CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Sertões da Rússia
A poesia de Mandelstam é publicada em cordel
Jerônimo Teixeira | Edição 193, Outubro 2022
Poeta, dramaturgo, jornalista e doutorando em literatura no Instituto de Literatura Máximo Górki, Astier Basílio, de 44 anos, teve “um alumbramento” (palavras dele) em um sebo de livros raros na Avenida Nova Arbat, em Moscou. Ele examinava edições originais de poetas que agitaram as letras russas nos primeiros anos da revolução bolchevique – e que depois seriam quase todos esmagados pela repressão do regime comunista – quando encontrou obras de Serguei Iessênin e Anna Akhmátova no formato conhecido como quarto (uma folha de impressão dobrada duas vezes, resultando em um livro pequeno). Daí veio o tal alumbramento: eram livrinhos semelhantes aos folhetos de cordel de Patativa do Assaré e Zé da Luz com que Basílio, ainda criança, se iniciou na literatura.
Em férias no Brasil, Basílio lançou, em agosto, seu primeiro livro de traduções, com nove poemas de uma das figuras mais trágicas da literatura russa, Óssip Mandelstam, que teve seu destino selado por um poema satírico sobre o ditador Josef Stálin. A singularidade desse livrinho, intitulado Sal no Machado, é seu formato. Trata-se de um folheto de cordel. Não falta nem a ilustração própria desse gênero popular, a xilogravura na capa – obra da artista paraibana Bebel Lélis, que retratou Mandelstam com um cigarro entre os dedos e o olhar perdido na distância.
Impresso em uma gráfica de Campina Grande, na Paraíba, Sal no Machado saiu sob um selo inventado pelo tradutor: Edições Samizdat. Palavra cunhada pelo poeta russo Nikolai Glazkov, samiz-dat (autopublicado, em tradução aproximada) designa os livros clandestinos que, muitas vezes copiados a mão, circulavam nos grupos dissidentes da antiga União Soviética. Basílio vê paralelos entre essa prática e o cordel: se o samiz-dat buscava driblar a censura, o cordel contornava os limites sociais impostos à poesia popular, que não era publicada por editoras tradicionais. “Eram poetas pobres, com editores pobres, publicando folhetos para leitores pobres”, diz.
Natural de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, Basílio só viveu nessa cidade por poucos meses. Cresceu em Campina Grande, onde aprendeu a versificar lendo cordel e praticando a cantoria de improviso – seu pai, trabalhador da construção civil, complementava a renda familiar como repentista. “Sou um poeta intuitivo, de herança popular”, diz Basílio. Para traduzir poetas como Mandelstam e Varlam Chalámov, ele estudou versificação – portuguesa e russa – de forma mais rigorosa.
Formado em jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba, Basílio sentiu a necessidade de uma virada profissional em 2014, quando trabalhava no Correio da Paraíba, em João Pessoa, jornal que fecharia seis anos depois. “Eu me sentia como um dinossauro escutando o assovio do asteroide”, lembra. A crise do jornalismo e um breve namoro com uma russa que estava de passagem pelo Brasil despertaram o sonho de aprender o idioma de Tolstói e Dostoiévski. Em 2017, ele afinal juntou as economias para estudar no Instituto Púchkin, em Moscou. No ano seguinte, ingressou no mestrado, já com uma bolsa que cobria seus custos básicos. Fez os estudos preparatórios em Petrozavodsk, capital da república russa da Carélia, e em 2019 retornou a Moscou. O tema de seu mestrado, concluído em 2021 no Instituto Púchkin, foi a poesia do russo exilado Valério Pereléchin (1913-92), que viveu no Rio de Janeiro.
Depois de quase quatro meses no Brasil – onde lançou Sal no Machado em João Pessoa, Campina Grande, Recife e Fortaleza –, Basílio deve voltar ao Instituto Górki neste mês de outubro. Com a Guerra da Ucrânia, ele vem sentindo a tensão no ar de Moscou, mas, concentrado na literatura, diz que não estudou as razões do conflito o suficiente para emitir uma avaliação responsável a respeito. Seu esforço tem sido para amparar a namorada russa, Arina Ankudinova, que se abalou muito com a guerra: “Ela é a pessoa mais importante na minha vida. O resto todo pode esperar.”
Um dos poemas de Sal no Machado fala justamente da Crimeia, região da Ucrânia que Vladimir Putin ocupou já em 2014. Mandelstam e sua mulher, Nadejda Yakovlevna, visitaram a região no início dos anos 1930 e viram de perto a fome causada pela coletivização das propriedades rurais imposta por Stálin. Tíbia e sem pão, Crimeia. Primavera fria, diz o primeiro verso.
Basílio tem publicado traduções de outros poetas na coluna semanal que mantém no jornal paraibano A União e em veículos como o Estado da Arte, revista eletrônica de cultura abrigada no site do jornal O Estado de S. Paulo. Mas é a Mandelstam que vem se dedicando com mais afinco. Ele define o cordel como um “cartão de visita”, anunciando o projeto de um livro maior, com pelo menos trinta poemas. Mas ainda não bateu na porta das editoras.
O cordel centra-se em versos de tema político, entre os quais tem especial relevância o poema sem título que ficou conhecido como Epigrama de Stálin (embora não seja de fato um epigrama), já traduzido para o português por Augusto de Campos. Mandelstam apresenta Stálin como um monstro de conto infantil: com dedos como “vermes sebentos” e “bigodões de barata sorrindo”, ele “bichopapoa e cutuca” (o neologismo “bichopapoar” é um achado do tradutor para verter as invenções verbais do original). Esse poema de 1933 tem sido equiparado a um ato de suicídio. O sacrifício do poeta não foi imediato: ele morreu em um campo de prisioneiros em 1938, aos 47 anos.
Mandelstam nunca publicou o poema que causou sua desgraça. Só o recitou para alguns amigos. Seu método de composição era oral: recitava e decorava os versos que estava compondo antes de passá-los ao papel. A musicalidade de sua poesia seduziu o repentista diletante: em vídeos no Facebook, Astier Basílio, à viola, cantou o poema sobre Stálin – na sua versão em português e no original russo – como uma toada nordestina. A beleza áspera de Mandelstam ganha o sotaque caloroso do sertão.
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