ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Silêncio no tribunal
Terezinha de Jesus quer justiça
Tiago Coelho | Edição 124, Janeiro 2017
Uma pequena balaustrada de madeira separava os magistrados, vestidos a caráter, do espaço reservado ao público, numa das amplas salas de audiência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Sentada logo na primeira fila, a empregada doméstica Terezinha Maria de Jesus, de 42 anos, mantinha a coluna ereta e uma expressão grave no rosto. Era como se participasse, respeitosa, de uma missa. No ambiente solene, só se ouviam as vozes dos desembargadores, amplificadas pelos microfones.
A sessão começou pontualmente às 13 horas. Havia vários assuntos sob a responsabilidade do tribunal naquela tarde do dia 29 de novembro. Uma briga entre vizinhos. Menores infratores. Os casos se sucediam. Por volta das 14 horas, afinal entrou em pauta a questão que levara a empregada doméstica até a corte: um pedido de arquivamento do processo contra o policial militar Rafael de Freitas Monteiro Rodrigues. O PM havia sido acusado de matar uma criança de 10 anos, Eduardo de Jesus, filho de Terezinha, com um tiro de fuzil na cabeça. A morte aconteceu no dia 2 de abril de 2015, durante uma patrulha “de rotina” no Complexo do Alemão, Zona Norte carioca.
Jesus estava acompanhada de outras três mulheres que também se diziam vítimas da violência policial. Na camisa de cada uma delas, um retrato do filho morto. Ana Paula Gomes de Oliveira, mãe de Johnatha. Fátima dos Santos Pinho de Menezes, mãe de Paulo Roberto. Maria de Fátima dos Santos Silva, mãe de Hugo Leonardo. Todos jovens e negros. Acompanhavam tudo em silêncio e não chegaram sequer a trocar olhares. Mantinham os olhos fixos nos magistrados.
A mãe de Eduardo respirava ofegante. Empertigou-se na cadeira quando chegou a hora da sentença. A desembargadora Rosa Helena Penna Macedo Guita, a primeira a votar, deu ganho de causa à defesa do policial. Seus advogados alegavam que a denúncia contra Rodrigues carecia de provas e que havia falhas na narrativa do crime. O desembargador Flávio Marcelo de Azevedo Horta Fernandes acompanhou a colega. O terceiro desembargador, Paulo de Tarso Neves, votou contra, mas já era voto vencido. O processo seria arquivado.
Ana Paula Oliveira, mãe de Johnatha, sentada logo ao lado de Jesus, arregalou os olhos e levou a mão esquerda à boca como se quisesse conter um grito. Antes mesmo que a corte passasse ao julgamento seguinte, Jesus se levantou para ir embora, decidida. Os passos ecoaram firmes no piso lustroso do tribunal.
Antes de deixar a sala, falou pela primeira vez. Havia passado mais de uma hora calada. “O assassino sai impune, eu fico punida para o resto da vida.” Caminhou mais uns passos em direção aos elevadores. Parou repentinamente. As mães se posicionaram ao seu redor. O rosto dela se contorceu numa revolta incontida. “Não foi o filho deles que morreu com um tiro na cabeça. Foi o filho de uma favelada.” Apontou o dedo indicador para o alto. “Mas a justiça d’Ele não vai falhar.” Quando as quatro mulheres entraram no elevador, Ana Paula Oliveira ainda tinha a mão esquerda fechada em punho, como se tentasse segurar algo na boca, algo que sacudia seu corpo magro. Com a mão direita acariciava o ombro de Jesus.
Era final de tarde no Alemão quando o filho avisou que iria se sentar na frente de casa e esperar a irmã, que costumava voltar do trabalho naquela hora. A mãe, que estava no quarto, consentiu. Pouco tempo depois se ouviu um estrondo na rua. Jesus correu e, lá fora, encontrou uma nuvem de fumaça. O filho estava caído, inerte, no chão. Gritou por socorro, abraçou o menino, pedia que alguém o levasse para o hospital. Um pedreiro que fazia um reparo na varanda disse o que a mãe não conseguia ver: “Ele está morto.” Só então ela se deu conta do buraco na cabeça do filho, da parte do crânio no chão da sala.
Policiais que acabavam de passar por ali haviam atirado na direção de Eduardo. Quando avistou o grupo de dez PMs que já descia uma escadaria, Jesus correu na direção de Rodrigues, que, segundo ela, lhe apontava um fuzil. “Já arrancou um pedaço de mim, agora leva o resto, pode me matar também”, disse ter gritado ao policial. O caso ganhou a imprensa, as redes sociais. O governador Luiz Fernando Pezão chamou Jesus e o marido ao seu gabinete, pediu desculpas, disse que a família seria indenizada. Não era isso o que Jesus buscava.
Em seu escritório, o defensor público Daniel Lozoya explicou que o resultado inconclusivo da perícia e do inquérito policial facilitaram a decisão dos desembargadores. “A perícia não foi capaz de dizer qual dos dois policiais da linha de frente da operação matou o Eduardo. O relatório do delegado alegou que o policial que fez o disparo agiu em legítima defesa, mas com erro de execução.” Segundo o defensor, que representa Terezinha de Jesus, os policiais afirmaram ter visto uma pessoa armada que disparava em sua direção. Por isso teriam reagido. “Mas as testemunhas no local disseram que não houve troca de tiro.” Lozoya anunciou que iriam recorrer da decisão de arquivar o caso.
Logo após a morte de Eduardo, Jesus deixou o Complexo do Alemão e voltou para sua cidade natal, Corrente, no Piauí. Também tomou a decisão de enterrar o filho por lá. Visitava agora o Rio com o objetivo de acompanhar mais de perto as audiências e as investigações.
No início da noite do dia 13 de dezembro, duas semanas depois do julgamento, Jesus estava mais uma vez na Rodoviária Novo Rio. Voltava para o Nordeste e “para perto do filho”. Contou que o marido, pai de Eduardo, com quem viveu por 23 anos, a tinha deixado tão logo receberam a indenização do Estado, dividida entre os dois. Mas no Piauí, assim que desembarcasse, um novo companheiro estaria à sua espera. Na plataforma de embarque, lamentou não poder ficar na cidade até a sexta-feira seguinte. Naquele dia as outras mães, suas companheiras no tribunal, a representariam durante um ato na Cinelândia, Centro do Rio, onde mulheres de várias favelas cariocas colocariam fotografias de seus filhos mortos em uma grande árvore de Natal.