente. Ele adora uma reunião, acho que é resquício do movimento estudantil. Na véspera, veio aqui, à noite, e ficou sentado ali, naquela poltrona. Eu e a Ruth aqui, neste sofá. Falei pouco, até porque ele fez a maioria das perguntas à Ruth. A conversa se arrastou, não acabava, e ele, cada vez mais angustiado, não decidia. Até que, meio em voz baixa, disse que sairia candidato.
Na manhã seguinte, Fernando Henrique falou ao telefone com o senador Tasso Jereissati, presidente do Partido da Social Democracia Brasileira, que lhe disse não ter tido nenhuma notícia do recém-candidato. “O tempo passou e, pouco antes do anúncio oficial, o Serra me ligou. Falou que tinha desistido, que já tinha avisado o Alckmin, e que não iria à cerimônia de anúncio do nome dele”, contou o ex-presidente. “Aí ele ligou de novo, para falar que a Verônica, a filha dele, tinha achado errado avisar o Alckmin direto, que ele deveria ter ligado primeiro para o Tasso.”
José Serra optou por concorrer ao governo de São Paulo num cenário no qual, segundo projeção do Datafolha, chegaria ao segundo turno na disputa pelo Planalto com oito pontos percentuais atrás de Luiz Inácio Lula da Silva. Nas simulações em que o candidato tucano era Geraldo Alckmin, o presidente seria reeleito já no primeiro turno.
Para explicar a desistência em 2006, um amigo de mais de duas décadas do governador paulista lembrou o poema “Se”, no qual Rudyard Kipling indaga Se és capaz de arriscar numa única mão de cartas/ tudo quanto ganhaste em toda tua vida… “Pois bem”, disse o amigo, “o Serra é um homem que não aposta sua carreira numa mão de cartas. Ele é diferente do Fernando Henrique, que pôs todas as suas fichas no Plano Real, e do Lula, que arriscou sua presidência numa política para os pobres.”
O amigo contou ainda que “Serra sentiu o golpe de 2002, e não se lançou de novo porque não tinha certeza em qual chão estava pisando”. Naquele ano, ele chegou ao segundo turno contra Lula, mas sua candidatura desmoronou bem antes. Entre outros motivos, porque Serra hesitou entre defender ou tomar distância do governo, àquela altura altamente impopular, de Fernando Henrique, no qual fora ministro. Tasso Jereissati, diante da impossibilidade de ser ele próprio o presidenciável do PSDB, apoiou um adversário, Ciro Gomes, dividindo os tucanos nordestinos. E houve disputas entre seus dois marqueteiros, Nizan Guanaes e Nelson Biondi, que quiseram, de maneiras diferentes, recriar a sua imagem pública.
Quatro anos depois, ao sentar-se à mesa no restaurante Massimo, em São Paulo, para o jantar dos chefes do PSDB para escolher o candidato do partido, Serra intuiu que aquela turma não era bem a sua – e seria derrotado outra vez se insistisse em concorrer. Estavam no jantar Aécio Neves, Tasso Jereissati e Fernando Henrique.
Numa pesquisa de agosto passado do Datafolha, Serra tinha 37% das intenções de votos e era seguido de longe por Dilma Rousseff, com 16%. Ele cumpria o roteiro de candidato: viajava pelo Brasil, fora ao Nordeste comer buchada de bode, homenageara o sanfoneiro Luiz Gonzaga, articulava candidaturas de correligionários, trocava chamegos públicos com Aécio, evitava críticas ao presidente Lula e concentrava as ações do governo paulista em obras com data de inauguração marcada para as vésperas da eleição do próximo ano. Mas, ao contrário de Dilma Rousseff, Ciro Gomes e Marina Silva, ainda não decidira se concorrerá.
“Antes de decidir, ele ouve bastante gente, mas leva mais a sério as mulheres”, explicou Fernando Henrique, agradecendo o café que a empregada lhe trouxera. “Como o Serra é muito competitivo, qualquer conversa dele com um homem tende a se tornar um embate. E com as mulheres ele acha que não tem competição.”
O ex-presidente acha que essa característica vem da infância: “Parece que ele foi uma criança cercada de mulheres que o paparicavam. E é fato que a sua vida foi marcada pela interlocução feminina. A madre Cristina foi essencial na formação dele. Conversava bastante com a Maria da Conceição Tavares e a Liana Aureliano, sempre falou mais com a Ruth do que comigo – não reparou como ele ficou destruído quando a Ruth morreu? –, com a Marta Suplicy, com a Soninha, com a Cosette Alves, com a Verônica.”
Vicencia Marin, uma senhora baixinha e espevitada de 63 anos, é uma das mulheres com quem Serra conviveu na infância. Primos, filhos únicos, ele quatro anos mais velho do que ela, foram criados como irmãos. Para a família, eram Zé e Bidu. “Preciso falar antes com o Zé”, disse Bidu ao ouvir o pedido para entrevistá-la junto com sua mãe, Teresa. Uma semana depois, elas me receberam na portaria do prédio onde Bidu mora, no Jardim Paulista (“Desculpe, é dia de limpeza, não dá para subir”), sentaram lado a lado num sofá da recepção, e a prima anunciou: “O Zé me disse para ser espontânea e contar coisas da nossa família.”
Na beira de completar 90 anos, Teresa é forte e se veste com apuro. Tem os mesmos olhos do sobrinho político, e fala dele com emoção e orgulho. “A Serafina e o Francesco se casaram numa cerimônia linda, tocaram charamela, dançaram tarantela, ai, me arrepio só de lembrar”, disse, com forte sotaque calabrês. Um ano depois, nasceu José Serra. A família morava na Mooca, o bairro dos imigrantes italianos, numa casa de apenas um quarto, que o filho dividiu com os pais até os 4 anos de idade, quando foi transferido para a sala.
Bidu e Zé passavam o dia na casa da avó materna, Carmela, calabresa nascida na Argentina, que foi a maior referência afetiva de Serra na infância. No livro de entrevistas O Sonhador que Faz, no qual conta sua vida, ele diz da avó: “Conversávamos muito, trocávamos confidências. Oferecia-me um amor sem tutelas.” Na casa dela, ele almoçava, brincava e fazia tarefas escolares, cercado por tias e vizinhas, além de Serafina e Bidu. “Tudo o que ele queria a gente fazia: uma comida, uma brincadeira, um bolo”, disse a tia Teresa, logo acrescentando: “Mas ele nunca impôs nada.”
Quando Bidu tinha 5 anos, o primo Zé tomava-lhe as capitais do mundo. “Ele também me fez decorar o nome científico da Cibalena”, contou. “Até hoje me lembro: dimetilaminofenildimetilpirazolona. E ele nem era hipocondríaco ainda.” Ao que a tia Teresa atalhou: “Bidu, para! Ele não é hipocondríaco. Ele era precoce. Sempre foi um crânio.”
A comida de Serafina e do filho era preparada em separado. Mãe e filho não comiam alho, cebola e pimentão. “Por isso, o Zé não come nada disso. Meu tio, pai dele, morreu de câncer no intestino; ele também nunca digeriu bem essas coisas. Tem o estômago como válvula de escape, somatiza tudo no estômago, sabia?”, contou a prima. “Bidu, para!”, interrompeu tia Teresa. “Não é nada disso. Isso a mamãe sabe: era que ele não gostava e pronto.”
Segundo elas, Serra era bonzinho em casa, barulhento na escola e briguento na rua. Bidu se lembrou da ocasião em que ele desafiou um professor, conhecido como “Porquinho”, a resolver uma equação, e ele não conseguiu. “O Zé sabia mais que os professores. Uma vez, ele disse que o livro estava errado, e estava mesmo! Ai, dá até vontade de chorar”, disse Bidu. Seu rosto enrubesceu e lágrimas borraram a maquiagem.
Aos 11 anos, Serra e os pais se mudaram para uma casa, onde o menino teve um quarto só para ele e o que mais queria: uma escrivaninha. A ex-inquilina, uma cigana contrariada por ter que deixar a casa, contou Bidu, rogou uma praga para a nova proprietária. “Ela disse: ‘Você nunca vai ter sorte nessa casa.’ E minha tia Serafina depois tropeçou, caiu, quebrou o pé num degrauzinho e a vida dela nunca mais foi a mesma. Foram seis meses engessada, um ano de cama e cirurgias até o fim da vida.”
Chegara a hora de Serra retribuir o afeto feminino. “Você não imagina o carinho do Zé com ela”, disse Bidu, novamente derramando lágrimas. “Era minha avó com hérnias horríveis, minha tia engessada, e ele ao lado da cama o tempo inteiro, fazendo tudo para elas.” Tia Teresa fez coro nas lágrimas e elogios: “Ele é assim: ajuda todo mundo. Em doença, então, nem se fala. Compra tudo com dinheiro dele. Mas emprego, ele não dá não.”
Francesco quis que o filho o ajudasse no Mercado Municipal da Cantareira, onde tinha uma barraca de frutas, mas Serafina insistiu para que ele só estudasse. A relação entre pai e filho era “distante e fria”, nas palavras de Bidu. “Ele era imigrante, meio rígido, não tinha senso de humor, mas era um homem muito correto, trabalhador e pontual.”
A prima Bidu começou a contar que “o Zé era o galã das meninas, olho verde, lindo. Ele tinha uma namorada, o grande amor da vida dele, a…”. E foi interrompida pela mãe, brava: “Ô Bidu, pode falar isso em entrevista?” A prima hesitou e prosseguiu: “Ele era lindo, galanteador, cantava Nat King Cole no ouvido das meninas, tipo o Raj, da novela, sabe?”
Egydio Bianchi, ex-presidente dos Correios, que conheceu Serra aos 14 anos, e com quem cursou o colégio e frequentou as matinês dançantes do Clube Americano, guarda a mesma impressão que Bidu: “Ele era um sucesso, bom dançarino, só namorava garotas bonitas. Insinuante e charmoso, era o que a turma chama hoje de mulherengo.”
Na adolescência, moleques da Mooca passaram a se referir a Serra como “aquele que quer ser presidente do Brasil”, disse Bianchi. “Ele era um pouco precoce. Andava com biografias de Hitler e Mussolini debaixo do braço e, se não me engano, andou lendo O Capital no ônibus para Vila Bertioga. Tinha gente que o achava pernóstico; era uma coisa que ninguém fazia.”
Perguntei a Bianchi, que veio a militar com o colega na Ação Popular, se alguma característica pessoal do adolescente Serra se havia mantido intacta até hoje. “Ele já tinha essa coisa de implicar”, respondeu, rindo. Deu como exemplo “o Juribino, que era um ótimo dançarino de rock’n’roll, e o Serra pegava no pé dele por ser muito feio. Perguntava como eu podia ser amigo daquele cara frívolo, que tinha aparência desagradável. Implicava com o Juribino e comigo, que me dava com o sujeito”. Anos mais tarde, quando precisou de um nome de guerra na AP, Serra batizou Bianchi com o nome verdadeiro do Juribino, Adilson.
Bidu havia contado que o primo implicava com ela, dizendo que tinha almofadas demais em casa e que usava muitas bijuterias. A conversa não foi adiante porque tia Teresa cortou: “Não tem isso, ele só fala coisa boa.” E virando-se para mim: “Minha filha é como criança, é muito espontânea, fala sem pensar.” Quando o assunto passou a ser a imagem pública de Serra, Teresa se irritou: “Não é nada disso, ele não é antipático. Ninguém sabe a imagem real dele, como ele é. Ele só não tem tempo, é isso!”
Amigos próximos e distantes, correligionários, conhecidos, jornalistas, todos que entrevistei – exceto seus familiares – consideram Serra, de alguma maneira, implicante. Já o viram implicar com comida, com a maneira de os outros se vestirem, com o vinho servido num jantar, com a redação de um cardápio, com o frio ou o calor, com o trajeto que o motorista escolheu, com o fato de ele ir devagar ou depressa, com o que colunistas escrevem a seu respeito, com as ações de aliados e adversários, com o que o presidente Lula faz e a maneira como a oposição o combate.
A diferença é que escancara suas implicâncias, enquanto a maioria dos políticos as silencia. Além disso, enfatiza divergências, cita dados de cabeça, é professoral e grave na exposição de argumentos, bufa como um francês, mostra indiferença como um italiano, tem juízos taxativos e se esforça longamente – às vezes mais do que o razoável – para que sua opinião prevaleça, mesmo em assuntos fúteis.
Ao voltar de um compromisso na periferia de São Paulo, no ano passado, José Serra contou que havia visto Sangue Negro no sábado anterior. “Achei bom, mas o Daniel Day-Lewis é muito previsível”, disse, com desdém, sobre o ator inglês que ganhou o Oscar pela interpretação no filme. E esticou o queixo para frente, fechou os olhos, fez uma careta e, balançando a cabeça, mastigou um fumo imaginário. Não foi uma interpretação digna de um Oscar, mas imprevisível e engraçada.
Ele foi ator amador na universidade e trabalhou numa peça de José Celso Martinez Corrêa, o diretor do Grupo Oficina. “Se eu não fosse político, queria ser ator”, disse. “Nunca me senti tão bem quanto no palco, como ator.”
Na despedida, tirou cinco folhas grampeadas do meio de uma papelada e, ao entregá-las, falou: “Lê esse texto do Machado de Assis. É sobre sombras, a alma de fora e a de dentro. Tem muito a ver comigo. Li Machado quando ainda era teenager: Quincas Borba, Dom Casmurro, tudo.”
“O espelho”, que tem o subtítulo “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, é um conto que Machado escreveu em 1882, um ano depois da publicação do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, a obra-prima que inaugurou a sua fase realista. O conto se passa à noite, na pequena sala de uma casa no morro de Santa Teresa, no Rio. Tem quatro personagens, homens de meia-idade que discutem amigavelmente “questões de alta transcendência”, e um quinto, o único com nome, Jacobina.
Ao contrário de Serra, Jacobina não gosta de discutir. Mantém-se à margem do debate por pensar que “a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem como uma herança bestial”. Tem uns 45 anos e é descrito como “provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico”.
Ao discutir a “natureza da alma”, os quatro personagens divergem radicalmente. Jacobina é convocado a expor sua opinião sobre o tema. Prefere contar um caso verídico, que se passou com ele, para demonstrar que o homem não tem uma alma só, mas duas.
Os amigos fazem troça de Jacobina. Ele conta que, ao ser nomeado para o posto de alferes, quando tinha 25 anos, passou a ser tratado como um homem ilustre. Foi convidado a ficar uns dias no sítio de uma tia, e a impressão se reforçou: é enaltecido pela parenta e seus escravos como alguém de destaque. Para homenageá-lo, um grande espelho é colocado no seu quarto, no qual ele se admira, orgulhoso da farda.
Mas a tia tem que viajar, os escravos fogem e Jacobina fica sozinho. Sem os elogios, sem o reconhecimento da sua condição de alferes, ele se sente perdido. O tempo não passa, o silêncio é enorme, ele não sabe o que sentir, pensar ou fazer. Usando roupas civis, olha furtivamente para o espelho e não se reconhece. Vê uma imagem sem contornos, embaçada. Desespera-se e cogita o suicídio.
Tem então a ideia de vestir o uniforme e se postar na frente do espelho. Ao levantar os olhos, Jacobina se reencontrou. O espelho reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.
A primeira alma seria, então, interna: a maneira como a pessoa se vê. A segunda seria externa: o modo como é vista de fora, pelos outros. Para Jacobina, essas duas almas “completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades perde naturalmente metade da existência”.
Como boa parte dos contos de Machado da fase madura, “O Espelho” permite múltiplas abordagens – as filosóficas (a tensão entre a existência subjetiva e a objetiva), metafísicas (a inexistência da unidade do Ser), psicanalíticas (a fase do espelho, teorizada por Jacques Lacan) e as políticas (o nome do personagem seria uma alusão aos radicais da Revolução Francesa).
Dez dias depois, Serra falou sobre o conto. Viajara ao Rio para participar de um seminário internacional de finanças, no qual foi apresentado como aquele “que lidera todas as pesquisas na sucessão do presidente Lula”, e de um jantar. Era quase meia-noite quando entrou no carro e tomou o rumo do aeroporto, onde o jatinho do governo paulista o aguardava para levá-lo de volta.
Ao sentar, imediatamente pegou um frasco de álcool, à sua disposição no bolsão do assento do passageiro, e limpou as mãos. A gripe suína não existia ainda: há anos ele tem o hábito de lavar as mãos várias vezes ao dia, sobretudo depois de cumprimentar estranhos; quando não pode, usa álcool.
“O conto mostra que o Eu tem três dimensões”, começou, fechando a tampa do álcool. “O Eu que você é, o que é visto pelos outros e o Eu que você vê. Machado é um gênio. Imagine, no final do século XIX, sem Freud nem nada, ele chegou a essa conclusão.”
Trazendo a conversa das duas almas e dos três Eus para um plano mais prático, disse: “Muita gente chega para mim, depois de um tempo, e diz: ‘Nossa, não sabia que você era assim.’ A pessoa quer dizer que ficou impressionada positivamente. Isso ocorre porque a gente é de um jeito, acha que é de outro, e tem uma imagem social diferente. Como político, tudo isso fica exacerbado.”
Aquilo o incomodava? “Não é achar bom ou ruim, só acho curioso”, respondeu. “Acho que todo mundo tem isso, mas fico me perguntando por quê.”
Ventava bastante no Santos Dumont e Serra passava a mão pela testa como se tirasse uma franja imaginária do rosto. Antes de entrar no avião, ele comentou a sua imagem: “Às vezes, tendo a racionalizar demais. Como trabalho com a lógica das coisas, o que pode ser uma virtude ou defeito, como quiser, pode parecer arrogância. Mas, de fato, tenho muita dificuldade de entender como uma pessoa não compreende uma coisa que é lógica.”
Correligionários que colecionam pesquisas sobre a imagem de Serra garantem que a figura de antipático e arrogante foi inventada por seus desafetos e jornalistas, e encontra respaldo apenas na classe média alta. Um deputado tucano me mostrou (com o compromisso de não citá-lo: quando se trata de Serra, até os elogios são em off) uma extensa pesquisa, feita em municípios da Bahia, onde a imagem dele é excelente.
Em Itamaraju, a 700 quilômetros de Salvador, onde boa parte da população tem antena parabólica e recebe o sinal da programação de São Paulo – assim como acontece na maioria dos municípios do Norte, Nordeste e Centro-Oeste –, a terceira característica mais citada de Serra é a simpatia. Nas pesquisas nacionais, a rejeição a ele fica em torno de 30% do eleitorado, enquanto a de Dilma Rousseff bate nos 40%.
Amigos dizem que Serra é engraçado, espirituoso, fofoqueiro e – acreditem – que adora dançar. Mas reconhecem que ele não passa essa imagem. “Serra não faz concessões, não finge ser outra pessoa, mesmo que isso lhe cause prejuízo”, disse José Gregori, ex-ministro da Justiça. “Você imagina ele fazendo graça no sofá da Hebe, no programa do Faustão ou na Luciana Gimenez? Pode até fazer, mas não vai soar natural. O problema é que a política hoje passa muito por esse padrão, por essas referências.”
A economista Liana Aureliano, sua amiga há quarenta anos, disse que as reações que Serra provoca dependem do interlocutor. “Ele não dá abraços efusivos nem estende a mão com vontade, o que para mim é positivo, pois mostra que não é fingido”, afirmou. “Ele adora um debate, um embate, na verdade. Uma briga o alimenta intelectualmente, mas há quem ache isso chato. E ele, definitivamente, não aguenta burrice.”
Uma tarde, em seu gabinete na Secretaria paulista da Cultura, João Sayad avaliou que há na persona pública dele um traço que não é levado em conta: a timidez. Depois de uma reunião numa cidade do interior do estado, ele caminhava com Serra, viu um bar e sugeriu que tomassem algo. O governador disse que não entraria porque as pessoas estavam olhando demais para ele. “Imagine só, um candidato à Presidência ter vergonha assim”, disse Sayad.
Serra começou a usar o Twitter para ter contato direto e próximo com os eleitores. Em setembro, o que ele escrevia era acompanhado diariamente por mais de 100 mil pessoas. Como a troca de mensagens não é mediada, ele passou a ser chamado com frequência de “Zé” e até de “mano”. Quando escreveu que havia passado a noite ouvindo Paul McCartney e o guitarrista Santana, alguém postou um comentário sarcástico: “O.k., José Serra virou político pra-frentex, psicodélico e que gosta de Woodstock e Santana… Sei.” Minutos depois o governador respondeu: “Por que a surpresa? Também sou da geração do rock, dos Beatles e de Woodstock.”
Ele recebe cerca de 500 mensagens pessoais por dia. Perguntei por que havia divulgado no Twitter a seguinte troca de mensagens com a apresentadora de televisão Ana Paula Padrão, da Rede Record:
“Pra quem nem e-mail tinha, você está super up to date!”, escreveu ela.
“Nunca é tarde demais para aprender. A curiosidade me trouxe para cá. Gostei e vou ficando”, respondeu ele.
“Foi para ela não brigar comigo”, Serra explicou. “Porque ela é ciumenta e eu não a vejo faz tempo. E a Record está batendo em mim pesado por causa dessa disputa com a Globo. E ela fica fazendo cara de brava lendo…”, disse.
Serra escreveu sobre dezenas de assuntos no Twitter. Mas quase nunca sobre suas ideias a respeito do Brasil e sobre política. E manteve silêncio absoluto sobre sua candidatura a presidente.
Já havia escurecido quando Fernando Henrique Cardoso levantou e abriu a janela para que a fumaça de cigarro se dispersasse. Na volta para a poltrona, disse que o silêncio de Serra não é fortuito. “Ele viu as pesquisas de opinião e não falou nada sobre a crise do Senado e o Sarney de caso pensado”, contou. “Ficando quieto, ele não se confunde com os políticos, que têm uma imagem péssima, de corruptos. E aparece como um bom administrador, um governador que tem coisas para mostrar. Ficando quieto, ele deixa a briga para os outros. Veja o que aconteceu com a Dilma, que foi apresentada como candidata com tanta antecedência.”
Para o ex-presidente, Serra tem uma enorme vantagem, em termos de imagem, sobre os seus eventuais adversários. “Ele nasceu na Mooca, seu pai era feirante, foi pobre, só estudou em escola pública, foi perseguido pelos militares”, disse. “Num país de enorme desigualdade e de injustiça social, ele veio de baixo e se fez sozinho, não tem culpa ou responsabilidade pela pobreza. Você fica em desvantagem quando é de classe média, filho de militar e nasceu em Botafogo, como eu, por exemplo.”
Fernando Henrique defende que José Serra seja o candidato dos tucanos à Presidência em 2010. Reconheceu que Aécio Neves poderia ser um concorrente “mais palatável” aos eleitores. Mas, além de acreditar que Serra terá boas chances no pleito, acha que “ele é o presidente que o Brasil precisa agora. Depois de oito anos de desconversa, evasivas e conciliações de todo tipo, o país precisa de alguém firme, com clareza e diretrizes. E o Serra é rombudo”.
Mas qual política Serra defenderia na campanha eleitoral? Fernando Henrique respondeu que o conteúdo da sua plataforma e mesmo a natureza da sua Presidência devem ser definidos mais tarde. “A vitória numa campanha eleitoral depende do contexto em que ela se dá”, disse.
Um menino gordinho levantou a mão e perguntou a Serra o que ele fará se for eleito presidente da República. “Uhhhhhhn, muita coisa”, respondeu o governador, na frente da sala de aula. “Eu faria o governo federal trabalhar para o crescimento do emprego. Quem tem desempregado na família?”, perguntou ele aos 35 alunos de uma classe de 4ª série de uma escola no Mandaqui, bairro paulistano de classe média.
Desde que foi eleito prefeito, de quando em quando ele dá aulas em escolas públicas. Explicou que é um jeito de monitorar o ensino, interagir com crianças e identificar demandas da população. Naquela tarde, Serra falou duas horas, sobre os mais variados assuntos, para uma plateia que se alternava entre surpresa e dispersa. Tomou tabuada (apenas dois alunos acertaram), fez com que lessem em voz alta (“Forte! Solta a voz! Não estou entendendo nada!”, encorajou, a seu modo, um menino), definiu curiosidade mórbida (“Alguma coisa que a gente acha feio, mas quer ver”), defendeu a leitura diária de jornais, mas os criticou (“Eles publicam a notícia errada e, em vez de corrigir, dizem que eu mudei de opinião”).
Sete levantaram a mão para dizer que tinham desempregados na família. “Então, quem está desempregado quer trabalhar”, disse o governador. “E emprego tem a ver com que faz o governo federal, o de Brasília. Isso eu cuidaria muito se fosse eleito presidente. E cuidaria também da saúde e da educação.”
Quando aumentou o número dos que olhavam pela janela ou rabiscavam cadernos, Serra pediu que os iguais a ele, filhos únicos ou palmeirenses, levantassem a mão. Havia apenas uma menina sem irmãos e cinco meninos palmeirenses, contra dez são-paulinos e dezenove corintianos. Foi a deixa para que ele introduzisse o conceito de tabela, o ponto-chave da sua aula.
Ao sair da escola, um menino chamado Eron se aproximou e entregou um papel ao governador, que prontamente começou a assinar. “Não! É para você ler”, alertou o garoto. Era uma carta pedindo para que o pai, um policial militar, fosse transferido para um posto perto de sua casa. “Vou ver isso”, disse o governador. (O pleito foi encaminhado, mas Serra nunca soube se foi atendido.)
Ao entrar no carro, Serra recebeu um bilhete. Haviam ligado quatro políticos, entre eles Antonio Palocci e Tasso Jereissati. “Ai, que fome”, ele disse, lendo os nomes no papel. Com um sorriso, comentou: “Me sinto revigorado com crianças.” O carro estacionou diante de um hospital, onde o helicóptero do governo o esperava. Ele se acomodou perto da janela, juntou alguns papéis e fez um sinal ao ajudante de ordens, que prontamente lhe passou um frasco de álcool em gel. Ao comentar a aula disse: “Nunca vi alguém falar alto ao responder a uma pergunta na frente dos outros. Quando vão escrever na lousa é sempre uma letra mínima, reparou? Tudo para se proteger.”
Serra foi eleito presidente da União Nacional dos Estudantes, em 1963, quando cursava engenharia na Universidade de São Paulo. Integrava a Ação Popular, organização de origem católica, nebulosamente socialista, que não era marxista, nem revolucionária e nem defendia a União Soviética. “Ele tinha um senso de justiça exacerbado, era muito ligado às questões humanas”, lembrou Egydio Bianchi. “Não era um formulador doutrinário, ele era um cara da ação.”
Um de seus parâmetros na política era madre Cristina, uma freira católica formada em psicologia, com especialização em psicanálise pela Sorbonne, que fundara a AP com Herbert de Souza, o sociólogo Betinho. Numa entrevista à escritora Maria Rita Kehl e ao jornalista Paulo Vannuchi, madre Cristina, que morreu em 1997, contou como Serra entrou na vida pública quase que por acaso.
A gente pensou: temos de fazer o presidente da UNE. Aí fomos catar o Serra, que estava estudando engenharia. […] Descobrimos que era inteligente e que, se déssemos uma engomada nele, ele toparia. Então, a gente pegou o Serra e disse: Você vai ser o presidente da UNE. Ele disse: “O que é UNE?” Bom, UNE é isto e aquilo. “Ah, tudo bem.” E assim começamos a ganhar a UNE.
Com o golpe e o exílio, Serra abandonou a Ação Popular e a política, dedicando-se a estudar economia, primeiro no Chile e – com a derrubada de Salvador Allende – nos Estados Unidos. Sua obra acadêmica compõe-se de artigos, dos quais dois se destacaram, ambos feitos em coautoria. Um foi escrito com Fernando Henrique, em Princeton, “As desventuras da dialética da dependência”. “Eu olhava pela janela e, às quatro da manhã, a luz do quarto do Serra era a única acesa”, contou o ex-presidente. “Lá estava ele, revisando o artigo, que eu achava que estava pronto há muito tempo.” O outro foi feito com Maria da Conceição Tavares, “Além da estagnação”.
Serra voltou ao Brasil antes da anistia, em 1978, e retomou a vida acadêmica, enquanto passava por sessões de psicanálise com madre Cristina. Foi dar aula na Universidade de Campinas, onde era professor o marido de Liana Aureliano, o economista João Manuel Cardoso de Mello, um dos idealizadores do Plano Cruzado, no governo Sarney. Ele é o único a fumar no gabinete de Serra.
“Espero que não tenha vindo falar dessa baboseira de currículo”, disse Cardoso de Mello ao me dar boas-vindas. Mesmo com a resposta negativa, continuou: “Ficar nessa coisa pequena, nesse detalhezinho, nessa mesquinharia se o Serra se formou ou não se formou. O Serra não terminou a graduação, e daí? Qualquer instituição de ensino pode te dar um título, depende só dos critérios que você usa. Mas não, todo mundo quer ficar nessa discussãozinha de classe média.”
João Manuel disse que ele e Serra partilham a visão de que a política econômica é a chave para se resolver os problemas de desenvolvimento e crescimento do Brasil. “Essas taxas de juros estratosféricas destruíram parte da indústria brasileira”, disse. “O custo social e econômico disso foram milhões de empregos perdidos.”
Ele acha que os equívocos da economia remontam aos dois mandatos de Fernando Henrique. “Naqueles anos, o Brasil cresceu 2% ao ano, o que é pífio”, disse. “O Serra sempre discordou do que faziam na economia, mas ele estava na turma, o que ia fazer? Passar para o PT?”
Para ele, o objetivo político de Serra é um só: “Acabar com a pobreza. O negócio dele é esse. E é possível, se o Brasil retomar uma meta de crescimento de 7% ao ano, em duas décadas a pobreza estará erradicada.”
O autor de O Capitalismo Tardio considera, porém, que Serra tem uma visão fiscal ortodoxa. “Ele tem mania de não dar aumento para funcionário público, para não desequilibrar as contas públicas”, disse. “Aí, teve greve de delegado querendo 500 ‘merréis’ de aumento. Dá o aumento, porra. Imagina o custo social de uma greve de delegado? Mas ele não dá!”
João Manuel foi professor de Dilma Rousseff na Unicamp, no mestrado que ela não concluiu. “Ela e o Serra são muito parecidos, têm a mesma visão de mundo”, opinou. “Se houvesse uma reorganização política, eles estariam no mesmo partido. É uma gente que não existe mais na política, gente compromissada com o Brasil. Ambos podem ser enquadrados no conceito inglês de servidor público.”
Da universidade, Serra voltou à política. Em 1983, Franco Montoro o nomeou para a Secretaria de Planejamento, na qual sua marca foi a austeridade, e em seguida elegeu-se deputado. Na Constituinte, sua imagem de político de direita se consolidou por ter sido contra a nacionalização dos bancos estrangeiros e a limitação dos juros.
Foi reeleito deputado e depois senador. Fernando Henrique o nomeou ministro do Planejamento. Foi um ministro de pouca expressividade, que havia divergido do Plano Real, que domara a inflação, e continuava divergindo da equipe econômica liderada por Pedro Malan e Gustavo Franco. Ainda assim, relutou em aceitar quando Fernando Henrique o convidou, em seguida, para ser ministro da Saúde. “Achei que seria bom para o governo, para ele e para o Brasil”, disse o ex-presidente, “mas ele levou um tempão para dizer sim.”
A passagem de Serra pela Saúde lhe rende dividendos eleitorais até hoje. Nas pesquisas internas do PSDB, constata-se que os eleitores o identificam imediatamente com os genéricos. Ele é considerado o político que ajudou os doentes e velhinhos a gastarem menos dinheiro com remédios. Também conseguiu diminuir o preço do coquetel de medicamentos contra a Aids e proibiu a propaganda de cigarro na televisão.
Para implementar essas medidas, enfrentou interesses enormes e gente influente, como os laboratórios farmacêuticos, multinacionais proprietárias de patentes, a indústria do tabaco, agências de publicidade e redes de televisão. Enfrentou um inimigo de cada vez, em defesa de causas apoiadas pela opinião pública. “Eu defendo interesses gerais, e não os especiais ou setorizados”, me disse Serra. “E isso incomoda, eu sei, mas a meu ver desnecessariamente.”
O ex-deputado e empresário carioca Ronaldo Cezar Coelho, que cede o seu jatinho para Serra fazer campanha, colocou a questão em outros termos: “Ele é um político que defende interesses difusos. Não representa nenhum grupo, nenhuma facção específica. Por isso, é considerado independente, o que faz com que muitos setores não se sintam acolhidos ou temam o que ele pode vir a fazer no poder.”
No 1º andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, na centenária Estação da Luz, mais de vinte políticos aguardavam a inauguração da exposição sobre Gilberto Freyre. Ali, estavam Fernando Henrique, o prefeito Gilberto Kassab, Andrea Matarazzo, o presidente do PSDB, Sérgio Guerra, e medalhões da política pernambucana: o governador Eduardo Campos, o senador Marco Maciel e o ex-senador Roberto Freire. Como um dos elevadores demorava a subir do térreo, Serra chamou uma funcionária e pediu explicações.
“O elevador está parado no térreo para receber mais gente, e então subir”, disse ela.
“Não, não tem isso não, manda subir esse elevador do jeito que está”, ordenou ele, rispidamente.
“Já está subindo, governador”, disse a moça.
“Não está nada. O elevador está parado, olha aqui o botão de ‘parado’ aceso. Liga esse elevador”, rebateu Serra.
Observando a cena, Roberto Freire falou: “Olha para isso, rapaz! O homem está com o Brasil inteirinho aqui e fica prestando atenção no elevador. Meu Deus, ele é estressado demais.” Enquanto o governador continuava a resmungar, Freire disse: “O Serra não aguenta nada que saia do controle dele. Isso às vezes é bom, mas deve ser uma complicação da gota.”
Num canto, depois, Freire disse que estava preocupado com a polarização entre Aécio Neves e José Serra dentro do PSDB. “Estou trabalhando para convencer o Aécio que ele tem que ficar com o Serra”, disse. “Se não ficarem juntos, vão se foder, vão perder, acabou.”
Serra e Eduardo Campos subiram para o terraço do prédio do relógio na Estação da Luz, para o paulista mostrar a vista ao pernambucano. Olhando para o teto dos prédios ao redor, Serra disse: “O que fica é cultura. A coisa que o Covas fez de mais importante foi a duplicação da Rodovia dos Imigrantes. Mas ele ficou marcado pela construção da Sala São Paulo.”
Deu-se uma discussão sobre a diferença entre bode, carneiro e cabrito. Alguém lembrou, longe dos ouvidos de Serra, da piada, espalhada por Fernando Henrique, de que Serra teria visto uma vaca pela primeira vez aos 50 anos de idade. Enquanto isso, Serra reconhecia candidamente nunca ter imaginado haver diferença entre bode e cabrito.
Quando ele mesmo é o alvo de sua franqueza, Serra fica involuntariamente simpático. A um amigo que tentava convencê-lo a ser candidato a presidente, argumentando que “é fácil ganhar da Dilma porque ela não tem a menor graça”, por exemplo, ele retorquiu: “E eu tenho alguma graça?”
Quando a franqueza é dirigida a outros, ele é capaz de, depois de anos sem ver alguém, cumprimentá-lo com um espantado e espantoso: “Nossa, como você está gordo!” Ou então de dizer a uma mulher, como se fosse um elogio, que ela se veste como uma perua. Ele me contou que, ao encontrar com a filha de Orestes Quércia, uma moça muito bonita, lhe disse que ela era “a prova da evolução da espécie”. Segundo Serra, a moça “riu da piada”.
Para Regina Faria, viúva do ex-assessor da Presidência Vilmar Faria, Serra tem um senso de humor especial. Quando ela e o marido dividiram com ele um apartamento no Chile, Serra gostava, por exemplo, de dar sustos. Tanto que, quando estava grávida de sete meses, ele colocou uma cobra de papel em cima da porta do banheiro. “Quando entrei, a cobra caiu em cima de mim e tomei um tombo”, contou. “O Vilmar ficou furioso, mas o Zé não tinha noção, não conseguia ver um perigo ali”, disse. (Serra se lembra da cobra, mas não de Regina estar grávida.)
No seu apartamento, ela mostrou uma foto de Serra, aos 20 e poucos anos, de shorts jeans, camisa polo verde e chinelão. A seu lado, Regina fazia uma cara de deboche e uma outra moça parecia emburrada. “Era a Helga, com quem ele implicava porque tinha perna fina”, contou.
Regina definiu as virtudes dele na seguinte ordem: “Tenacidade, disciplina profissional, obstinação, muito exigente, não tem medo de trabalhar com gente competente e é muito generoso.” O defeito mais evidente, para ela, é classificar as pessoas à primeira vista, de modo superficial: “Ele divide as pessoas e as coloca em celas na sua cabeça. Tipo: essa é competente, aquele é burro, aquele outro é confiável, aquele não. E aí fica difícil mudar sua opinião.”
Ela lembrou a viagem entre Brasília e São Paulo, em 2001, num jatinho da Presidência, trazendo o corpo do marido para ser enterrado em São Paulo. “O Zé não falou nada”, contou. “Ele sentou ao meu lado e ficou 45 minutos de mãos dadas comigo. Aquilo foi muito forte, de uma profundidade que poucas pessoas conseguem ter.”
Depois de falarmos sobre outros assuntos, perguntei qual ela achava ser a maior diferença entre Serra e Fernando Henrique. Novamente, ela usou a morte do marido como exemplo: “O Fernando Henrique, no enterro do Vilmar, bateu nas minhas costas e disse: ‘Não chore.'”
Verônica Allende Serra usava moletom e sandálias Croc, tarde da noite, em sua casa no bairro do Morumbi. Morena, cabelos longos que lhe dão um ar latino, tem 40 anos, trabalha no mercado financeiro e é casada com Alexandre Bourgeois, filho de um francês com uma brasileira. Têm três filhos: Antonio, de 6 anos, Gabriela, de 2, e Francisco, de 10 meses. Outra filha, que havia nascido com um problema congênito, morreu aos 3 meses de vida.
(A prima Bidu contara que, graças a um tratamento de fertilidade com o médico Roger Abdelmassih, Verônica pôde ter as duas últimas crianças. Quando Bento XVI esteve em São Paulo, Abdelmassih pediu para que Serra o incluísse no encontro privado com o papa, e foi atendido. “Imagina agora, que o médico foi preso”, disse Bidu, “o Zé não pode ouvir falar o nome dele.”)
“Ele está rindo mais, você não acha?”, perguntou Verônica. Havia meses, Serra se submetia a um tratamento dentário que mudara seu sorriso. Os dentes frontais da arcada superior foram alinhados e o recuo gengival foi recapeado com uma fina camada de resina. Ou seja, não havia mais motivo para que chargistas o retratassem como Nosferatu. O governador me dissera que apenas havia trocado de pasta dental e arrumado uns “dentes de baixo”.
Sentada na cabeceira de uma mesa de vidro, de lado para um grande espelho, para o qual olhava às vezes e ajeitava o cabelo, Verônica admitiu que o pai tem uma imagem pública bem diferente da privada. Mas acrescentou que um político deve se comportar exatamente dessa maneira. “Quando o assunto é sério, a reação deve ser séria”, disse. “Não é do feitio dele ficar fazendo analogias engraçadas no meio de tragédias, ou dar exemplos tirados do futebol, como se faz por aí.”
Segundo ela, Serra “não finge ser o que não é. O marketing dele, se é que ele faz algum, é o da absoluta sinceridade. Ele não é um entertainer, é um ser público puro.”
Em família, já discutiram, ela contou, como ele poderia deixar de ser tão professoral. “Ele pode até ser didático, mas o ideal é tentar usar palavras mais simples, um vocabulário menos acadêmico, mas nem por isso simplório”, disse. “Isso ele já mudou. Quando vai dar aula na periferia, ele passa vários conceitos a partir de uma historinha, tipo um key study.” Ela pensa que, como é rigoroso com as pessoas, Serra é avaliado com inflexibilidade.
Verônica tem um alerta que envia para o seu e-mail pessoal tudo o que sai na internet com a expressão “filha de Serra”. Vez ou outra lhe chegam mensagens de pousadas nas montanhas que aceitam crianças. Mas em geral, são estocadas ou críticas ao pai. Ela investigou a origem de um dos blogs que mais a atacavam, e descobriu que o provedor que hospedava a página ficava no endereço de uma empresa de um parente de Ciro Gomes.
Encontrei num domingo o filho de Serra, Luciano – que tem 36 anos e parece uma versão melhorada do ator Ben Stiller. Ele estava com a namorada, uma moça loira, magra, calada e arrumada, e o pai dela, que me cumprimentou com uma das mãos cheia de castanha-do-pará. Fomos juntos para o estádio do Morumbi, onde quase 50 mil pessoas aguardavam o início do clássico Palmeiras e Corinthians.
Chegamos na tribuna de honra com o jogo começado há cinco minutos. “Perdi alguma coisa”, perguntou Serra a Roberto Freire, e se sentou na ponta da cadeira como quem estivesse prestes a levantar e sair correndo. “Quem é esse 27? Quem é esse cabeludo?”, perguntou alto, com os olhos fixos no campo, sem esperar a resposta.
“Aaaaaaaiiiiiiii”, gritou, quando o Corinthians quase marcou um gol. “Ai, meu Deus, o medo me fez suar a mão”, disse, e deslizou a mão molhada pelo meu braço direito. Na maioria do tempo, ficava calado, os olhos grudados no gramado. Vez ou outra comentava estar aliviado por um passe errado do adversário ou uma defesa benfeita do Palmeiras. Quando o juiz anulou um gol impedido do Corinthians, abraçou o filho gritando: “Êeeeeee! Que alívio!”
No segundo tempo, aparentemente incomodado com a minha presença, Luciano cochichou algo no ouvido do pai e foi embora. Faltando poucos minutos para o final, o Palmeiras marcou um gol. Em um milésimo de segundo, Serra pulou da cadeira, deu uma gravata lateral em Roberto Freire, projetou o corpo para a frente e tirou os dois pés do chão ao mesmo tempo, levando-os para trás como se pulasse corda. Grudado em Freire, que tinha o rosto vermelho e suava, ele berrava “Goooollll” com uma expressão de alegria pura, ingênua e infantil.
“O futebol tem uma dimensão afetiva e cultural para o Serra”, explicou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, presidente do Palmeiras, em uma manhã em sua casa. É uma válvula de escape, uma ponte entre ele e os outros. É falando de futebol que ele se aproxima e quebra o gelo para falar com quem não conhece. Num estádio, ele se sente um brasileiro do povo, e é acolhido como um igual. Talvez por isso só estivesse relaxado interiormente no jogo contra o Corinthians, apesar de estar tenso até o Palmeiras marcar.
O avião do governo de São Paulo, fabricado havia mais de vinte anos, decolou e Serra enterrou os olhos em um jornal. Ele ia para Brasília, onde teria uma reunião com o presidente Lula para tratar sobre uma emenda da previdência social e a concessão dos aeroportos de Cumbica e Viracopos. Ainda com o avião embicado, eu puxei um assunto e ele, com a expressão grave, me disse: “Deixa passar a turbulência. Minha mão transpira, olha só!” E, pela segunda vez em menos de uma semana, senti a palma molhada deslizando pelo meu antebraço.
Quando a aeronave se estabilizou, ele aproveitou para despachar com os secretários. Enquanto olhava um gráfico sobre a situação da concessão da Cesp, houve nova turbulência. Ele se calou, ficou imóvel como uma estátua e só alguns segundos depois olhou para os lados procurando um interlocutor. “Tenho horror quando faz assim…”, disse mexendo a mão direita para cima e para baixo.
O almoço foi servido, mas ele devolveu a bandeja intocada. O chefe da segurança quis saber se havia algum problema com a comida. “Muito alho”, disse Serra. “Já falei um milhão de vezes e ainda me mandam coisa com alho.” Providenciaram-lhe um sanduíche de queijo de minas, que ele comeu maquinalmente.
Como o voo seria longo, pedi que contasse como era a sua relação com Geraldo Alckmin e explicasse por que desistira de concorrer à Presidência, em 2006. “Mesmo quem era simpático a mim achava que o Alckmin tinha direito a ser governador”, ele começou, pronunciando a palavra “direito” com sarcasmo. Durante quase meia hora, Serra discorreu sobre sua relação e opinião sobre Alckmin. Ao final, pediu que nada fosse publicado.
Passou a falar sobre comida. Defendeu a tese de que um cozinheiro de verdade sabe preparar qualquer prato sem usar alho ou cebola. Ele se incomoda quando dizem que suas implicâncias alimentares são manias – além de alho e cebola, não come frituras, não toma café e não digere sementes. Resolveu dar a receita de um macarrão “espetacular” para provar que entende do assunto. “Como chama a pasta dura?”, perguntou. Alguém respondeu que era grano duro. “Ah, então essa, é com essa grano duro“, continuou. “O molho leva tomate, azeite, alcaparra, já botei até gengibre. Como se chama aquela folha da moda? É rúcula, não é? Então, pode pôr também. Esse molho fica maravilhoso e não tem alho nem cebola.”
Houve quem duvidasse que ele soubesse realmente preparar o tal prato. “Posso fazer essa pasta porque sei”, garantiu, esclarecendo que aprendeu a cozinhar quando morou em Princeton. “Fazia truta ao forno, coisas com berries, banana assada com cravo e canela”, listou.
“Eu queria ir em Heliópolis com o Zidane”, disse o presidente Lula no ginásio do Ibirapuera, numa rodinha em que estavam Serra, Geraldo Alckmin e Kassab. “Mas seria demais eu ir lá só por causa dele, seria bom se tivesse uma obra do PAC para inaugurar.” Passava das nove da noite e eles aguardavam o início da cerimônia de formatura da primeira turma do curso de administração da Unipalmares, cujos alunos são em sua maioria negros. Havia uma mesa de salgadinhos e sanduíches. Garçons serviam espumante, uísque e cerveja. Serra beliscou um sanduichinho de pão branco. “Sanduíche é bom porque enche o estômago”, justificou.
Alckmin, o paraninfo da turma, avisou que, além de atrasada, a solenidade seria longa. “Na última vez que vim, saí daqui mais de uma da manhã”, disse. O presidente também estava incomodado com o horário. “Isso é hora de homem velho estar na cama”, brincou Lula.
Serra aproveitou uma brecha para falar com o presidente sobre a implantação de trens na Baixada Santista. Foi sua única conversa útil da noite. Saiu do ginásio no meio de um show de mulatas. Eram quase duas da manhã, e dali a cinco horas embarcaria para o Ceará e Pernambuco. “Nossa, hoje para mim parece que já é ontem”, comentou. Ele disse que estava com vontade de comer rosbife, “que não é tão gordo”, mas que ia ficar mesmo em jejum.
Na semana seguinte, num trajeto de helicóptero, ele falou, a contragosto, sobre as suas relações com a imprensa. Perguntei se ele achava que suas características negativas eram mais exploradas do que as positivas. “Não, não acho, mas existe um script que alguns precisam seguir”, disse. “Eu sou o cara que soprou no ouvido do Lee Oswald, entende? Tudo, acham que fui eu. O Genoíno, que era até meu amigo, disse que era eu quem estava por trás de divulgar o caso Waldomiro, um sujeito que nunca vi na vida.”
O oncologista carioca Jacob Kligerman, amigo de longa data, havia dito algo parecido: “Tem duas coisas que tiram o Serra do sério: falar que foi ele que inventou a candidatura da Marina Silva para desestabilizar a da Dilma, e que foi ele o responsável pela investigação no escritório da Roseana Sarney, em 2002, quando a PF achou aquela montanha de dinheiro”, disse.
No helicóptero, Serra fez uma concha com a mão e colocou ao lado de sua boca na tentativa de ser mais bem ouvido: “Em qualquer pesquisa, eu tenho, disparado, mais votos que qualquer um e na imprensa a minha imagem era de ser ruim de voto. Agora, inventaram que eu atropelo os outros, sei lá, ou que a ‘turma do Serra’ foi derrotada dentro do partido. Tudo isso é script. Na verdade, quem é contra mim no PSDB? O Tasso?”
O ex-deputado tucano Márcio Fortes acha que o fato de o presidente ter cerca de 80% de aprovação popular não trará dificuldades a Serra. “Quem tem a aprovação é o Lula, não a Dilma”, disse ele em seu escritório, no Rio. “O Serra terá o que mostrar, em matéria de realizações, tem uma experiência administrativa fantástica, e as pesquisas mostram que ele não passa falsidade, que é confiável.” A opinião de Márcio Fortes é a dominante no PSDB. Para os tucanos alinhados a Serra, a campanha de 2010 se dará em torno de obras e empatia, e não em torno de posições políticas e ideológicas.
Márcio Fortes tirou de uma pasta um papel rabiscado com canetas azul e vermelha. “Isso aqui é uma pesquisa encomendada pelo Planalto sobre os programas do governo Lula”, falou. “Com ela dá para ter uma boa radiografia da situação.” A pesquisa aponta que as características que os eleitores mais admiram nos políticos são competência, capacidade de administração e honestidade. “Isso é o Serra”, ressaltou Fortes. Segundo o levantamento, o Bolsa Família tem 55% de aprovação, seguido pelo Fome Zero, que nem existe mais, com 20%, e o Minha Casa, Minha Vida, com 18%. “Olha o que as pessoas querem”, interpretou Fortes. “Elas querem ter uma renda e uma casa para morar.”
Aloysio Nunes Ferreira, secretário-chefe da Casa Civil do governo paulista, resumiu assim a questão do discurso de Serra na campanha: “Quem não quer a cidade com infraestrutura, com boa escola, um sistema de transporte decente? É isso que ele terá para mostrar.”
Com esse objetivo, o governo Serra investirá 20 bilhões de reais, até 2010, no metrô e nos trens da região metropolitana. Na recuperação das estradas vicinais serão outros 15 bilhões até o fim do mandato. Nas escolas técnicas e profissionalizantes a meta é de aumentar em 100 mil o número de matrículas. “Serra tem o reconhecimento de ser um administrador completo”, disse Nunes Ferreira.
Para Fernando Henrique, não basta Serra enumerar obras ou explicar o que precisa ser feito com a economia: “A eleição do Obama demonstrou que o bom candidato é aquele que simboliza a mudança, inspira as pessoas, lhes dá uma visão de que a vida e o país podem melhorar.”
Perguntei ao ex-presidente se, como ele dissera a um conhecido comum, continuava achando que Serra tinha “paixão pela gerência”, em detrimento de uma visão abrangente do Brasil, que sensibilize os eleitores.
“Não é bem assim”, começou Fernando Henrique. “O Serra é um ótimo gestor e ponto final. Mas acho que ele é mais administrador e economista do que formulador. É mais pragmático que imaginativo. Então, ele precisaria calibrar melhor o discurso. Adianta pouco ele insistir em falar de economia, em juros, em câmbio flutuante, em Banco Central e metas de inflação. Todo mundo sabe que ele entende de economia. Seria melhor se ele explicasse que sabe o que é ser pobre, e como vai fazer os pobres melhorarem de vida. O Serra precisa formular uma política que leve as pessoas a ver um futuro.”
Na despedida, ao abrir a porta do elevador, Fernando Henrique sorriu e alertou: “Olha lá, hein, não vá me intrigar com o Serra.” Antes, sem saber que o amigo gosta do conto “O Espelho”, havia dito: “O Serra é uma alma atormentada.”
Numa noite de setembro, Serra entrou em seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes pingando colírio e contando que tinha ido ao enterro do pai do prefeito Gilberto Kassab, emendado uma maratona de reuniões e ainda teria um jantar com a colunista Dora Kramer na casa do empresário Andrea Matarazzo, para o qual estava atrasado.Ele se sentou em uma poltrona ao lado do telefone e continuou a pingar o colírio enquanto conversava sobre sua imagem, mais de um ano depois de ter me dado o conto de Machado de Assis. Dessa vez, ouviu uma lista de comentários a seu respeito feitos por amigos, aliados e adversários: mandão, implicante, bom administrador, fala antes de pensar, manipulador, tem dificuldade para relaxar, generoso, mais pragmático do que imaginativo.
“Olha, que engraçado isso”, ele falou, em voz baixa, antes de ouvir a lista até o fim. De todas as características, ele se reconheceu em apenas uma: bom administrador. “O que é mandão?”, indagou. “Se tem uma decisão para ser tomada, se há algo a fazer, eu faço, não fico contemplativo, esperando.”
Ele não se acha implicante. “Eu gosto de provocar, isso sim. Gosto de pegar no pé para amolar as pessoas. Como quando um secretário veio aqui com um sapato escandaloso, ou quando o Arthur Virgílio usou camisa preta com terno, ou o João Sayad que faz nó de gravata mole. Mas isso é brincadeira, é uma micro-obsessividade que estabelece uma relação mais pessoal.”
O que pareceu tê-lo chateado mais foi a opinião de que não é um formulador político. “De fato, não sou um teórico, mas isso não significa que não tenha uma formação teórica”, afirmou. Desculpando-se por parecer cabotino, disse que no governo Montoro foi ele quem deu as linhas do que precisava ser feito. Que a concepção do sistema orçamentário e tributário que está na Constituição foi ele quem fez. E que foi ele quem criou a política adotada até hoje pelo ministério da Saúde.
Sobre suas características pessoais, reconheceu que é tímido, “o que pode ser confundido com ser orgulhoso. Tenho muito pudor de entrar num restaurante e sair cumprimentando gente de mesa em mesa. Isso vai incomodar as pessoas, isso eu não faço”.
Ligaram pela segunda vez da casa de Andrea Matarazzo, cobrando a sua presença. “A Dora está me esperando há duas horas, vai ficar furiosa e brigar comigo”, ele disse, olhando para o relógio. Eu o havia esperado por duas horas e meia.
A relação de Serra com a imprensa é paradoxal. A identidade política dos grandes jornais e revistas é muito maior com ele do que com Lula, Dilma Rousseff e Marina Silva. Ele tem boas relações com colunistas da imprensa escrita, apresentadores de rádio e televisão e diretores de redação. Telefona para eles amiúde, faz perguntas sobre sua vida profissional e familiar, diz que está com saudades e pede conselhos. E se dá muito bem com os patrões da grande imprensa. Tudo isso se reflete no noticiário. Mas, por outro lado, Serra é um dos políticos que mais reclama da mídia, dos erros e injustiças dos quais é, ou imagina ser, vítima.
“Serra tem um grau de preocupação altíssimo com a imprensa”, disse Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S.Paulo. Ele não se lembrou de qualquer outro político que se compare a Serra nesse quesito. E deu dois exemplos recentes. Citou primeiro a invasão da reitoria da Universidade de São Paulo. Antes de começar uma entrevista coletiva, Serra perguntou se Laura Capriglione, que havia escrito na Folha reportagens com críticas à atuação do governo, estava presente. O questionamento, azedo, causou mal-estar entre os jornalistas presentes.
O outro episódio ocorreu em junho, quando Serra telefonou a Frias Filho querendo publicar um artigo no caderno Mais! sobre o aniversário da morte do jornalista Vladimir Herzog. O diretor da Folha recusou porque não era inédito. Serra ligou novamente, insistiu e sugeriu outro texto. Frias Filho descobriu que esse também já havia sido publicado e, o que é pior, no concorrente, o Estadão.
Ao voltar do exílio, Serra se tornou editorialista da Folha e ficou amigo do dono do jornal, Octavio Frias de Oliveira. “Por causa disso, Serra acha que a Folha bate mais nele, para se mostrar independente”, disse Frias Filho. “Ele tem caprichos, se considera injustiçado, não gosta de ser contrariado, mas que governante não é assim?”, indagou.
Verônica tem uma explicação sobre a atenção excessiva que o pai dispensa à imprensa: ele ainda não encontrou um porta-voz que o satisfizesse. Serra também não tem chefe de gabinete, uma figura clássica dos porões da política. “Por isso, ele acaba fazendo o fronting“, ela disse. “E se expõe demais, fica parecendo que ele quer se meter.” Ela citou o exemplo da inundação das marginais dos rios Pinheiros e Tietê, em setembro, por causa das obras de duplicação. Os jornais procuraram um ex-secretário de Marta Suplicy para comentar o caso. “Isso é justo? Ele não tem o direito de reclamar disso?”, perguntou ela.
Rumo à casa de Matarazzo, no carro (onde havia um frasco de álcool em gel tamanho família, colocado no meio do assento dos passageiros), Serra disse que o carisma político é um mito. “O carisma ganha eleição?”, indagou, retoricamente. “Então, o Lula não tinha carisma quando perdia? A imagem do Lula, há vinte anos, não era a de hoje. Era a de briguento, e agora é o cara, segundo o Obama.”
No dia seguinte, no início da tarde, Serra participou da assinatura de um convênio na área de combustíveis. Apesar de ter dormido apenas quatro horas, parecia bem-humorado. Aécio Neves havia sido entrevistado pela Folha de S.Paulo. “Não li”, ele me disse. Lembrei-me de uma antiga entrevista, na qual Serra dizia admirar a maneira como Franco Montoro lidava com a imprensa. Montoro era “imbatível” porque, quando perguntavam sobre uma notícia ruim, ele sempre dizia não ter lido.
Mas reclamou de a Folha, “curiosamente”, não ter publicado uma frase sua dizendo que ele era o “plano B do Aécio e o Aécio era o plano B dele”. Nas últimas semanas, a chapa tucana puro-sangue na eleição de 2010 era dada como certa por vários colunistas. Serra não estava tão certo. “Uma coisa é o Aécio ser candidato à Presidência, outra é ele querer ser vice, e ele pode querer ser senador”, disse.
Ele examinava uma pesquisa com eleitores do interior de São Paulo. “Olha aqui”, disse, apontando a página da cidade de Jundiaí. Diante da questão, “em qual desses candidatos você não votaria de jeito nenhum?”, Dilma Rousseff chegava a 23%, seguida por Ciro Gomes com 18% e ele, Serra, com 10%.
Serra retomou o assunto que o havia deixado desconfortável na véspera: “Andei pensando sobre aquilo de eu ser mais gestor do que teórico e não concordo. Acho que formulação e execução são inseparáveis.” Novamente se desculpou pela autorreferência, citou várias ações imaginadas e desenvolvidas por ele na prefeitura, no governo, em ministérios e na Constituinte.
A copeira e o mordomo entraram com bandejas de prata, que iam passando para que cada um se servisse. Serra colocou no prato um pouco de carne, legumes e um bolinho de batata com cogumelos. A porção era tão exígua que o fundo da louça ficou quase todo à mostra.
Perguntado como se definia politicamente, se era de direita ou esquerda, disse que o conceito ficou obsoleto: “O governo Lula é de esquerda? Acho que não dá para falar isso. Virou uma conveniência eleitoral. Mas, com o significado do passado, eu certamente estaria mais à esquerda do que o PT. Política de desenvolvimento virou coisa de esquerda. Falar de política econômica se tornou quase subversivo.”
Falava devagar e pausadamente. Um pouco de molho manchou sua gravata vermelha. Ele apertou um botão que alerta os empregados na cozinha. “Oi, você pode me quebrar um galho? Caiu um molho aqui e se não tirar agora eu perco essa gravata. Obrigado”, disse à copeira com a expressão compenetrada de quem assinava o Tratado de Tordesilhas.
Tudo com Serra é sério. É raro ele rir quando um interlocutor conta uma história. Na rua, quando é cumprimentado por desconhecidos, tem sempre o mesmo gesto: tranca os lábios, como um bebê que não quer comer mais, e faz um movimento lento de cabeça, como se quisesse encostar o queixo no peito. É um cumprimento daqueles que se vê em filmes sobre a corte de Luís XV, sem a dobra do joelho. Aí, parece lembrar que algum marqueteiro o orientou a sorrir para os populares – e sorri timidamente.
Antes de voltar à discussão econômica, ele lembrou: “A coisa mais absurda que você me disse foi que eu implicava com uma menina de perna fina chamada Helga. A única Helga que eu conheci na vida foi a Helga Hoffmann, do movimento estudantil, que não tinha perna fina e nunca morou no Chile. E falar que eu implicava com um sujeito porque era feio… Nunca teve isso. Isso não é real. Você não pode escrever isso.”
Tentei argumentar e ele quis encerrar o assunto: “Se aconteceu comigo, e eu estou falando que não existiu, logo não é real. Se não é real, não deve ser publicado.” Lembrei um outro caso, que ele também negara ter ocorrido, e depois reconheceu que, de fato, havia acontecido, mas ele esquecera. “É, isso eu não lembrava”, falou. Se ele podia ter esquecido uma coisa, podia também ter se esquecido da Helga e do feio.
Ele comentou a recente pregação de Fernando Henrique a favor da descriminalização das drogas. Acredita que o ex-presidente só pode exprimir essa opinião porque está afastado da vida pública há quase dez anos. “Um governante não pode e não deve exprimir uma opinião de médio e longo prazo que tenha um efeito imediato”, disse. “Tudo o que ele falar vai ser visto por outra ótica, a das ações dele no governo. É por isso que um governante dificilmente pode ir a um debate. Tudo o que ele falar como pensador vai ser transposto para o cenário político. Não se pode esperar que a mídia faça essa distinção.”
Serra havia terminado. Apesar da microporção, ainda sobrava comida no prato. Entre um doce com goiabada e musse de maracujá, optou pelo segundo. Depois, ele partiu um pêssego que parecia apetitoso, mas quando foi cortado estava todo marrom por dentro. “Antigamente não tinha fruta bonita por fora e podre por dentro: isso é a revolução verde”, disse.
Perguntei quais seriam os temas da campanha do próximo ano, e ele respondeu: a folha de serviços prestados de cada candidato, o peso do ataque dos adversários e, em terceiro lugar, aspectos subjetivos, como a imagem pessoal.
Em 2002, durante a campanha, perguntaram a Lula o que ele queria para o Brasil. “Quero que todo brasileiro tenha dinheiro para tomar uma cervejinha depois do trabalho”, ele respondeu. Enquanto tentava espetar uma rodela de beterraba, Serra deu sua resposta à mesma questão: “Quero que os jovens tenham emprego e perspectiva de futuro.”
E o que fará se perder a eleição? “Não vou discutir isso”, disse, balançando a cabeça. “Isso é sofrer por antecipação. Não sou masoquista. Não sei nem se vou ser candidato e já vou ficar pensando no que fazer se não ganhar?” Serra pretende decidir se concorrerá ao Planalto entre janeiro e março de 2010. Seu critério será bem simples: se tiver apoio político e boa colocação nas pesquisas, será candidato.
Houve no final do almoço uma conversa sobre amizade e amor. Ele se lembrou do escritor argentino Jorge Luis Borges, que dizia que a amizade era mais gratificante porque dispensava a convivência, enquanto o amor era escravo e possessivo. Por quase dez minutos, Serra falou sobre Borges, um dos escritores que mais admira. Citou frases, ilustrou situações que seriam perfeitamente definidas por um verso ou um pensamento de Borges. Perguntou se alguém à mesa conhecia o poema “Fragmentos de um evangelho apócrifo” e disse que, se alguém quisesse saber tu-do a respeito dele, bastava ler o texto. Depois, ele consertou: “Eu assino embaixo de quase tudo.”
Quando se levantou, constatou que o molho tinha espirrado também na camisa. Serra ficou parado, com os dois braços esticados, como se estivesse sendo revistado no portão de embarque do aeroporto, e perguntou: “E a gravata? Será que limparam? Eu gosto daquela gravata.”
No dia seguinte pela manhã, ele telefonou e falou de novo dos “Fragmentos de um Evangelho Apócrifo”: “Sou contra a parte que fala de matar, essas coisas. Mas o resto tem tudo a ver comigo.”
No fim da tarde, chegou um e-mail de Serra: “Se você suprimir os versículos 10 e 17, o Evangelho do JLB é quase perfeito. Alguns deles eu devo ter dado a ideia ao Borges em outra encarnação.”
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