ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2016
Silício com cerveja
Cientistas no boteco
Bernardo Esteves | Edição 117, Junho 2016
Numa segunda-feira fria e úmida, as mesas de um bar no Leblon estavam quase todas ocupadas pouco antes das sete e meia da noite. João Silveira, um gaúcho de 35 anos, cuidava dos últimos preparativos para o evento que começaria em breve quando foi cutucado por um homem de blazer, camiseta e jeans. Era o físico Luiz Alberto Oliveira, um dos convidados da noite. Trazia a tiracolo um copo de cerveja de trigo pela metade e queria brindar com o organizador. “A science eu não sei como vai ser, mas o pint está bom”, disse.
O físico brincava com o nome do festival que reuniu cientistas para conversar com o público em botecos e restaurantes de várias cidades do mundo – o Pint of Science, algo como “Chope de ciência”. Oliveira fez carreira no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas estudando cosmologia e gravitação, antes de se tornar curador do Museu do Amanhã. Havia sido escalado para, ao lado de uma colega, discorrer sobre “O mundo depois do silício”, o elemento químico na base dos chips de computadores e celulares. (Se dependesse dele, o título seria “Como era gostoso o meu silício”.)
Naquela noite e nas duas seguintes, foram realizados eventos do Pint of Science em sete cidades brasileiras, incluindo Dourados, no Mato Grosso do Sul. Criado na Inglaterra em 2013, neste ano o festival foi realizado simultaneamente em doze países. O público no Leblon incluía um casal de estudantes de engenharia eletrônica que frequenta a Campus Party e competições de robótica, e também duas pesquisadoras de uma universidade em Campos dos Goytacazes – uma especialista em genética vegetal, outra, na bioquímica de insetos. O organizador estava satisfeito com a casa cheia. “A gente não sabia se as pessoas viriam ver ciência no bar.”
Antes que Oliveira tomasse a palavra, promoveram-se jogos com os presentes para distribuir camisetas e copos com o logo do evento – um chope em que um cérebro faz as vezes de espuma. Os testes iam de piadas nerds (“Qual a fórmula da água benta? HdeusO”) a um desafio que consistia em adivinhar quantos grãos de feijão fariam transbordar uma tulipa cheia d’água. Todos erraram feio a resposta, 87 grãos (o prêmio ficou com o palpite mais próximo, vinte).
Sem projetar slides, Oliveira discorreu durante quinze minutos sobre a história do conceito de átomo até as “descobertas estarrecedoras” da mecânica quântica que mostraram a estranheza do comportamento das partículas do mundo microscópico. Notou que a compreensão desse universo promoveu o desenvolvimento de componentes eletrônicos cada vez menores, e vaticinou que, com a miniaturização, as tecnologias se integrarão cada vez mais com o corpo humano.
Num devaneio, o físico vislumbrou o dia em que “teremos a capacidade técnica de estar em conexão direta pelo sistema nervoso com outras mentalidades, outras experiências, quem sabe poderemos construir um sonho juntos”. O cenário poderia facilmente virar pesadelo. “E se, por uma política de Estado, todo mundo for obrigado a receber um chip que liga a pessoa o tempo todo a uma rede? Como você reagiria a essa perspectiva?”, quis saber do público. “Agora a questão não é mais técnica, é ética. Para lidar com esse tipo de questão é necessário que as pessoas possam compreender até onde as tecnologias derivadas das fronteiras da ciência são capazes de nos levar.”
Nas mesas ou em pé do lado de fora do bar, o público se contava às dezenas e seguia com interesse a fala do físico – ninguém parecia dar bola ao programa de surfe que passava na tevê. Quando se abriu o microfone para as intervenções da plateia, não faltaram inscritos. Mas nem sempre as perguntas tratavam do assunto da noite. O público queria falar de educação a distância, de ateísmo na física, de ciência nas regiões rurais, do mundo antes do silício.
Quem desviasse a atenção para o celular poderia acompanhar as discussões em curso nos eventos de outras cidades pela hashtag #PintBR (a internacional #pintofscience não emplacou entre os tuiteiros brasileiros, pelo cacófato). Em São Paulo, um paleontólogo explicava que os dinossauros ainda estão entre nós; em Belo Horizonte, um biólogo exibia espécimes de Aedes aegypti; em Campinas, a pauta era a mudança do clima.
Em conversa com a piauí ao fim da noite, com parte do público já disperso, Luiz Alberto Oliveira comparou aquele bate-papo informal com os coffee breaks das conferências científicas, nos quais ideias novas costumam surgir de conversas descompromissadas. “O cafezinho e o botequim depois do congresso são momentos essenciais na prática da ciência”, disse o físico.
Oliveira afirmou ainda que os cientistas estão cada vez mais conscientes da importância de se engajar com setores mais amplos da sociedade. “A ciência tem que se tornar uma força, como há outras, no campo da cultura, que contribua com nossa capacidade de fazer escolhas, que serão sempre éticas e políticas”, disse. “Não se trata de contaminar a ciência com a política, mas de contaminar a política com a ciência.”
Quando o governo Temer anunciou que extinguiria o Ministério da Cultura, a resistência de vários setores levou o presidente a voltar atrás da decisão. Em contraste, a perda de status do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – fundido com o das Comunicações e entregue a Gilberto Kassab – não motivou a ocupação de prédios públicos ou shows de protesto. “A reação das sociedades científicas foi modesta em relação ao tamanho da agressão sofrida”, disse Oliveira. Com a decisão, avaliou, o governo envia sinais de ignorar o valor estratégico do setor. “Não é possível que seja esse o país que queremos construir conjuntamente.”
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