Von Kayser, na rua onde nasceu, em Paris: “No bar, todo mundo parece aliviado, ouve-se alguém dizendo ‘Yes!’. Um homem de uns 50 anos não se conteve e gritou: ‘Macron Presidente!’” CRÉDITO: LAURA WOJCIK_2022
Só mais cinco minutos
A eleição francesa, a angústia e – enfim – o alívio
Opale von Kayser | Edição 188, Maio 2022
Tradução de Dorothée de Bruchard
A jornalista e documentarista francesa Opale von Kayser vivenciou as eleições presidenciais de seu país em abril passado absorvida por uma agonia inédita: em 2022, a candidata de extrema direita Marine Le Pen tinha chances reais de ganhar. De ascendência suíça, Von Kayser tem 30 anos e é “europeia convicta”, como faz questão de frisar. Tradicional eleitora do Partido Verde, neste ano ela se viu levada a reconsiderar sua posição e apostar no voto útil para combater o risco Le Pen. A pedido da piauí, Von Kayser descreveu fatos e episódios de sua rotina parisiense durante o período eleitoral, evocando cenas do passado recente que ilustram a força do nacionalismo e a inclinação de uma parcela crescente dos franceses a tolerar o discurso radical da extrema direita. Com a vitória de Macron, diz ela, “todos brindamos, aliviados”.
9 DE ABRIL DE 2022, SÁBADO_É véspera do primeiro turno da eleição. No fim da tarde, sentamos em uma mesa na calçada do Aux Folies, um bar de que gosto muito. É um ambiente animado e um tantinho descolado, a poucos passos da minha casa, em Belleville. Pauline, amiga de longa data, pediu uma taça de vinho tinto. Eu optei por uma sidra.
– E então, Opale, já decidiu? – ela me perguntou.
– Você quer dizer sobre amanhã? – eu disse, só para ganhar tempo. Porque ainda não tinha decidido. E como poderia?
– Parece que o Jadot já perdeu a batalha… Não me conformo em votar num candidato de quem não gosto de verdade.
Tenho 30 anos e, desde que atingi a idade para votar, sempre votei “verde”. Em qualquer eleição. Mas tenho a impressão de que, agora, vou ter de quebrar essa regra. Yannick Jadot, o candidato dos verdes, aparece com uns 5% nas últimas pesquisas. O pior é que Marine Le Pen, a candidata da extrema direita, tem 23% de intenções de voto!
– Sinceramente, isso me deprime – reclamei. – Não consigo nem curtir minha sidra.
– Então bora votar no Méluche! – disse Pauline, em tom gaiato.
Méluche é o apelido afetivo com que seus apoiadores batizaram Jean-Luc Mélenchon, candidato da France Insoumise (França Insubmissa), um partido que dizem ser de extrema esquerda. Há quem prefira chamar o candidato de tortue sagace (tartaruga sagaz). Será premonição? Será que, como na fábula de La Fontaine, a tartaruga, lenta mas perseverante, vai chegar na frente da lebre? E a lebre quem é? O presidente Emmanuel Macron, que concorre à reeleição? Le Pen?
Por volta das 20 horas, peguei meu celular para ver as pesquisas. Macron com 26%. Le Pen em segundo, com 24%. Mélenchon, 17,4%. Suspirei.
Julie, a irmã de Pauline, se juntou a nós. Assim que sentou, pôs a bolsa na cadeira ao lado e exclamou, sorridente:
– Que louco! A impressão que dá é que todas as mesas só falam sobre amanhã!
Pauline e eu caímos na risada. Era do que falávamos. Rimos as três, tomamos um gole de nossas bebidas, ficamos uns instantes caladas e, qual comadres fofoqueiras, esticamos o ouvido para as mesas vizinhas. Ouvimos coisas como:
– A esquerda, depois de levar esse gancho no queixo, nunca mais se levanta!
– Mas, também, o Jadot tem o carisma de uma ostra!
– Meus primos com certeza vão votar na Marine.
O relógio correu, as taças se esvaziaram, as línguas se soltaram. Depois das 21 horas, pedi um terceiro copo. De Ricard, desta vez.[1]
– O tempo mal deu uma esquentada e você já se sente no Sul! – exclamou Pauline, imitando o sotaque de Marselha.
– Pois em Marselha, justamente, parece que o pessoal é fã do Mélenchon – completou Julie. – Estive lá na semana passada. Uma loucura! Cartazes por toda parte, bandeiras do France Insoumise nas janelas – contou ela, faceira, pois Mélenchon é o candidato de Julie e de Pauline.
– Vocês querem me convencer, não é? – brinquei, mas já quase disposta a ceder. Afinal, a simples ideia de Le Pen chegar ao segundo turno já me dá medo. Imagina chegar ao poder. De modo que Mélenchon, o único dos três primeiros colocados a ter um programa que inclui direitos sociais e medidas ecológicas de verdade, talvez seja a nossa última chance de levar para a discussão do segundo turno os temas caros à esquerda. Nem falo tanto de eleger Mélenchon para presidente. Na verdade, nunca me afinei muito com sua logorreia, seu egotismo, suas posições contrárias à União Europeia. Mas, se fosse para o segundo turno, ele obrigaria Macron a revisar sua abordagem sobre o futuro energético da França, repensar seu projeto de aumentar a aposentaria de 62 para 65 anos e reconsiderar sua posição a respeito do imposto sobre fortunas, que revogou durante o seu mandato.
A noite continuou, entre a euforia típica da sexta-feira e a incerteza do futuro.
10 DE ABRIL, MANHÃ DE DOMINGO_Acordei de ressaca, apesar de nem ter bebido tanto assim. Deve ser ressaca política. Sinto uma névoa na cabeça. É dia do primeiro turno. Penso em todas as pessoas que, na França inteira, também estão saindo da cama para votar. Em quem vão votar? Mentalizei os meus amigos, minha família e enviei uma prece para soprar no ouvido de todos um apelo: “Le Pen, não! Le Pen, não! Zemmour também não!”[2] Fecho os olhos, acredito com força. Faço um chá, engulo rapidamente duas fatias de pão, tomo um banho e vou para a minha seção eleitoral. Imagino que depois das 10 horas vai estar uma muvuca. No caminho, ligo para minha mãe para sentir o clima.
– E você, vai fazer o quê? – pergunto, um tanto ansiosa.
– Vou de Jadot, mesmo que ele não tenha chance. Macron, nem pensar.
Meu pai também vai votar em Jadot. Chegou a pensar em fazer voto útil no primeiro turno, votando em Macron, mas voltou atrás depois do caso Mc-Kinsey[3]. Meu pai disse que foi “a gota d’água que fez o copo transbordar”. O escândalo respingou no final do mandato de Macron, mas ele se manteve à frente nas pesquisas, sobretudo depois do início da guerra na Ucrânia.
Minha seção eleitoral é numa escola primária. Tem fila do lado de fora. Entro, pego uma cédula de cada uma das doze pilhas – são doze os candidatos presidenciais – dispostas sobre a mesa e me dirijo à cabine. Com um suspiro, dobro a cédula de Mélenchon e a insiro no envelope. Sim, votei em Mélenchon. As outras cédulas vão direto para o lixo.
– Votou – recita o mesário quando cai minha cédula na ampla urna transparente.
O mesário é fisicamente parecido com Pascal, o marido de Betty, minha madrinha. O casal vive em Amiens, no Norte da França. Faz alguns anos, Pascal ficou desempregado, depois que a Whirlpool, onde trabalhava como engenheiro havia mais de 25 anos, mudou-se para a Polônia. Na eleição presidencial de 2017, Macron e Le Pen estiveram na região, num duelo político-midiático. Macron começou se reunindo com líderes do sindicato dos trabalhadores da Whirlpool no Centro da cidade, enquanto Le Pen começou, se antecipando a Macron, com uma visita surpresa aos trabalhadores na fábrica da empresa. “Estou aqui com os trabalhadores que resistem […] e não comendo canapés com um punhado de representantes que […] representam apenas a si mesmos”, tripudiou ela no microfone da bfmtv, canal de notícias 24 horas.
Pascal, um eterno gaullista, como ele mesmo gosta de lembrar, comentou conosco, na época, que não acreditava numa só palavra das promessas de Macron – e que Le Pen, pelo menos, sentia mais empatia com o infortúnio dele e dos colegas.
NOITE DE DOMINGO_Não consegui aproveitar o restante do meu dia. Choveu em Paris. A Cidade Luz estava chorando também. Tentei driblar minha obsessão com a eleição presidencial fazendo umas compras, mas não pude evitar as notícias. A tendência é de abstenção massiva. Às oito da noite, saíram os primeiros resultados oficiais. Emmanuel Macron, 28,1% dos votos. Le Pen, em segundo lugar, tem 23,3%.
– Porra, não acredito! – gritou de frustração meu namorado, sentado ao meu lado no sofá, diante da tevê ligada na France 2.
Mélenchon, em terceiro lugar, estava fora do segundo turno. Mas, com o passar das horas, a diferença entre Le Pen e Mélenchon foi diminuindo cada vez mais.
– Só 0,8 ponto de diferença! Falta pouco! – exclamou meu namorado. Ele ainda queria acreditar. E todos os “insubmissos”. Pouco antes da meia-noite, porém, os números praticamente congelaram. Imutáveis, irrevogáveis.
Fiquei sem fala, quase paralisada, embora todo mundo esperasse esse resultado. É o mesmo cenário de 2017, Macron versus Le Pen. Só que agora há um bocado de gente ressentida com o atual presidente. Ele não é mais o candidato “vestido de probidade cândida e linho branco”[4] de cinco anos atrás. Na telinha, enviados especiais nos levam de um QG para o outro. Confiantes, os apoiadores de Macron entoam em coro: “É um, é dois, são cinco anos mais!” No Bois de Boulogne, os eleitores de Le Pen cantam a Marselhesa num arroubo de alívio e alegria. Sua candidata até avançou alguns pontos percentuais em relação a 2017, quando teve 21,3%. Mas, desta vez, conta com uma reserva de votos bem mais ampla. A começar pelos votos dos eleitores do extremista Zemmour e do nacionalista Nicolas Dupont-Aignan. E é isso que me preocupa. No QG de Mélenchon, os militantes estão frustrados com a ausência do candidato no segundo turno, mas ele também avançou. Agora, teve 21,9%. Cinco anos atrás, ficou com 19,5%.
Noite estranha. Sentados no sofá, aturdidos, eu e meu namorado não desgrudamos da tevê. Tive a impressão de estar vivendo o fim de uma época. Uma virada quase histórica.
Os partidos tradicionais (o Socialista e o Republicanos) se desfizeram em pedaços, ficando cada qual com umas poucas migalhas.
Resignada, fui deitar. Me enfiei debaixo do edredom e li umas páginas de Rien n’Est Noir (Nada é negro), romance inspirado na vida de Frida Kahlo. Me refugio na leitura para tentar esquecer que aqui na França de 2022 tudo está escuro. Ou prestes a escurecer.
11 DE ABRIL, SEGUNDA-FEIRA_Desde o começo da manhã, ninguém falou em outro assunto senão nos resultados do dia anterior. Na televisão, jornalistas e analistas sucederam-se ao longo do dia, tentando responder às perguntas que estão na cabeça de todo mundo. A grande incógnita do dia: em quem votarão os eleitores de Mélenchon? O certo é que, ontem à noite, assim que foi anunciado o resultado, Mélenchon proclamou claramente para a multidão: “Nenhum voto para Marine Le Pen!” Será que os eleitores vão seguir seus conselhos? E ele aconselhou o quê, exatamente? Abster-se? Votar em Macron?
Depois do trabalho, passei na padaria pensando no que faria para o jantar. Queria ocupar minha cabeça. Macarrão ou legumes salteados? Era esta, para mim, a verdadeira pergunta da noite. Ao chegar à padaria, porém, a vitrine expunha doces ao lado de bandeirinhas com as cores da França – e voltei à realidade. A realidade de uma França que votou em massa num partido cujos representantes estão ligados aos momentos mais sombrios da história. Uma França que se desvia da emergência climática para privilegiar os temas da segurança e da imigração. Uma França que não vai às urnas,[5] desconfiada como nunca de suas instituições. Uma França dividida.
Resolvi caminhar um pouco e liguei para a minha tia-avó, que vive na região de Landes, no sudoeste da França, e faz aniversário hoje. Não perguntei em quem votou. Uma semana atrás, ela ainda hesitava entre Macron, “que não se saiu tão mal na crise sanitária”, e Valérie Pécresse, a candidata dos Republicanos, “por ser mulher”. Ela me contou que Claudine, a vizinha da irmã dela, a chamou para tomar um aperitivo. E pensei, imediatamente, que Claudine certamente votou em Le Pen. Lembrei-me de uma noite, durante as férias de Natal, em que minha avó a convidou para tomar um café junto à lareira. Ela então se referiu a Marine Le Pen, na época a presidente da Frente Nacional, como “uma mulher determinada”, que “não é racista” e não está de todo errada quanto ao fato de que “afinal, não podemos acolher em nosso país toda a miséria do mundo”. Lembro que, por pouco, não engasguei com meu pedaço de bolo basco. Mas fiquei quieta. É curioso: eu gosto dessa vizinha. É uma senhora simpática, jovial, tem sempre uma história engraçada para contar.
Como muitos dos que votaram em Le Pen, Claudine não se parece em nada com uma neonazista, uma fascista, sequer com uma militante de extrema direita. Talvez isso seja o mais assustador. A direita da direita foi se “normalizando” ao longo dos anos, a ponto de hoje ser perfeitamente “aceitável” votar “Marine”.
14 DE ABRIL, QUINTA-FEIRA_Sentada à minha escrivaninha, acessei o canal do jornal Le Figaro no YouTube para assistir, ao vivo, ao grande comício do segundo turno de Marine Le Pen. Para a ocasião, ela foi até Avignon, uma cidade de esquerda, situada numa região, a Provence, dominada pelo seu partido, o Rassemblement National (Reagrupamento Nacional). Tudo muito simbólico. No salão, ouvem-se os acordes de Quand la Musique Est Bonne, de Jean-Jacques Goldman, ou Les Sunlights des Tropiques, de Gilbert Montagné. Bandeiras com azul, vermelho e branco empunhadas pelos militantes tremulam em meio à multidão.
Le Pen subiu no palco, braços abertos, toda sorrisos diante do seu público. Seu blazer escarlate e a camiseta branca dialogavam com o fundo azul às suas costas. Diante da multidão eufórica, dirigiu-se a “todos os patriotas de direita e todos os patriotas de esquerda”. Seu leitmotiv: “Barrar Emmanuel Macron”, apropriando-se do verbo, muito usado no momento, de “barrar” a extrema direita. Ela exortou seu público a barrar “o laxismo na segurança”, a “aposentadoria aos 65 anos” e “mais um mandato de destruição social”. Ao longo do seu discurso, retomou os temas-chave da sua campanha. No topo da lista, o poder aquisitivo, que está no cerne das preocupações dos franceses.
Lembrei que, há alguns meses, cobri uma passeata dos coletes amarelos, apelido dado aos manifestantes que, a partir de 2018, têm ocupado as ruas com protestos e reivindicações variadas, desde a redução do preço dos combustíveis até o impeachment de Macron. Os coletes amarelos já não eram mais que mil pessoas, uma fração das grandes manifestações de dois anos atrás. Eram os “últimos moicanos” que protestavam contra a adoção do passaporte sanitário em nome “da liberdade”, mas não esqueciam suas preocupações financeiras. Na ocasião, conversei com Mireille, de 63 anos. Ela trabalhava numa padaria e também tomava conta de crianças, no seu vilarejo na região de Champagne-Ardenas, no Leste da França. Reclamava que seu salário não lhe permitia “chegar ao fim do mês” e estava terrivelmente ressentida com o governo Macron por “deixá-los na pindaíba”. Disse que entendia cada vez mais quem ansiava por uma “verdadeira mudança”, com políticos próximos do povo. Filha de operário, eleitora da esquerda a vida inteira, revelou-me que cogitava votar “no outro lado, para experimentar”.
Marine Le Pen soube capturar esses eleitores, prometendo aposentadoria aos 60 anos – para os que trabalham desde os 20 anos e somam quarenta anos de contribuição –, bem como um aumento de seu poder aquisitivo. Seu programa prevê reduzir o TVA [sigla em francês de Imposto sobre Valor Agregado] a 5,5% para cem produtos de primeira necessidade, e isentar do imposto de renda os menores de 30 anos.
Os simpatizantes de Le Pen apostam na melhoria do poder aquisitivo. No comício, a que assisti pelo computador, eles gritavam, animados: “Vamos vencer! Vamos vencer!” Havia vários comentários da live rolando na tela. “Vai, titia!”, dizia uma tal de Nathalie. “Marine Presidente”, reforçava Stanley, com emojis de coração azul, vermelho e branco. Aziz respondia com um emoji de vômito, explicitando sua discordância. Um gaiato, misturando política com futebol, disparou: “A vitória de Le Pen é tipo o Paris Saint-Germain vencer a Liga dos Campeões!” Não sou fã do mundo da bola, mas quis muito acreditar nessa metáfora.
16 DE ABRIL, SÁBADO_Fui ao Buttes-Chaumont, um parque a dez minutos da minha casa. As cerejeiras do Japão estavam em flor, e o Sol brilhava no céu. Deixei casacão e echarpe no armário e fiquei feliz de sair com roupas leves nesse início de fim de semana. Me encontrei com alguns amigos, para um piquenique de improviso. Não fomos os únicos a ter essa ideia. Os gramados desse pulmão verde da Região Leste parisiense estavam apinhados de gente.
Entre um e outro pedaço de torta e alguns tomates-cereja, contamos episódios divertidos da nossa semana, falamos dos nossos planos de férias e deixamos as eleições de lado. Por uma tarde, ou quase. Espiei no celular para conferir os alertas do Le Monde sobre o único grande comício do segundo turno de Macron, em Marselha. “A política dos próximos anos será ecológica ou nada!”, declarou o presidente-candidato. Mostro o celular para a minha amiga Pauline, que está saboreando uma quiche feita em casa.
– Que piada! – ela exclama, erguendo as sobrancelhas.
Depois de relegar a ecologia ao segundo plano durante a campanha, ele agora quer que a França “seja a primeira nação a prescindir do gás, do petróleo e do carvão”.
– É puro chamariz para atrair o voto da esquerda. Exatamente como essa ideia de última hora de reduzir em um ano o tempo para a aposentadoria – acrescenta Pauline, meio irritada.
O tempo começou a fechar, esfriou, recolhemos mantas e potes, nos despedimos e partimos.
19 DE ABRIL, TERÇA-FEIRA_No banheiro, de manhã, enquanto escovava os dentes, ouvi os jornalistas da France Info darem diversos detalhes sobre a “revanche” que vai se realizar amanhã. Cinco anos depois, a mesma atração está em cartaz de novo: o debate do segundo turno entre Macron e Le Pen. Tudo foi exaustivamente discutido, entre jornalistas e os comandos das campanhas: quem fala primeiro, quais os temas, onde cada um sentará, quem serão os entrevistadores…
Os escolhidos foram Gilles Bouleau, âncora do telejornal das 20 horas da TF1, e Léa Salamé, estrela da France 2 e apresentadora do Élysée 2022, programa dedicado à eleição presidencial. A France 2 – emissora estatal – escalou, inicialmente, Anne-Sophie Lapix, âncora do telejornal das 20 horas. Mas, tida como demasiado crítica, Lapix foi imediatamente rejeitada pelas equipes – de ambos os candidatos. E eu me perguntei, enquanto terminava de me aprontar: então agora são os políticos que decidem os jornalistas que vão entrevistá-los? É isso então a liberdade de imprensa?
Uma semana antes, Le Pen dava uma entrevista coletiva sobre as instituições e a vida democrática, quando lhe perguntaram por que proibiu que os jornalistas do Quotidien, programa televisivo de sucesso da emissora TMC, acompanhassem seus deslocamentos durante a campanha. Em tom de escárnio, Le Pen respondeu: “Não existe jornalista no Quotidien.” E disse que a atração não passava de um “programa de entretenimento”. Pois esse pessoal que diz dar a vida pela “liberdade de expressão” é o mesmo que decide despoticamente quais jornalistas têm, ou não, o direito de acesso a seus eventos públicos.
No dia seguinte, aconteceu mais um episódio revelador. Durante outra coletiva da candidata, uma moça se levantou e exibiu um cartaz mostrando Marine Le Pen ao lado de Vladimir Putin, com o intuito de denunciar sua proximidade e complacência para com o presidente russo. Foi o que bastou para a equipe de segurança expulsar a jovem manu militari. Primeiro, imobilizaram-na no chão e, depois, arrastaram-na para fora da sala.
Pensei: um aperitivo do que poderá ser a gestão Le Pen.
O mundo está mais agitado, mais perturbado que nunca. A China está, de novo, drasticamente confinada. A região de Donbass, na Ucrânia, está em chamas e continua sendo alvo de violentos ataques russos. Mas eu, como muitos franceses, estou egoisticamente obcecada pelo destino que nos aguarda no próximo domingo.
20 DE ABRIL, QUARTA-FEIRA_Depois de uma reunião de trabalho que durou uma eternidade e de uma rápida passada na loja de vinhos, percorri às carreiras a Rua La Boétie pilotando meu fiel corcel de duas rodas. No cesto da bicicleta, chacoalhava uma garrafa de rosé. Quando cheguei à altura do Palácio do Eliseu, sede da Presidência da República, cujo acesso estava bloqueado, sua fachada imponente não deixava transparecer a agitação que devia estar acontecendo lá dentro. Continuei em direção ao 5º arrondissement, onde mora minha amiga Adèle, que me convidou para assistir ao debate do segundo turno na casa dela. Adèle providenciou uns quitutes, nos acomodamos na sala e abri minha garrafa de vinho, para ajudar a digerir nosso programa televisivo noturno.
Às nove da noite, os moderadores anunciam as regras e começa o jogo. Primeira a falar, Le Pen entabula um monólogo sobre poder aquisitivo. Falsa largada. Foi interrompida pelos jornalistas, que lhe pedem para retomar do início respondendo à pergunta “Por que ela seria uma presidente melhor do que Macron?”. Sem se desconcertar, sorriso nos lábios, ela começa: “Conheço bem o nosso povo, […] faz tempo que tenho ido ao encontro dele, e vi o que ele sofreu nesses últimos cinco anos.”
O debate de cinco anos atrás descambou para o pugilato. A revanche pareceu bem mais serena. Como esperado, Le Pen anunciou a sua intenção de fazer do poder aquisitivo a prioridade do seu mandato e elencou uma série de medidas a respeito. O tom se elevou quando foram abordadas as questões internacionais – em especial, a guerra da Ucrânia.
Macron apontou a relação de sua adversária com a Rússia de Putin, lembrando o empréstimo que seu partido fez num banco russo em 2014. Le Pen se defendeu sacudindo o papel em que imprimiu um de seus tuítes, em que diz: “Apoio uma Ucrânia livre, que não seja submissa aos Estados Unidos, nem à União Europeia e nem à Rússia.”
Apesar das taças de rosé, o tempo para mim e para Adèle parecia se arrastar. Estava quase caindo no sono e “despertei” de súbito quando as questões ambientais, que me interessam mais de perto, entraram em cena. Para meu desespero, o tema girou em torno das turbinas eólicas, o pomo da discórdia entre os dois candidatos.
– É, eu não esperava mesmo grande coisa desses dois – eu disse para Adèle.
Le Pen lança mão do ataque ensaiado e acusa Macron de ser um “hipócrita do clima”. Macron reage chamando Le Pen de cética do clima.
– Bem, vou colocar umas tortinhas no forno – avisou Adèle, cansada do cara a cara.
Saltei do sofá quando Le Pen abordou a questão do uso do véu. Anunciou sua intenção de proibi-lo nos espaços públicos, associando esse símbolo religioso à ideologia islâmica, que ela pretende combater. Curioso. Le Pen passou os últimos anos tentando suavizar sua imagem em relação a essa questão, mas agora a resgatou. Eu comentei:
– Expulse o que é natural e ele volta a galope.
Macron reagiu assim aos comentários de Le Pen: “O que você diz sobre a laicidade é muito sério, e vai levar à guerra civil.”
É difícil não se distrair de vez em quando diante de um presidente que fala em tom professoral e de uma adversária imprecisa. Aparentemente, não fomos as únicas pessoas a cansar do programa, acompanhado por 15,6 milhões de espetadores – um milhão a menos que em 2017.
– Foi muita coragem sua aguentar o debate até o fim – me disse minha mãe, no dia seguinte, quando nos falamos por telefone.
Ela e meu pai preferiram ver o último filme de Cédric Klapisch.
24 DE ABRIL, DOMINGO_Já passava das cinco da tarde quando cheguei à minha seção eleitoral. Na rua da escola primária onde voto, livre de carros, crianças aproveitavam para brincar, indiferentes ao que estava acontecendo a poucos metros dali. Entrei na seção. Estava quase vazia. Só dois eleitores na minha frente. Peguei as duas cédulas – uma de Macron, outra de Le Pen. Na cabine de votação, selecionei a contragosto o papel branco que traz o nome “Emmanuel Macron” em letras pretas. Inseri dentro do envelopinho azul. Verifiquei duas vezes se coloquei a cédula certa. Mais uma vez, votei para barrar a extrema direita do Rassemblement National. Abri a cortina da cabine, joguei a cédula de Le Pen no lixo. Perscrutei furtivamente com o olhar o conteúdo do cesto. Ufa!, pensei, aliviada, ao ver somente papeizinhos com o nome da presidente do RN.
Aqui, como em toda a França, muitos optaram por ignorar as urnas, rejeitando os dois finalistas. Algumas horas depois que votei, soube que a abstenção ficou ainda maior do que a do primeiro turno. Chegou a 28%, perto do triste recorde de 31% na eleição de 1969.
Fiquei tensa e estressada durante as quase três horas que me separaram do resultado dessa eleição. Pensei nas muitas pessoas do meu entorno que não foram votar. E se o número dos que votaram em Macron – por apoio a ele, ou para barrar a extrema direita – não foi suficiente? E se demasiados eleitores se deixaram convencer pelos argumentos da filha de Jean-Marie Le Pen, o tradicional líder da extrema direita francesa, e acabaram engrossando as fileiras dos “lepenistas” históricos?
Lembrei das tantas pessoas que, antes do segundo turno, proclamavam que iam votar “Marine” e incitavam todos a fazer o mesmo. Lembrei da foto de perfil do Instagram de um certo “arealidadeéminha”, pseudônimo de um homem de uns 40 anos, que aparece sentado numa mureta de tijolos, pernas cruzadas, óculos de sol no rosto. “Macron afundou o barco da França igual ao Titanic, precisamos de mudança!”, disparou no Instagram do jornal Le Figaro. Lembrei da foto de “Mathilde13”, cerca de 20 anos, tranças no cabelo, chamando à mobilização: “Vá de Marine, vote Marine.” Ou do avatar cinza de “Bernard.S”, que declarava votar, “a contragosto”, em Marine Le Pen porque “não aguentava mais Macron”.
Antes das oito da noite, me encontrei com alguns amigos no Le Penty, bar fetiche do bairro Aligre da minha infância, no 12o arrondissement de Paris. Agathe, Marie, Anouk, Clément e Benjamin estavam sentados na calçada, degustando a bebida que é marca registrada desse estabelecimento popular: o chá de menta com pinhão.
– Está chegando a hora da verdade – disse Marie, nervosa.
– Estou cruzando os dedos – respondeu Benjamin. – É a primeira vez que voto desde 2007 – comentou. Na contramão do movimento abstencionista, ele decidiu votar porque estava apavorado com a possibilidade de uma extremista de direita chegar ao Eliseu.
Os minutos passavam, o tempo parecia suspenso. Angústia.
– Só mais cinco minutos – disse Agathe, entrando no bar, onde uma tevê estava ligada na BFMTV. – O presidente vai vencer – arrematou, confiante.
– Só fico tranquila quando aparecer a cara do Macron na tela – disse Marie.
Às 20 horas, saíram os primeiros resultados: 58,2% para Macron, 41,8% para Le Pen. No bar, todo mundo parece aliviado, a tensão se desmancha, ouve-se alguém dizendo “Yes!”. Um homem de uns 50 anos não se conteve e gritou: “Macron Presidente!”
Agathe, que aguentou confiante os cinco minutos que faltavam, sorriu.
– Hoje é dia de festa, hoje a noite é de brilho, hoje a noite é folia, bora para mais cinco anos de Macrônia – disse ela, num tom de ironia. Estava pouco empolgada com a agenda liberal do presidente reeleito, em quem se sentiu obrigada a votar, apenas para evitar o pior.
Cheguei a dar risada quando escutei o discurso de vitória de Macron. Disse que não era “mais o candidato de um campo político, mas o presidente de todos”. Seus simpatizantes, reunidos em massa no Campo de Marte, ao pé da Torre Eiffel, gritavam, eufóricos, agitando bandeiras francesas e europeias.
Os derrotados vaiam Macron. Os simpatizantes de Marine Le Pen não estão em festa, embora qualifiquem seu desempenho como “vitória fulgurante”.
– O mais triste – eu digo para Agathe e Marie – é que eles têm razão.
Nunca antes a extrema direita obteve tamanha pontuação num segundo turno de uma eleição presidencial na França. Ou seja, a vitória de Emmanuel Macron, mesmo folgada, está longe de ser um autêntico sucesso.
Marie, Agathe e eu deixamos a tevê e voltamos a sentar lá fora junto aos outros.
Todos brindamos de alívio.
A vida, aos pouquinhos, começava a retomar seu curso, quase normal. A tevê do Le Penty mudou de canal, sintonizando na RFM TV, que transmite clipes de músicas de décadas atrás. Na tela fixada 1 metro acima do balcão de zinco, Larusso, cantora francesa do final dos anos 1990, entoa Tu oublieras, tous ces jours, tout ce temps qui n’appartenait qu’à nous… (Você vai se esquecer desses dias, desse tempo que só a nós pertence).
Dessa noite, contudo, próxima como nunca dos tempos mais sombrios possíveis, eu com certeza não vou me esquecer tão cedo.
[1] Ricard é uma marca de pastis, bebida alcoólica à base de anis, típica da região de Marselha, no Sul da França.
[2] Éric Zemmour, outro candidato da extrema direita, concorreu pelo partido Reconquête (Reconquista), com um discurso abertamente racista e xenófobo, segundo o qual os imigrantes na França, em particular os muçulmanos, são uma grande ameaça aos valores franceses e europeus. Zemmour adotou a teoria conspiratória da “grande substituição”, formulada pelo escritor francês Renaud Camus, que diz existir um plano das elites do país para substituir os trabalhadores franceses por mão de obra imigrante e mais barata. O candidato também foi acusado de misoginia, de minimizar a gravidade do Holocausto e até de antissemitismo, embora seja descendente de judeus.
[3] Em março de 2022, durante a campanha presidencial, um relatório produzido pelo Senado francês mostrou que os gastos do governo com consultoria externa mais que dobraram desde que Macron assumiu a Presidência, em 2017. Entre os escritórios contratados, está a McKinsey, empresa norte-americana. Só em 2021, ela recebeu 12 milhões de euros (o equivalente a 62 milhões de reais) para prestar consultoria ao governo sobre a pandemia, mas os franceses reprovaram seu trabalho, tendo em vista o início tardio da campanha de vacinação. Para completar, o Senado apontou que, embora tenha realizado serviços milionários na França nos últimos dez anos (cerca de 329 milhões de euros em vendas), a McKinsey pagou taxa zero em impostos sobre pessoa jurídica no país durante esse período.
[4] Vêtu de probité candide et de lin blanc, verso de Booz Endormi, de Victor Hugo, que faz parte da reunião de poemas La Légende des Siècles. (N. T.)
[5] No primeiro turno, a abstenção chegou a 26,31%, a maior desde 2002. Na França, o voto não é obrigatório.
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