Olho para o sol: só resta uma curva finíssima, uma fímbria de unha. A paisagem ficou alienígena: sombras curtas num mundo escuro. O mar é roxo ILUSTRAÇÃO: IO E TE, MARIA (PRIMA ECLISSE)_ANTONIO SIDIBÈ_ÓLEO SOBRE TELA_200 X 100 CM
Sideral
O dia em que o sol desapareceu num buraco
Helen Macdonald | Edição 118, Julho 2016
Sempre que relembro o ano em que a morte se debruçou sobre meu mundo familiar e acabou com ele, não é apenas o falcão que me vem à cabeça [1]. É claro que ele está presente em todas as minhas lembranças do que aconteceu depois da morte repentina de meu pai: instantâneos vibrantes de plumagem macia, olhos pálidos, os ângulos dos ombros e das garras, o risco fino do voo da ave sobre a terra gélida e o restolho congelado. Mas também, preso a essas imagens do falcão, ao lado do rosto do pai que eu perdera, lembro do dia em que o sol se apagou, quase exatamente um ano antes de ele morrer. Um acontecimento que ainda vive naquela parte de mim onde tudo se passa no presente, como se ainda estivesse acontecendo, como se nunca fosse parar de acontecer.
Viajo com amigos para ver o eclipse. Vamos até uma cidade de ruínas chamada Side, no litoral da Turquia, onde encontramos um ponto de observação no meio de moitas de loureiros floridos e montes irregulares de areia trazida pelo vento. Na ramagem, toutinegras gorduchas, bandos delas, capturam e engolem coisas cheias de asas e pernas que extraem das flores pegajosas. Há ainda grupos de bulbuls. Vida por toda parte. E lentamente, no curso de uma hora, a lua se posiciona diante do sol. Em algum momento irá bloquear toda a luz.
Somos quatro. Três homens de tênis e camiseta especialistas em matemática e programação de computador, e uma mulher de chapéu de palha equipada com um par de binóculos e praticamente incapaz de somar uma série de algarismos simples sem cometer algum erro elementar. Essa mulher sou eu. Mas entendo de história natural: é a minha área. Aqui, me sinto feliz. Percorremos aquele lugar inculto, de pedras quebradas e mato rasteiro, e à esquerda vejo como as dunas invadiram a cidade arruinada, formando montes altos sobre paredes semissepultadas. Atrás delas, sobre as areias, uma multidão de lagartos lustrosos e cotovias-de-poupa. O canto das cotovias é muito singelo, um curto arabesco de notas que soa exatamente como o canto de um tordo ao longe. E como na Inglaterra os tordos começam a cantar em fevereiro, o som é dos mais incongruentes e evoca trilhas na floresta no fim do inverno com o vento assobiando, e não este deserto pálido cruzado por miríades de rastros de cágados.
Observo as aves, distraída, enquanto esperamos – um punhado de pessoas agrupadas sobre uma duna. Há grupos semelhantes por toda parte, alguns regulando o foco de seus telescópios em superfícies de papel branco que anunciarão o Primeiro Contato, ou seja, o momento em que uma parcela ínfima de escuridão invadir um dos lados do sol. Há um longo intervalo entre o primeiro e o segundo contato, ou seja, o momento em que o sol é completamente encoberto pela lua; durante um período prolongado há um decréscimo regular e constante na quantidade de luz que atinge a Terra. É o que está acontecendo agora.
Por um bom tempo, meu cérebro me engana. Em causa própria, me tranquiliza: não há nada errado, ele afirma. E diz que estou usando óculos com lentes reativas, por isso vejo o mundo através de um vidro discretamente tingido de escuro. É por isso que todas as coisas – as folhas longas e achatadas da grama que cobrem as dunas debaixo de meus pés, as paredes derruídas, os loureiros, o mar à frente, as montanhas atrás: tudo está sombriamente em ordem. Então me dou conta de que não estou usando óculos escuros. Travo um conflito renhido com meu cérebro enquanto o fato me atinge com a força de um braço que golpeia um teclado de piano, como num sono ruim, o equivalente psicológico de um estrondo dissonante. E estremeço. Tenho certeza de que uma hora atrás fazia um calor absurdo por aqui.
Lembro de uma anedota antiga, horrível, sobre ferver um sapo até a morte. Ponha um sapo numa panela de água fria e leve ao fogo; aparentemente o alegre anfíbio não percebe o aumento gradativo da temperatura da água e acaba morrendo. Há uma ponta do horror da história do sapo no que estou sentindo. Uma espécie de necessidade urgente de avisar as pessoas, de pular para fora da panela. Tudo está mudando, mas nossos cérebros não estão equipados para perceber coisas nessa escala.
Meus olhos dançam sobre a paisagem na busca ansiosa por familiaridade. Muitas coisas são familiares. Grupos de pessoas. Arbustos. Mar. Paredes. As formas são reconfortantes, mas o conteúdo, não. Tudo tem a cor errada, a tonalidade errada. Lembra dos filtros que trocavam o dia pela noite nos antigos filmes de cowboy? Quando eu era pequena e ia ao cinema na sessão da tarde, concluí que a noite nos Estados Unidos era diferente da noite na Inglaterra. Só muito mais tarde me dei conta de que era sempre dia, com filmagem diafragmada e recurso a um filtro azul. Então: imagine que está assistindo a uma cena noturna numa fita de cowboy filmada em tecnicolor nos anos 50. Gary Cooper está escondido atrás de um rochedo, de rifle na mão. A noite não parece estranha? Agora imagine a mesma noite em tons de laranja, em vez de azul. Tudo é pesado, dá a impressão de umidade, de estranhamento. A areia é laranja-escura, como é de fato no fim da tarde, mas o sol está alto. Estamos todos siderados pelo fulgor refratado do ponto de origem, no mar diante de nós. Não sei qual é o processo físico, mas por alguma razão o brilho branco no Mediterrâneo escuro parece, de algum modo, nítido demais. E no chão, perto de nossos pés, coisas estranhas estão acontecendo com os contornos das sombras. Onde você imagina que verá sombras mosqueadas de sol projetadas na areia por entre as ramagens – com a mesma confiança com que espera qualquer outra invariável dada do mundo –, sente-se perplexo: em meio à sombra, um exército impecável de crescentes minúsculos, centenas deles, move-se sobre a areia quando o vento balança os galhos. Os dorsos das andorinhas em seus voos sinuosos sobre as ruínas em busca de caça já não são azuis iridescentes ao sol, mas de um anil intenso.
As andorinhas soltam gritos alarmados; tento identificar a causa. Um gavião voa mais acima, deslizando céu abaixo, perdendo altura, buscando correntes termais sobre as quais pairar; no ar em rápido processo de resfriamento, todas estão desaparecendo. Conformado, o gavião toma o rumo noroeste, sempre perdendo altura.
Confiro o sol de novo, usando os óculos de eclipse. Resta apenas uma curva finíssima de sol, uma fímbria de unha. A paisagem ficou decididamente alienígena: sombras curtas, como as do meio-dia, num mundo escuro, laranja. O mar é roxo. Dá para avistar Vênus muito alto no céu, à direita.
E então, em meio a um coro de vivas, assobios e aplausos, fito o céu para ver o sol sumir, junto com o dia, e: impossivelmente, impossivelmente, acima de nós há uma faixa preta, um céu de um preto suave com um buraco no meio. Um buraco redondo, mais negro do que qualquer coisa que você já tenha visto, contornado por um anel intensamente suave de fogo branco. Aplausos? Aplausos? Tenho o coração na garganta e meus olhos se enchem de lágrimas. É demencial, realmente demencial. Adeus apreensão intelectual. Olá alguma coisa inteiramente diferente.
A totalidade é tão incompreensível para nossos mecanismos mentais que a resposta física se torna tremendamente aparente. Nosso intelecto é incapaz de apreender o que tem diante de si. Nem o escuro, nem as nuvens do poente em qualquer horizonte, nem as estrelas; só aquela extraordinária incorreção, lá no alto, que atrai nosso olhar. O regozijo não passa de terror mal disfarçado. Eu me sentia ao mesmo tempo minúscula e imensa; e nunca fui tão solitária e única na vida, e tão fundida ao grupo, tão parte dele. Uma experiência partilhada e intensamente pessoal.
Juro, não há nada que eu possa escrever que exprima tudo isto. Risível. Opostos! Rá! Convoquemos grandes oposições binárias e narrativas grandiosas para ao mesmo tempo desmanchá-las e restaurá-las. Grandes oposições binárias? Sol e Lua. Escuridão e Claridade. Mar e Terra, Respiração e Ausência de Respiração, Vida e Morte. Um eclipse total torna risível a história, faz com que você se sinta ao mesmo tempo precioso e descartável, torna incompreensíveis as tendências do mundo, como alguém tentando discutir com uma pedra o preço de uma revista sobre celebridades.
Estou tonta e minha pele formiga. Tudo desmoronou. Há um buraco no céu, no lugar onde deveria estar o sol! Preciso me sentar. Para sentir embaixo do traseiro a realidade reconfortante da areia. Ou talvez seja uma reação a um assombro esmagador. Sento no chão e contemplo o buraco no céu, e o mundo morto ao meu redor é uma perfeita visão – com suas ruínas e colunas quebradas – do Mundo dos Mortos de minha imaginação infantil.
E então algo extraordinário acontece, algo que, só de lembrar, ainda me agita o coração no peito e me tolda os olhos. Porque há uma coisa ainda mais tocante do que ver o sol desaparecer num buraco: é ver o sol ressurgir de dentro dele. Lá estou eu, sentada na praia, no Mundo dos Mortos, cercada por mortos de pé. Faz frio, e um vento desatado sopra em meio à escuridão. Mas nesse exato momento, da beirada inferior do disco descorado, negro, do sol morto, irrompe um ponto perfeito de luminosidade. Um ponto que salta e queima. É impensavelmente ardente, intoleravelmente brilhante, algo (enrubesço ao dizê-lo, mas aí vai) que é como uma palavra. E assim começa o mundo outra vez. Instantaneamente.
Júbilo, alívio, gratidão; uma avalanche de emoções. Encantamento. Ficou tudo certo, agora? Tudo refeito? Pousado num loureiro trazido à existência um instante atrás, um bulbul entoa uma saudação à nova alvorada.
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[1] Em seu livro F de Falcão, recém-lançado no Brasil, a autora conta como se dedicou ao treinamento da ave para elaborar o luto pela morte do pai.
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