Borges, em 1984: “Minha avó inglesa sempre me contava que meu avô mandara executar um desertor. Mas nunca soube seu nome... Silvano Acosta. Que lindo!” CREDITO: FERDINANDO SCIANNA_MAGNUM PHOTOS _FOTOARENA
Silvano Acosta
A descoberta de uma carta e a história de um texto inédito de Borges
Jorge Luis Borges | Edição 171, Dezembro 2020
EPÍLOGO
Pedro Corrêa do Lago
Vidas que duram várias décadas acumulam no fundo da memória incontáveis acontecimentos que digerimos como páginas viradas. Alguns desses episódios, ao ganharem novos desdobramentos, podem ressurgir de repente e até dar um susto bom.
Algo assim me aconteceu no início de novembro passado, quando uma amiga argentina mandou um artigo publicado no jornal La Nacion, de Buenos Aires. No artigo, a viúva de Jorge Luis Borges, María Kodama, revelava com exclusividade ter reencontrado durante a pandemia um curto texto que Borges, já totalmente cego, lhe havia ditado em 19 de novembro de 1985, nove dias antes de deixarem juntos a Argentina. [Leia o texto abaixo.]
Borges já sabia que seu câncer era terminal e havia planejado com Kodama uma “fuga” para Genebra, cidade onde passara parte de sua infância e na qual esperaria por uma agonia mais discreta, longe da atenção obsessiva que a imprensa argentina lhe prestava. O texto que o La Nacion publicava agora pela primeira vez teria ficado esquecido em uma gaveta por 35 anos. A revelação me deixou boquiaberto, pois oferecia um desfecho insuspeitado para uma história na qual eu tivera há muito tempo alguma participação. Contei-a, sem o presente epílogo, num texto para a piauí publicado em 2007 (Três encontros com Borges).
Resumindo a história. Em 9 de janeiro de 1978, quando eu tinha 19 anos, entrevistei Borges de manhã em sua casa em Buenos Aires. No começo da tarde, fui à Antigua Casa Pardo, perto da Praça San Telmo, um antiquário tradicional que vendia também documentos antigos. Minha paixão por manuscritos já era intensa e passei algumas horas remexendo a pilha de meio metro de papéis velhos que o dono pôs à minha frente. Os preços eram muito baixos, porém a maioria não me interessava. Eram assinados por figuras locais esquecidas pela história, mas entre as folhas encontrei uma carta do coronel Francisco Borges, o avô do escritor, que ele acabara de mencionar durante a entrevista comigo. Talvez só por isso o papel tenha chamado a minha atenção e resolvi comprá-lo. Na carta, o coronel Borges comunicava ao ministro da Guerra da época que havia ordenado o fuzilamento do desertor Silvano Acosta, encontrado no campo inimigo.
Ao voltar para casa, ocorreu-me que talvez essa carta interessasse mais ao próprio Borges e resolvi retornar ao seu apartamento para dá-la de presente. Eram mais de cinco da tarde, e Borges estava tomando chá com uma companheira de sua geração, Susana Bombal. Pedi desculpas por interromper a conversa em inglês dos velhos amigos e entreguei a carta a Bombal. Assim que ela terminou a breve leitura, Borges nos disse: “A carta está datada da cidade de Paraná em janeiro de 1871.” Bombal respondeu: Oh yes, Georgie, you’re right!
Fiquei sem palavras. Como podia Borges ter adivinhado o local e a data da carta que eu havia descoberto duas horas antes em meio a uma montanha de papéis esquecidos? Borges então explicou: “Minha avó inglesa, viúva do coronel, sempre me contava que meu avô mandara executar um desertor. Mas nunca soube seu nome… Silvano Acosta. Que lindo! Vou escrever uma Milonga de Silvano Acosta.”
Para o jovem que eu era, parecia impensável contribuir ainda que minimamente com a obra de um gigante da literatura, mas passei a acompanhar a produção editorial de Borges em busca do texto que ele me anunciara. Visitei-o também diversas vezes nos sete anos seguintes. Borges me reconhecia pelo episódio da carta, mas eu nunca ousava perguntar pelo texto “prometido”. Após a sua morte, esperei por algum tempo que quaisquer linhas publicadas postumamente pudessem mencionar o desertor, mas acabei me conformando com o fato de que Borges nunca as escrevera. Custei, por isso, a acreditar, quando vi que o curto texto inédito encontrado por Kodama intitulava-se Silvano Acosta. O sensível crítico literário do La Nacion, Pablo Gianera, considera-o uma obra importante e provavelmente o último texto que Borges escreveu na Argentina, uma espécie de confissão em tom de despedida. Nele, parece-me que Borges reivindica uma culpa retrospectiva por um erro que não cometeu, mas que seu avô lhe teria passado como uma misteriosa herança.
Após Kodama lhe dizer que não possuía a carta original que dei a Borges, Gianera teve a competência de localizá-la com Miguel de Torre, sobrinho do escritor. Ele a recebera de presente do tio por volta de 1979, e Borges voltara a se emocionar quando De Torre lhe releu a carta. Gianera mandou-me uma foto da carta e revi finalmente a mensagem manuscrita. Tudo isso foi como um bumerangue que levou inexplicavelmente 43 anos para voltar. Restavam algumas questões. Por que teria Kodama levado 35 anos para reencontrar esse inédito? Quantas outras preciosidades podem ainda estar perdidas entre seus arquivos? E por que Borges levou quase oito anos para escrever sobre Silvano Acosta, depois de receber a carta que lhe revelou o nome do desertor? Para essa última indagação, Gianera e eu encontramos uma possível resposta. Minha última visita a Borges, durante a qual voltei a mencionar o episódio da carta, ocorreu no dia 15 de novembro de 1985, quatro dias antes de o texto ser ditado a Kodama. Teria sido esse o gatilho para a decisão de Borges de salvar Silvano Acosta do esquecimento completo?
Em todo caso, após uma sequência tão improvável de ocorrências, posso agora finalmente trazer para essa velha história um epílogo pelo qual já tinha desistido de esperar.
*
SILVANO ACOSTA
Meu pai foi gerado na guarnição de Junín, a uma ou duas léguas do deserto, no ano de 1874. Eu fui gerado na estância de San Francisco, no departamento uruguaio de Río Negro, em 1899. Desde o momento em que nasci contraí uma dívida, assaz misteriosa, com um desconhecido morto na manhã de certo dia de certo mês de 1871. Essa dívida foi-me revelada há pouco, em um papel assinado por meu avô e vendido em leilão público. Hoje quero saldar essa dívida. Nada me custaria fantasiar traços circunstanciais, mas o que me tocou foi a sutileza do fio que me ata a um homem sem rosto, de quem nada sei além do nome, agora quase anônimo, e sua perdida morte.
Assassinado Urquiza, a montonera jordanista[1] sitiou o Paraná. Um dia entraram na praça a cavalo e a rodearam batendo na boca e gritando algum sapucai[2] para caçoar da tropa. Nem pensaram em tomar a cidade.
Para romper o cerco, o governo enviou o Segundo Regimento de Infantaria de Linha. Faltavam praças, e uma leva recolheu alguns vadios nas tavernas e casas de má fama da zona do porto. Acosta foi pego nesse recrutamento forçado, então comum. Nada me custaria atribuir-lhe uma paróquia de Buenos Aires ou um determinado ofício — servente de pedreiro ou quarteador —, mas essa atribuição faria dele um personagem literário e não o homem que foi o que ele foi. Passada uma semana, desertou do quartel e bandeou-se para os montoneros. Talvez pensasse que a disciplina entre gauchos seria menos severa que nas fileiras de um exército regular. Talvez quisesse desforrar-se de ter sido arrastado para a guerra. A campanha prosseguiu, e um destacamento do Segundo trouxe alguns prisioneiros. Alguém reconheceu o pobre Acosta. Era um desertor e um traidor. O coronel Francisco Borges, meu avô, firmou a sentença de morte com a boa caligrafia da época. Quatro atiradores a executaram.
Eu nasci trinta anos depois. Um vago sentimento de culpa ata-me a esse morto. Sei que lhe devo uma reparação, que não chegará a ele. Dito esta inútil página no dia 19 de novembro de 1985.
[1] Chamavam-se montoneras as milícias rurais opostas às forças regulares durante as guerras civis argentinas (1814-80), nas quais os federalistas de algumas províncias enfrentaram os centralistas portenhos (unitários). Um dos capítulos finais dessas guerras, a Rebelião Jordanista – encabeçada pelo general Ricardo López Jordán – eclodiu em 1870, logo após o assassinato de Justo José de Urquiza, que fora várias vezes governador da província de Entre Ríos, líder do Partido Federal e presidente da Confederação Argentina (1831-61). [N. T.]
[2] Sapucai ou sapucay: grito de guerra ou júbilo, de ascendência guarani. [N. T.]
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