O revestimento de almofadas de plástico translúcido que evoca bolhas é a marca do Cubo d’Água FOTO: IWAN BAAN
Silhueta olímpica
A arquitetura para os jogos de Pequim é espetacular. Mas o que ela nos diz?
Paul Goldberger | Edição 23, Agosto 2008
Para entender a importância dos XIX Jogos Olímpicos para a China, basta ver onde foi construído o Parque Olímpico. Durante o primeiro boom imobiliário de Pequim — seiscentos anos antes do atual —, a cidade se distribuía simetricamente dos dois lados de um eixo norte-sul. Como ocorre em Paris — onde o Louvre está alinhado com o Jardim das Tulherias, o Arco do Triunfo e a avenida dos Champs-Elysées —, as estruturas de maior importância simbólica de Pequim sucedem-se ao longo de um eixo principal. No centro fica a antiga residência imperial da Cidade Proibida. Ao norte fica o Jingshan, um parque que cerca um morro artificial onde dizem que se enforcou o último imperador da dinastia Ming, e, além dele, a Torre do Tambor e a Torre do Sino, que por muitos séculos indicaram a hora aos moradores da cidade.
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Pelo menos duas das construções do Parque Olímpico — o Estádio Nacional, projeto dos arquitetos suíços Jacques Herzog e Pierre de Meuron, e o Centro Nacional de Esportes Aquáticos, da firma australiana PTW Architects — estão entre os projetos arquitetônicos mais inovadores do planeta. São prodígios de imaginação e engenharia que poucos países teriam a coragem ou o dinheiro para construir. Coragem e dinheiro, porém, são duas coisas que no momento não faltam aos chineses. Essas obras só puderam ficar prontas graças ao emprego maciço de operários imigrantes, extremamente mal pagos. Quando visitei o estádio na companhia de Linxi Dong, o arquiteto que dirige o escritório de Herzog e De Meuron em Pequim, ele me contou que, no auge da construção, o número de trabalhadores envolvidos chegou a 9 mil.
O Estádio Nacional já é amplamente conhecido por um bom apelido, “Ninho de Pássaro”. As paredes de concreto da arena são cobertas por uma trama externa de vigas e colunas de aço que se entrecruzam, formando um emaranhado de barras retorcidas. A trama descreve uma curva para cima e depois para dentro, projetada sobre os assentos do estádio (91 mil lugares), sustentando um teto translúcido e deixando uma abertura circular sobre a pista. O centro do teto, portanto, acima do gramado, também é aberto. A engenharia necessária para manter em suspensão tamanha tonelagem de metal é de uma sofisticação extrema: a construção pode parecer uma imensa escultura de aço, mas a maioria das vigas metálicas é estrutural, e não decorativa.
A dramaticidade do Ninho de Pássaro é ainda mais arrebatadora que a da Allianz Arena, o estádio de futebol de Munique que, em 2005, Herzog e Meuron cobriram inteiramente de placas de plástico translúcido ondulado. Boa parte do seu impacto deriva da interação visual entre a trama de aço e a estrutura de concreto por ela envolta. A parede externa dessa estrutura é pintada num vermelho vivo — um dos poucos toques de nacionalismo declarado da construção — e, quando à noite as luzes se acendem, o que se vê é um ovo imenso que repousa no seu ninho. Ao sair do estádio e contemplar o panorama de Pequim enquadrado pela surpreendente moldura das peças de aço enviesadas, o espectador pode observar o inédito efeito de uma obra de metal em grande escala.
Ao lado do Ninho de Pássaro fica o Parque Aquático, conhecido como “Cubo d’Água”, construção de linhas retas com um revestimento de almofadas de plástico transparente dispostas num padrão irregular, evocando bolhas. John Pauline, o diretor do escritório da PTW Architects em Pequim, contou-me que esse desenho nasceu do desejo de encontrar uma forma de traduzir a sensação da água. “Começamos com pequenas ondulações e vapor”, disse ele. “Pensamos em todos os estados imagináveis da água, e chegamos à idéia da espuma.” Trabalhando com a empresa de consultoria em engenharia Arup, que também colaborou no Ninho de Pássaro, a PTW desenvolveu um revestimento composto de células de vários tamanhos feitas de Etfe (etileno tetrafluoretileno). Trata-se de um plástico translúcido, próximo do teflon, tido como o material do momento entre os arquitetos. Herzog e Meuron o usaram na fachada do estádio de Munique e no teto do Ninho de Pássaro. Ele tem inúmeras vantagens de ordem prática: pesa 100 vezes menos que o vidro, transmite a luz com mais eficiência e rende melhor como isolante, o que resulta numa economia final de 30% nos gastos de energia. Além disso, as almofadas de plástico não se limitam a evocar bolhas: são bolhas de fato, formadas por películas gêmeas de Etfe com pouco mais de dois décimos de milímetro de espessura, coladas para formar uma célula que em seguida é inflada.
O grande trunfo do Cubo d’Água é menos a magia da sua técnica do que a transformação da idéia um tanto gasta de uma construção em forma de bolha numa obra arquitetônica elegante e enigmática. Os arquitetos decidiram que, para compensar a forma oval do Ninho de Pássaro, o Parque Aquático precisaria ser quadrado, e essa limitação ao uso de linhas retas parece ter impedido que a metáfora da bolha escapasse ao controle. As paredes do Cubo sugerem a espuma de sabão na porta de vidro de um chuveiro, ou talvez — já que algumas das bolhas chegam a ter 7 metros de diâmetro — na lâmina de vidro de um microscópio. E, quando se entra no grande saguão do Cubo, o padrão das bolhas do teto e a luminosidade azul-esverdeada da piscina produzem a sensação de se estar debaixo d’água, olhando para a superfície acima das nossas cabeças.
Embora a nova prosperidade da China deva muito às suas exportações industriais, para as Olimpíadas o país se contentou em desempenhar o papel inverso: em vez de promover os talentos locais, comprou a arquitetura mais futurista que o mundo tinha a oferecer. O trabalho dos arquitetos chineses foi relegado, na maioria, a uma mescla de edificações funcionais nada inspiradoras. Uma exceção é o Edifício Pequim Digital, um centro no Parque Olímpico projetado por uma firma chinesa, o Studio Pei-Zhu.
A exemplo do Cubo d’Água, o Pequim Digital beira perigosamente o exagero meio kitsch. Consiste em quatro lâminas estreitas de concreto dispostas muito perto umas das outras, em linha paralela, sugerindo uma fileira de microchips ou, talvez, de discos rígidos. Algumas das paredes têm recortes de vidro que formam desenhos lineares, com a clara intenção de evocar placas de circuito impresso — à noite, iluminam-se de verde. Ainda assim, o prédio acabado tem uma surpreendente dignidade, o que se deve em parte à escolha de materiais — as paredes são revestidas de um sóbrio granito cinzento — e, em parte, às proporções das quatro lâminas, cuja estreiteza e falta de adorno conferem ao prédio uma austeridade exatamente oposta a algo kitsch.
Pei-Zhu pode ser chinês, mas seu prédio é totalmente internacional em matéria de estilo: ele estudou na Universidade da Califórnia e trabalha tanto na China quanto no exterior. De fato, afora o vermelho do Ninho de Pássaro, existe pouco que seja tradicionalmente chinês em qualquer das construções olímpicas. A escala e a ambição do projeto constituem uma inequívoca afirmação do orgulho nacional, mas a China, estranhamente, contentou-se em fazer essa afirmação com o vocabulário do modernismo luxuoso que se pode encontrar também em Dubai, no Soho ou em Stuttgart — desenhos de uma complexidade estonteante gerados em computador, lindamente realizados em materiais de ponta. A mensagem parece clara: o que vocês fazem, podemos fazer melhor.
A primeira Olimpíada da era moderna, em 1896, ocorreu em um estádio antigo de Atenas que os gregos reformaram para a ocasião. As provas de natação foram disputadas no mar Egeu. Os Jogos Olímpicos seguintes, na Paris de 1900, sequer estádio tinham. As competições de atletismo foram disputadas nas ruas da cidade e nos gramados do Bois de Boulogne, que os franceses não quiseram desfigurar com a construção de pistas convencionais. Os nadadores, por sua vez, precisaram enfrentar a correnteza do rio Sena.
A idéia de que as cidades pudessem atrair as Olimpíadas com a promessa de belas instalações começou em 1906, quando uma erupção do Vesúvio pôs fim ao plano de realizar, em Roma, os Jogos de 1908. Os ingleses viram uma oportunidade no infortúnio da Itália, e se ofereceram para construir um estádio para 150 mil pessoas, em Shepherd’s Bush, Londres. O Estádio da Cidade Branca, como era chamado, foi o primeiro a ser construído especialmente para uma Olimpíada. Logo, vários países passaram a competir abertamente pelo direito de hospedar os Jogos. (O que é o ideal olímpico, afinal, senão a rivalidade entre as nações mal disfarçada de harmonia internacional?)
O apogeu do triunfalismo foi, notoriamente, Berlim em 1936. Hitler, que ainda não estava no poder quando a cidade obtivera o direito de hospedar os Jogos, decidiu aproveitar para exibir o poderio do regime nazista. A arquitetura era uma parte tão importante do seu projeto quanto as medalhas de ouro a conquistar, embora seu gosto tendesse para o bombástico e o ultra-excessivo. Demoliu um estádio em perfeitas condições e com pouco uso, e construiu no lugar o maior estádio do mundo. Em seguida, edificou uma Vila Olímpica com mais de 50 hectares, em que 140 prédios se distribuíam na forma de um mapa da Alemanha.
Depois da II Guerra Mundial, os países organizadores vêm evitando esses exageros de eloqüência, mas geralmente aproveitam as Olimpíadas para conferir uma medalha de ouro a um ou outro dos seus arquitetos mais importantes. Primeiro foi a inovadora cúpula de concreto de Pier Luigi Nervi, que parecia flutuar acima do palácio de esportes, que ele projetou para as Olimpíadas de Roma, em 1960. Depois, o ginásio arrebatador e escultural projetado por Kenzo Tange em Tóquio, em 1964. Em seguida, o estádio coberto de Günther Behnisch e Frei Otto para Munique, em 1972. Para as Olimpíadas de Barcelona, em 1992, o arquiteto espanhol Santiago Calatrava foi contratado para construir uma torre de comunicações que servisse de símbolo para os Jogos. O projeto angular e de aparência precária que Calatrava produziu, inspirado por um braço segurando a tocha olímpica, valeu-lhe fama internacional e permanece como uma das edificações mais visíveis da cidade.
A Olimpíada de Barcelona também assinalou uma nova abordagem da arquitetura olímpica, dando muito mais ênfase à relação entre a cidade e as instalações do que aos próprios estádios. Barcelona usou os Jogos para reformar a área do porto e criar uma série de parques, fontes e obras de arte públicas que pudessem atrair os turistas após o encerramento da Olimpíada. A partir de então, muitas cidades procuraram usar o evento para alavancar melhoramentos locais, a partir da premissa de que, a se gastar bilhões em construções na cidade, mais vale investi-los em obras que possam ter uma utilidade a longo prazo. E é por isso que o maior legado das Olimpíadas de 1996, em Atlanta, não é nenhum dos prédios construídos para as competições, mas um grande parque para atletas posteriormente transformado em dormitórios da Universidade da Geórgia.
Oplano para as Olimpíadas de 2012, em Londres, leva essa idéia mais longe. Exceto por um impressionante projeto encomendado à arquiteta britânica nascida em Bagdá Zaha Hadid (um centro de esportes aquáticos na forma de um gigantesco vagalhão), os próximos Jogos serão marcados pela ausência de obras arquitetônicas extravagantes. O estádio principal, projetado por uma grande firma americana que vem dominando a construção de estádios de futebol americano e de beisebol há muitos anos, é desinteressante se comparado ao Ninho de Pássaro. Quando conversei com Ricky Burdett, professor de arquitetura e urbanismo da London School of Economics e conselheiro do comitê organizador dos Jogos de 2012, ele disse que Londres não sentiu a necessidade de se afirmar através de obras espetaculares: “Estávamos muito mais interessados em saber como uma intervenção dessa escala afetaria a cidade do ponto de vista social e cultural.” O governo britânico planeja investir cerca de 19 bilhões de dólares em instalações olímpicas, no East End de Londres. Quando as Olimpíadas acabarem, boa parte da área será convertida num parque, e as vendas de condomínios particulares à sua volta deverão permitir ao governo recuperar muito do seu investimento. Diz Burdett: “Londres sempre foi mais pobre a leste e mais rica a oeste, e as Olimpíadas podem restaurar o equilíbrio na cidade.”
Pequim, claro, tem outras prioridades. Apesar de toda a vistosa modernidade das obras, não há como deixar de perceber a tradicional abordagem monumentalista que está por trás delas. Esta é uma Olimpíada motivada pela imagem, e não por um planejamento urbano. É verdade que ocorreu uma necessária e bem executada expansão do sistema de metrô, mas a maior parte do impacto das Olimpíadas terá sido meramente cosmética – o plantio de árvores ao longo da via expressa que liga a cidade ao aeroporto, ou a limpeza de alguns dos caminhos que levam ao Parque Olímpico. Ao lado de um trecho de congestionadas vias expressas elevadas, foram construídos muros de pedra, como os que cercam os antigos hutongs de Pequim, ou bairros antigos. No entanto, não há muita coisa por trás deles: são pouco mais que uma fachada — hutongs cinematográficos destinados a camuflar o que está sendo demolido para a construção de arranha-céus. Na Pequim de hoje, o despejo forçado é comum, e centenas de milhares de pessoas foram removidas a fim de abrir espaço para os Jogos. O brilho do halo olímpico confere algum lustro superficial à expansão incessante da cidade, mas não toca nos problemas de planejamento mais profundos, como a superpopulação e a poluição do ar e da água.
Dennis Pieprz, presidente da Sasaki Associates, acredita que o complexo construído para as Olimpíadas vá se transformar num imenso parque, em que cada um dos principais edifícios poderá assumir uma função pública. O Ninho de Pássaro continuará a ser o estádio nacional, com sua capacidade reduzida para o número mais prático de 80 mil espectadores, mediante a remoção de várias fileiras de assentos. O Cubo d’Água irá perder quase dois terços de seus 17 mil assentos, e as arquibancadas superiores devem ser substituídas por salões com múltiplas finalidades. “Estamos fazendo uma cidade, e não uma obra extravagante que só terá interesse durante dezesseis dias”, disse Pieprz.
Por melhor que possa vir a ser a adaptação posterior das edificações, contudo, é difícil imaginar que outra relação o Parque Olímpico poderá vir a ter com o resto da cidade, além de funcionar como um bem-vindo trecho de espaço verde numa metrópole cada vez mais espalhada e coberta de altas construções. Em matéria de concepção e execução, o melhor da arquitetura olímpica de Pequim apresenta um brilho impecável. Mas seu desenvolvimento reflete os traços que, noutros lugares, vêm desnaturando e destruindo a trama que constitui uma cidade — a opção irrefletida pelo modismo global e um planejamento autoritário indiferente ao custo humano.