Sinfonia para os sem-orquestra
Uma Heróica sob medida para instrumentistas espalhados pelo mundo inteiro
Dorrit Harazim | Edição 28, Janeiro 2009
Instrumentistas anônimos de todo o mundo, alegrai-vos: a chance de integrar uma orquestra sinfônica e se apresentar no maior de todos os palcos pode estar ao seu alcance. Pegue o violino – harpa, triângulo, oboé ou qualquer outro dos 22 instrumentos listados no projeto Sinfônica YouTube – e submeta o seu talento musical ao concurso para fazer parte daquela que já é chamada de primeira orquestra on-line do universo.
Os parceiros do experimento sonoro não poderiam ser mais dissonantes. De um lado está o tentacular YouTube, plataforma de comunicação voltada para a disseminação instantânea do que há de mais trivial, tolo ou fundamental, desde que captado em vídeo. Criado em 2005, e adquirido pelo Google por 1,65 bilhão de dólares no ano seguinte, o site se tornou palco por excelência da internet, permitindo o compartilhamento simultâneo e imediato de quase tudo o que ocorre na Terra – dos arroubos al mare de Daniela Cicarelli às imagens sinistras dos porões de Abu Ghraib.
Do outro lado da empreitada estão a vetusta Orquestra Sinfônica de Londres, conceituada há mais de um século, o Carnegie Hall de Nova York, anfiteatro dos sonhos de todo candidato a solista, o regente Michael Tilson Thomas, da Sinfônica de São Francisco, e o compositor Tan Dun, festejado autor da trilha do filme O Tigre e o Dragão e da música para a cerimônia de entrega de medalhas dos Jogos Olímpicos de Pequim. Além do pianista darling da atualidade, o também chinês Lang Lang, nomeado embaixador (ou garoto-propaganda) do projeto.
Partindo das infinitas possibilidades de interação da internet, e apostando na música como linguagem global, o YouTube e a Sinfônica de Londres tiveram a idéia de criar uma orquestra sinfônica on-line. O primeiro passo foi encomendar uma composição ao músico multimídia Tan Dun. Nasceu assim a peça Sinfonia Internet N. 1, Heróica, de quase cinco minutos de duração. Em seguida foi feita uma filmagem do compositor regendo, em separado, uma a uma, as partituras de cada instrumento dessa Heróica pós-Beethoven. A obra completa, executada pela orquestra inglesa, e os vídeos didáticos de Tan Dun foram colocados no ar no início de dezembro, e passaram a servir de ferramenta-guia a quem quisesse se candidatar a uma vaga (ver www.youtube.com/symphony).
O processo de inscrição, que se encerra em 28 de janeiro, difere em tudo da forma tradicional de preenchimento de vagas em orquestras não-virtuais. Na Filarmônica de Los Angeles, por exemplo, dos cerca de 500 músicos inscritos para uma audição, 75 conseguem ser chamados para disputar a vaga, e os jurados avaliam cada execução separados por uma cortina, para não poderem identificar o candidato.
Na orquestra virtual, até o fim de dezembro, cerca de meio milhão de pessoas já havia acompanhado on-line a apresentação da Heróica por emulador. A partir daí, os interesses foram se subdividindo. Para cada instrumento – do primeiro violino ao corne inglês*, passando pelo címbalo, tuba ou flauta – os organizadores providenciaram toda uma gama de exercícios, dicas e regência on-line, com ou sem som. Além de partituras em formato PDF. Um verdadeiro festim para músicos carentes de monitoramento qualificado.
O concurso é aberto a qualquer pessoa, de qualquer idade, procedência ou grau de aptidão musical, seja ela profissional ou amadora. Para tanto, basta que submeta dois vídeos ao YouTube. O primeiro testará sua qualificação para tocar a Heróica de Tan Dun, através da execução da partitura reservada ao instrumento de sua escolha. O segundo vídeo testará o talento individual do candidato, por meio da execução de um trecho de uma lista de grandes obras do repertório clássico.
Um dos itens do regulamento de inscrição ilustra a singularidade do megaconcurso: os vídeos colocados on-line para avaliação da comissão julgadora “não devem conter material pornográfico ou sexual”. Difícil saber se isso eliminaria, por exemplo, uma harpista que opte por executar nua as duas etapas do teste.
Difícil, também, prever no que resultará a idéia de somar desempenhos individuais numa sinfonia de colaboração global, durante a qual os músicos só se encontram no ciberespaço. “A internet é uma espécie de Rota da Seda invisível, por onde trafegam gentes do Oriente e Ocidente, do Norte e do Sul”, avalia Tan Dun. “Vamos ver o que a genialidade musical ainda não detectada da humanidade é capaz de criar”, completa. Um painel de jurados, pinçados nas filarmônicas de Berlim, Nova York e São Francisco, e nas sinfônicas de Sydney e Londres, reduzirá a avalanche de candidaturas a uma lista de 200 finalistas.
É na etapa final do concurso, entre 14 e 22 de fevereiro, que a empreitada corre algum risco de desafinar. Serão aproximadamente oitenta os músicos concursados a integrar a orquestra on-line (além de alguns solistas convidados, de qualificação já comprovada) e caberá ao público interneteiro, plenamente familiarizado com concursos de talento em formato de reality shows, a escolha desses vencedores . No terreno da votação on-line, os precedentes musicais mais conhecidos são o americano American Idol e sua versão brasileira, Fama, que transformaram cantores até então anônimos em estrelas da música popular.
Deborah Borda, presidente da Filarmônica de Los Angeles, é defensora ferrenha do experimento. Ela o considera visionário – por democratizar o conceito de orquestra, e abalar o mito de que são necessárias qualificações especiais para se poder apreciar a música dita erudita.
Além disso, a audiência de música clássica tem envelhecido mundo afora, e a turbinada internética visa popularizá-la junto às novas gerações. Segundo dados divulgados pela agência americana de fomento à cultura, o National Endowment for the Arts, a idade média do frequentador de concertos, nos Estados Unidos, aumentou em quase dez anos, de 1982 até hoje, quando o espectador típico beira os 50 anos de idade.
Mas como nem tudo na vida (ainda) tem existência apenas on-line, os idealizadores da YouTube Symphony Orchestra vão fazer uma apresentação ao vivo com os músicos vencedores de carne e osso trazidos de todas as partes do mundo. O concerto acontecerá em Nova York, no dia 15 de abril, numa sala de concertos nada virtual, o Carnegie Hall, perante um público pagante e real. O programa não inclui a Heróica anterior, a de Ludwig.
*Correção em relação à versão impressa.
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