RAQUEL ECHENIQUE_2018
Só para maiores de cem anos
Nicanor Parra | Edição 146, Novembro 2018
CHILE
É engraçado ver os camponeses de Santiago do Chile
de cenho franzido
ir e vir pelas ruas do centro
ou pelas ruas dos arrabaldes
preocupados-lívidos-mortos de susto
por razões de ordem política
por razões de ordem sexual
por razões de ordem religiosa
dando como certa a existência
da cidade e de seus habitantes:
embora esteja provado que os habitantes ainda não nasceram
nem nascerão antes de sucumbir
e que Santiago do Chile é um deserto.
Acreditamos ser país
e a verdade é que somos apenas paisagem.
INFLAÇÃO
Aumento do pão gera novo aumento do pão
Aumento dos aluguéis
Provoca instantaneamente a duplicação dos cânones
Aumento dos artigos de vestuário
Gera o aumento dos artigos de vestuário.
Inexoravelmente
Giramos em um círculo vicioso.
Dentro da jaula há alimento.
Pouco, mas há.
Fora dela só se veem enormes extensões de liberdade.
A MONTANHA-RUSSA
Durante meio século
A poesia foi
O paraíso do bobo solene.
Até que cheguei eu
E me instalei com minha montanha-russa.
Subam, se quiserem.
Claro que não respondo se saírem
Botando sangue pelas bocas e narinas.
PENSAMENTOS
O que é o homem
se pergunta Pascal:
Uma potência de expoente zero.
Nada
se comparado com o todo
Tudo
se comparado com o nada:
Nascimento mais morte:
Ruído multiplicado pelo silêncio:
Média aritmética entre tudo e nada.
SETE TRABALHOS VOLUNTÁRIOS E UM ATO SEDICIOSO
1
o poeta atira pedras na lagoa
círculos concêntricos se propagam
2
o poeta sobe em uma cadeira
para dar corda em um relógio de bolso
3
o poeta lírico se ajoelha
diante de uma cerejeira em flor
e começa a rezar um pai-nosso
4
o poeta se veste de homem-rã
e mergulha na piscina do parque
5
o poeta se atira no vazio
pendurado em um guarda-chuva
do último andar da Torre Diego Portales
6
o poeta se entrincheira na Tumba do Soldado Desconhecido
e dali dispara flechas envenenadas nos transeuntes
7
o poeta maldito
se entretém atirando pássaros nas pedras
Ato sedicioso
o poeta corta as próprias veias
em homenagem a seu país natal
MADRIGAL
Ficarei milionário uma noite
Graças a um truque que me permitirá fixar as imagen
Num espelho côncavo. Ou convexo.
Acredito que o êxito será completo
Quando conseguir inventar um caixão de fundo duplo
Que permita ao cadáver espiar outros mundos.
Já queimei bastante as pestanas
Nesta absurda corrida de cavalos
Em que os ginetes são lançados de suas cavalgaduras:
E vão cair no meio dos espectadores.
É justo, então, que eu tente criar algo
Que me permita viver tranquilamente
Ou que pelo menos me permita morrer.
Estou certo de que minhas pernas tremem,
Sonho que caem todos os meus dentes
E que chego atrasado para um funeral.
TRÊS POESIAS
1.
Já não me resta nada por dizer
Tudo o que eu tinha pra dizer
Foi dito não sei quantas vezes.
2.
Eu perguntei não sei quantas vezes
Mas ninguém responde minhas perguntas
É absolutamente necessário
Que o abismo responda de uma vez
Porque o tempo está ficando curto.
3.
Só uma coisa é clara:
Que a carne se enche de vermes.
ÚLTIMO BRINDE
Queiramos ou não
Temos apenas três alternativas:
O ontem, o presente e o amanhã.
E nem sequer três
Porque como diz o filósofo
O ontem é ontem
Pertence a nós apenas na memória:
A uma rosa que já se desfolhou
Não se pode arrancar outra pétala.
As cartas por jogar
São somente duas:
O presente e o dia de amanhã.
E nem sequer duas
Porque é um fato bem estabelecido
Que o presente não existe
Senão na medida em que se torna passado
E já passou…,
como a juventude.
No fim das contas
Só nos resta mesmo o amanhã:
Eu ergo minha taça
A esse dia que não chega nunca
Mas que é o único
De que realmente dispomos.
Trechos do livro Só para Maiores de Cem Anos, a ser lançado em dezembro pela Editora 34.