Maria no Parque da Cidade, no Rio, em junho: “Antes eu achava que os sentidos se juntavam na visão. Depois de ficar cega, demorei para formar uma memória não visual dos lugares” CRÉDITO: MARI STOCKLER_2021
Sobreviver não é o suficiente
A história e a rotina de uma jovem que ficou cega
Maria Stockler Carvalhosa | Edição 181, Outubro 2021
Este diário tem uma versão sonora: ouça aqui
MARIA STOCKLER CARVALHOSA, de 19 anos, começou a perder a visão no início da adolescência. Seis anos depois do primeiro choque, ela conta como reaprendeu, pouco a pouco, a lidar com o mundo e descobriu uma maneira mais ampla de viver a vida.
2015
SETEMBRO_No dia 23, uma quarta-feira, peguei um ônibus de manhã no Jardim Botânico e fui para a Escola Sá Pereira, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Ao entrar na sala, tropecei em uma mochila que estava no chão – e que eu não vi. O professor usava uma caneta verde, o quadro era branco, mas tudo na sala de aula parecia sujo e da mesma cor. Eu não conseguia ler a matéria no quadro. Achei aquilo tudo estranho e resolvi ligar para minha mãe. Ela decidiu me levar a um oftalmologista à tarde.
No consultório, que ficava dentro de um hospital, o médico tirou umas fotos dos meus olhos e disse que viu sangue na minha mácula, região no centro da retina. A partir daí foi tudo muito rápido: fui direto fazer um exame de ressonância magnética e logo descobriram que eu estava com hidrocefalia, um acúmulo anormal de líquido nas cavidades do cérebro – o LCR (líquido cefalorraquidiano) –, o que aumentava a pressão sobre o nervo óptico.
Os enfermeiros me colocaram em uma cadeira de rodas e me levaram para a UTI do hospital. Eu não estava com nenhum problema para andar, mas disseram que esse era o procedimento. No trajeto, percebi que os funcionários desviavam o olhar e não falavam comigo. Eu dava boa-noite e sorria para todos que passavam, para ver se eles interagiam normalmente comigo. Tudo que eu queria era sair daquele lugar.
O neurocirurgião que me atendeu diagnosticou que a hidrocefalia era congênita – e uma cirurgia foi marcada já para a manhã do dia seguinte, dia 24, para colocar um catéter e uma válvula que regulassem a saída do líquido e, assim, normalizassem a pressão intracraniana.
Após a cirurgia, voltei para casa e minha visão começou a melhorar. Era bom estar ao lado do meu pai, Carlito, da minha mãe, Mari, e da minha irmã mais nova, Cecília. Mas, uns dias depois, comecei a vomitar e a enxergar cada vez pior. O médico disse que meus pais não deviam se preocupar, que isso era normal. Só quando minha boca ficou torta ele pediu que eu fizesse mais um exame. O dreno colocado durante a cirurgia tinha liberado líquido demais, causando um hematoma intracraniano. A pressão excessiva provocada pelo hematoma foi o que acarretou um dano definitivo no meu nervo óptico. Não fosse isso, talvez hoje eu estivesse enxergando.
Eu tinha 13 anos.
OUTUBRO_Passei por uma segunda cirurgia para colocar um sifão no catéter e, assim, diminuir um pouco a passagem do líquido. Mas eu estava enxergando cada vez menos. Ficava tonta com frequência, desmaiei algumas vezes e vomitava bastante. Comecei a ver ideogramas cor-de-rosa na parede e pessoas pequenas multicoloridas girando em círculos. O neurocirurgião disse que isso era normal, fazia parte da recuperação. Meus pais, naturalmente, estavam muito preocupados e fizeram várias perguntas, querendo saber por que eu estava cada dia pior. O médico começou a gritar com eles. “Isso aconteceu dentro da sua barriga!”, ele disse para minha mãe, e continuou: “Vocês dois deviam se ajoelhar na minha frente porque estou salvando a vida da filha de vocês! Os doentes são vocês, não a sua filha! Eu sou a autoridade, e vou ter que operar uma área sensível do cérebro dela, a vida dela está nas minhas mãos!”
Meus pais queriam ir atrás de uma segunda opinião, mas o médico da nossa família disse que não iria falar com outro neurocirurgião, porque isso provocaria um conflito ético.
No dia 27, terça-feira, surgiu um hematoma intracraniano ainda maior. Eu toco piano, mas não conseguia mais ler a partitura. Nos dias 28 e 31, o médico fez mais duas operações e colocou outra válvula para reduzir ainda mais a passagem do dreno.
As enfermeiras e os amigos dos meus pais rezavam por mim: católicos, do candomblé, budistas e evangélicos. Algumas experiências religiosas foram muito fortes, mas eu tinha consciência de que fiquei doente por acaso e que isso não tinha origem sobrenatural.
Ao mesmo tempo, comecei a ver imagens de demônios e escritos com nomes de seres maléficos. Eu sabia que não eram reais, mas ficava assustada que meu cérebro pudesse produzir coisas tão horríveis. Falei disso para uma psicóloga que apareceu no hospital, e ela disse que poderia ser um efeito colateral da cortisona.
Na época, eu não sabia o que o neurocirurgião tinha dito para os meus pais, quando gritou com eles, mas tinha a impressão de que estávamos anestesiados e não conseguíamos sair daquela situação.
NOVEMBRO_No dia 7, meus pais me tiraram do hospital. Precisaram assinar um termo de responsabilidade, porque o médico não me deu alta. Fomos para São Paulo e consultamos outro neurocirurgião. Ele viu o exame de imagem que eu tinha feito no Rio e percebeu que a hidrocefalia tinha sido causada por um glioma, uma formação de tecido nervoso, que impedia a passagem do líquido.
Em São Paulo, fiz a quinta cirurgia, para que o líquido do cérebro voltasse a ser regulado pelo meu corpo. Minha mãe precisou entrar na sala no meio da operação porque não tínhamos um relatório do neurocirurgião do Rio, então não era possível saber qual das válvulas implantadas no meu cérebro era regulável e qual era fixa. Meus pais deram um jeito de descobrir essa informação sem falar com o médico antigo. No final, a operação foi feita com sucesso. Mais duas cirurgias foram marcadas para abril do ano seguinte. Uma para tirar o glioma e outra para tirar o sistema de derivação, como é chamada toda essa tralha que colocaram na minha cabeça.
Depois da quinta cirurgia, minha visão ficou em forma de túnel. No meio tem um escotoma, uma parte cega, como se estivesse coberta por uma fita adesiva. Dos lados, sobram duas janelas, pelas quais vejo com pouca nitidez e contraste. Nessas frestas aparecem milhares de manchas, imagens e palavras de todas as cores que mudam o tempo inteiro. Quando sei que ao meu lado está alguém que eu conheço, consigo ver o rosto, mas não identifico pessoas que nunca encontrei antes. Também não consigo ler de maneira funcional.
De volta ao Rio, consegui assistir a algumas aulas antes do fim do ano letivo. Estavam organizando um sarau para o encerramento do ano na minha escola. Antes de ir para o hospital, eu tinha combinado com os meus amigos de tocar uma música, mas agora eles não queriam mais. Perguntei por quê. Uma das meninas me disse, toda adolescente e estruturada, que aquilo não tinha mais importância. Meus amigos não sabiam tudo o que tinha acontecido no hospital, e eu perdi as coisas que eles viveram do lado de fora. Perguntei de novo. A menina só ficava repetindo que eles não estavam mais com vontade, que era para eu esquecer. A conversa parecia incompleta, porque eu não conseguia ver o rosto deles, nem a reação que estavam tendo, se estavam me ouvindo, se concordavam ou não comigo – eu não tinha onde me apoiar. Fui ficando desesperada, com a sensação de que minha relação com eles talvez tivesse descarrilhado para sempre.
Às vezes minha mãe, quando precisava de ajuda para alguma coisa, me chamava, mas depois pedia desculpa, e então chamava a minha irmã mais nova. Minha família ainda estava se ajustando à minha nova situação. Eu só me esquecia de tudo quando estava dormindo. Nos sonhos, eu ainda conseguia ver pessoas e coisas e fazia tudo sem dificuldade.
Nessa época, minha irmã era aluna da escola de dança Maria Olenewa. Um dia, ela estava sendo maquiada pela minha mãe no banheiro, e eu acompanhava tudo, sentada em uma cadeira. De repente, me inclinei para trás e minha visão ficou toda preta por um momento. Saltei da cadeira e gritei que estava ficando cega. Quando fiquei em pé minha visão melhorou, voltei a ver o túnel cheio de manchas coloridas, palavras, imagens reais, misturadas com imagens mentais. Vi que minha irmã tinha saído correndo, e percebi que eu tinha feito algo horrível. Apesar disso, ela dançou muito bem na apresentação.
Uma amiga dos meus pais, Nathalia Santos, foi lá em casa conversar comigo. Ela é jovem e na época estava fazendo faculdade de jornalismo. Foi a primeira pessoa cega com quem conversei. Eu não sabia de nada, e não tinha a menor ideia de como poderia fazer as coisas simples enquanto não enxergasse. Então, ela, que é cega de nascença, me disse uma coisa surpreendente. Falou que, se pudesse escolher, preferia continuar sem enxergar, porque conseguia sentir e entender coisas que são imperceptíveis para os outros. Perguntei se eu tinha que aprender a ler Braille, e ela disse que o mais importante hoje em dia é saber usar direito a tecnologia assistiva.
Nathalia me mostrou como mexer no celular com leitor de tela, um software usado para obter resposta do computador por meio de comandos sonoros. Parecia um filme de ficção científica, uma voz muito rápida e incompreensível lia o que estava escrito e organizava a navegação. Ela me mostrou também os comandos básicos do Dosvox, um programa brasileiro de computador que transforma o que está escrito em áudio. Usei o editor de texto e as pastas para me organizar em um primeiro momento. Mas o acesso de deficientes visuais aos sites e aplicativos depende de eles terem sido feitos conforme a cartilha de acessibilidade, o que nem sempre acontece. Para encontrar coisas básicas, acabo gastando muito tempo com entraves tecnológicos. Se eu enxergasse, entenderia tudo muito mais rápido e de maneira clara.
DEZEMBRO_Fui a uma consulta com uma psiquiatra, que me receitou Daforin, um ansiolítico e antidepressivo. Eu estava tendo pensamentos repetitivos e comportamentos similares aos das pessoas com TOC, o transtorno obsessivo-compulsivo. Sabia que os pensamentos não eram reais, mas não conseguia me controlar. Eu ficava com medo de deixar em cima das coisas reais que eu conseguia ver – um sofá, um corrimão, por exemplo – imagens e palavras com algum significado negativo. Quando isso acontecia, eu tentava limpar a superfície do objeto, colocando mentalmente outras imagens e palavras por cima. Depois, fiquei sabendo que eu estava com estresse pós-traumático.
Nos dias em que fiquei no hospital, me deram um ansiolítico, Rivotril, para dormir. A psiquiatra disse para eu só usar esse remédio em caso de grande necessidade. Como eu queria tomar todos os dias, meus pais começaram a me dar soro fisiológico, dizendo que era Rivotril de uma marca genérica chamada Placebo.
2016
JANEIRO_Indicaram para os meus pais uma optometrista, Fernanda Leite, e comecei a fazer exercícios de self healing (autocura), prática desenvolvida pelo ucraniano-israelense Meir Schneider. Os exercícios visam a estimular e descansar os olhos, além de estabelecer uma relação da visão com os outros sentidos.
Meu pai me ensinou a digitar no teclado do computador, e minha mãe leu para mim Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. No livro, ele conta sobre o acidente que o deixou paraplégico.
Um dia, fui bem cedo à praia com o meu pai. Eu queria tentar andar de bicicleta. Meu pai começou a andar do meu lado esquerdo, onde meu campo visual é maior, e foi na frente. Se eu focasse só na imagem dele, conseguia me equilibrar e andar em linha reta. Deu supercerto, foi ótimo.
Conheci dois curandeiros espirituais. Um era dos Estados Unidos e a consulta foi por Skype. O outro era do interior de São Paulo. O primeiro disse que ia tentar me curar até o meio do mês, o que não aconteceu. Desistimos do segundo depois de gastar muito tempo e dinheiro com ele.
FEVEREIRO_Entrei na sala de aula e logo percebi que todos me tratavam de maneira diferente. Fiquei impressionada como tudo aconteceu tão rápido, quando eu ainda esperava que a minha vida voltasse ao normal. Fiquei muito sozinha, já não sabia mais o que falar e nem como falar com as pessoas da minha idade. Comecei a tomar risperidona, numa tentativa de controlar a ansiedade, pois o Daforin não estava fazendo efeito.
Me adaptei bem às aulas de humanas e artes. Com o fone num ouvido, eu escutava o que digitava no computador; com o outro ouvido prestava atenção na aula. Com ciências e matemática era mais complicado. A dinâmica é muito visual, o professor fala: “Junta isso daqui com aquilo dali e o resultado é o círculo azul”, sem explicar o que é “isso” e “aquilo”. Eu tinha que ficar repetindo que eles precisavam sempre me explicar e ler o que escreviam no quadro. Eles repetiam, mas, na atividade seguinte, já se esqueciam de fazer o mesmo.
Fui ficando muito cansada com tudo aquilo. Parei de prestar atenção; pedia depois o material para a mediadora da sala de aula e aprendia a matéria em casa com meu pai. Deixei de lembrar os professores que eles tinham que falar em voz alta o que estavam escrevendo no quadro, e a maioria não mudou seu modo de dar aula para me incluir.
Eu precisava que a escola me enviasse as fichas de conteúdo com antecedência para que fossem baixadas em casa, porém eu não conseguia acessar a internet nem a área de trabalho com o Dosvox. O arquivo tinha que ser em txt, que é o formato compatível com o programa, mas eles quase nunca usavam isso.
As provas de matemática eu fazia com a ajuda da mediadora. Íamos para uma sala diferente, e eu tinha direito a um pouco mais de tempo. Conseguia fazer mais contas de cabeça, mas precisava que ela organizasse e escrevesse algumas coisas para que eu não me perdesse. Eu gastava muito tempo com geometria porque, mesmo sabendo as fórmulas, as figuras mais complexas demoram para ser descritas, enquanto para os outros alunos bastava olhar a figura para que entendessem do que se tratava.
ABRIL_Viajamos para São Paulo, e retirei o glioma no dia 7. No dia 13, eu faria a sétima e última cirurgia, dessa vez para retirar o tal sistema de derivação. Joana, uma amiga de outra escola, e a mãe dela, que estavam na cidade, vieram passar o dia com a gente. Ligamos a tevê para assistir à votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara. Percebi que eu não sabia escrever “impeachment” nem nenhuma palavra nova que tinha aprendido nos últimos sete meses, porque não as tinha visto. Não sabia como era a cara do Eduardo Cunha.
Fui com a Joana passear no corredor da UTI para tentarmos nos distrair. Todos os pacientes e enfermeiros estavam assistindo à mesma coisa. Eu conseguia entender o espaço porque cada quarto estava com a tevê ligada. Quando eu passava na frente da porta do quarto, vinha um som mais alto. Quando estava no caminho entre dois quartos, o som era abafado e vinha de mais de uma fonte. Pareciam listras. O som entrava para dentro da recepção e na sala dos enfermeiros. Eu estava acostumada com o hospital como sendo um lugar descolado do mundo, mas nesse dia não tinha como não saber o que estava acontecendo lá fora.
Tomei um medicamento chamado Diamox para reduzir a produção de líquido no meu cérebro. Nessa época, eu ficava com muito sono e dormia na sala de aula. Achava que estava vendo menos e que deveria estar fazendo mais exercícios de optometria para melhorar a visão. Acordava mais cedo e fazia apenas uma hora.
Tirei A em todas as matérias. Fiquei feliz porque foi bem mais difícil que antes, e algumas pessoas vinham me tratando como uma pessoa frágil, idiota e infantil. Gente que eu nem conhecia tentava me impedir de descer uma escada sozinha, segurava no meu braço ou na minha mochila, tentava me levar para outro caminho, falava comigo no diminutivo e de maneira paternalista. Eu estava cansada, respondia exatamente da maneira que eles queriam ouvir, porque assim me deixavam em paz. Às vezes eu ficava muito irritada, mas nada mudava.
Na escola, indicaram Maus como livro paradidático de história. É uma história em quadrinhos do Art Spiegelman, em que ele conta como seu pai, um judeu polonês, sobreviveu ao campo de concentração de Auschwitz. Ninguém tinha pensado que uma história em quadrinhos seria um problema para mim. Na verdade, eu já não conseguia mais ler livro nenhum. Sentia que tinha perdido a coisa que mais gostava de fazer.
Meus pais liam um pouco em voz alta para mim, e a mãe de uma amiga deles leu A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. O Enrique Díaz, ator e diretor de teatro que é nosso amigo, gravou alguns contos do livro Morangos Mofados, do Caio Fernando Abreu, e me mandou por WhatsApp. Era demais, mas eu precisava achar um jeito de fazer isso sozinha. Fui atrás de audiolivros em português, mas não encontrei nenhum que quisesse ler, e as gravações disponíveis no YouTube, com sintetizador de voz, eram muito ruins. Ouvi um robô lendo A Metamorfose, do Kafka, e odiei. Compramos um scanner que transformava em áudio o livro físico, mas ele fazia uns erros e eu não podia ler fora de casa.
Parei de usar as redes sociais porque elas não eram acessíveis. Não sabia quais músicas e livros as pessoas da minha idade estavam gostando, nem o que estavam lendo. Também não perguntava muito porque não queria admitir que eu estava por fora. Tinha muita dificuldade em pedir ajuda. Meus pais me diziam que eu deveria saber me posicionar, dizer o que precisava, e assim transformaria minha desvantagem em uma vantagem. Me dei conta de que eu representava uma ameaça para o universo jovem e estável dos meus amigos, porque lembrava às pessoas da minha idade que o que tinha acontecido comigo poderia acontecer com qualquer um deles, e que coisas inesperadas e tristes fazem parte da vida.
Por outro lado, os amigos dos meus pais e grande parte dos adultos foram maravilhosos e se aproximaram de mim. Acho que talvez se identificassem comigo porque todo mundo alguma hora leva uma cacetada da vida. Tocaram música comigo, mandaram livros, playlists, discos, deram cursos e me mostraram caminhos para o futuro na hora em que mais precisei de amparo.
Aos poucos, voltei a conseguir tocar piano. Mas agora tinha que sentir os espaços entre as teclas pretas para acertar as posições. Tocar e ouvir música era o que eu mais fazia, porque era uma experiência completa.
A Escola Sá Pereira, onde eu estudava, vai apenas até o fundamental, mas tem um convênio com o Ceat [Centro Educacional Anísio Teixeira], porque a filosofia educacional é parecida. Se você passa no nono ano da Sá Pereira, sua vaga está teoricamente garantida no Ceat. Eles não me impediram de entrar no Ceat, mas barraram outra menina deficiente da minha sala. Comigo somente deixaram muito claro que não tinham nenhum interesse em me receber, não sabiam o que fazer e não tinham muita disposição para descobrir.
Foi horrível perceber que o anticapacitismo – a disposição de compreender e incluir a pessoa com deficiência – não é aplicado nem mesmo em espaços que têm discurso progressista. Acho inacreditável que a inclusão dependa da boa vontade das escolas, sendo que é lei, um direito garantido. É muito violento não poder ir aos lugares, não conseguir andar na rua, não fazer parte, não conseguir chegar às informações. Parece que querem te jogar para outro mundo, sem tempo e sem interação.
JULHO_Fui com meu pai para Boston, nos Estados Unidos. Queríamos saber se existia algum tratamento em desenvolvimento por lá que pudesse me ajudar. Passamos um dia, fui a uma consulta no Hospital Infantil de Boston e visitamos três museus. A médica disse que não conhecia os exercícios de optometria que eu estava fazendo, mas que deveria continuar, porque eu conseguia andar pelo hospital de uma maneira que parecia impossível com o resultado dos meus exames oftalmológicos. Ela me disse que eu estava “legalmente cega”.
Eu gostava de ir a museus com meu pai porque ele descrevia tudo para mim, não só a imagem dos quadros, mas me explicava por que elas eram interessantes ou não. Como artista plástico, ele achava legal pensar em como traduzir uma obra visual para mim, dizia que isso o fazia também ver melhor as coisas. Fomos a um museu de arte contemporânea, depois ao Museu Isabella Stewart Gardner, que era uma casa estranhíssima com um Piero della Francesca e quatro Renoirs. Antes de voltarmos para o aeroporto, passamos no Museu de Belas Artes. Vimos juntos um trecho de The Clock, um filme do artista plástico Christian Marclay que dura 24 horas e mostra cenas de filmes com relógios, minuto a minuto.
Parei de tomar a risperidona no meio do mês. Diminuí também o Daforin, mas, mesmo assim, continuava tendo pensamentos ruins.
Fomos de férias para o interior de São Paulo com a minha madrinha. Um dia, fui dar uma volta com ela e a minha mãe. Precisava dar a mão para não tropeçar e bater nas coisas. Minha madrinha me disse que era importante, além dos exercícios que eu estava fazendo, aprender a usar a bengala e tudo mais que pudesse me ajudar. Eu era muito resistente à ideia da bengala, não queria que essa fosse a primeira coisa que vissem em mim. Também achava que, se eu começasse a me adaptar, iria parar de usar a visão, e o meu nervo óptico atrofiaria ainda mais. Aceitar a adaptação me parecia, naquela época, um caminho fácil para me admitir como uma pessoa cega. E eu não queria desistir de voltar a enxergar.
SETEMBRO_Eu disse para a coordenadora do meu colégio que preferia voltar para o hospital que passar mais um dia na escola. Fazia um ano desde aquele dia em que tropecei na mochila ao entrar na sala de aula. De lá para cá, já não entendia mais as relações entre as pessoas. Meus professores não estavam ali para me ensinar nada, meus amigos não eram mais meus amigos. No hospital eu entendia as regras: sobreviver, não pirar. Do lado de fora, sobreviver não é o suficiente. Quero ser feliz e ser tratada com respeito, o que não acontecia.
NOVEMBRO_Na escola, teve um dia em que fui sentar com minhas amigas antigas e elas disseram que meu sapato estava sujo e com cheiro ruim. Fui para o banheiro limpar, perguntei para alguém que estava passando se ele estava limpo e a pessoa disse que sim. Voltei para a sala e, de novo, essas meninas disseram que meu sapato continuava sujo. Isso se repetiu algumas vezes ao longo do dia, toda vez que eu me aproximava delas. Não sabia em qual visão acreditar, não sabia em quem confiar.
A diretora considerou que eu estava sofrendo bullying. Tivemos uma reunião na sala de aula para falar sobre a minha adaptação naquele ano, e como eu estava me sentindo sozinha. Mas era o final do ano letivo e todos os alunos iriam mudar de escola.
DEZEMBRO_Fiz a prova para a Escola Eleva, que estava sendo inaugurada naquele ano. O diretor já tinha tido outro aluno cego e passou segurança para mim e minha família. O Maurílio, esse ex-aluno, me ensinou a usar o Jaws, que é um leitor de tela para computador. Não consegui me adaptar ao Dosvox. Pude então voltar a pesquisar em sites, a usar o e-mail, o Word, o Google Drive e os outros programas que conhecia antes.
A optometrista Kátia Amaral me acompanhou para fazermos o reconhecimento espacial da nova escola. Se alguém me explica como é o espaço e eu entendo as marcas visuais que enxergo, nunca mais esqueço como ele é.
Descobri que o leitor de tela do celular conseguia ler livros no aplicativo do Kindle. Baixei Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e voltei a ler sozinha. Adaptação é uma espécie de reconquista. Acho que esse foi um dos passos mais importantes para mim.
No dia 15, eu e minha mãe pegamos um avião no Rio para Goiânia, um ônibus em Goiânia para uma cidade pequena de Goiás, e outro ônibus para a Serra do Roncador. Foram mais de doze horas de viagem. Fiz uma cirurgia espiritual com uma guia gnóstica. Dormimos em uma caverna, e me disseram que lá dentro tinha pirâmides voadoras. Apostamos em tudo que pudesse milagrosamente trazer minha visão de volta. Eu não conseguia entender que não estava mais doente. Isso já não era mais sintoma – era uma condição.
Completei 15 anos no dia 22. Me lembro que estava muito quente, porque é o começo do verão, e tive 40ºC de febre ao longo do dia. Então eu não fiz uma comemoração grande. Até cheguei a pensar em uma festa, mas depois decidi que era melhor fazer algo mais tranquilo. Chamei algumas amigas para irem à minha casa, mas já não era um grupo homogêneo: eu não sabia se continuaria sendo amiga de algumas delas porque não tinham sido tão “ponta firme” comigo quando eu fiquei doente. E tinha outras amigas que estavam chegando, amizades antigas que ressurgiram e pessoas novas na minha vida.
2017
SETEMBRO_Fui com minha família assistir à peça Grande Sertão: Veredas, dirigida por Bia Lessa. Falaram tantas vezes “demônio” e “diabo” que parei de me assustar com os seres vermelhos que via. Acho que por isso eles desapareceram. Minha visão melhorou um pouco e fiquei menos ansiosa por um tempo.
Mudei de novo de colégio. Dessa vez fui para a Escola Parque. Eu tinha que comprar comida na cantina, mas não sabia diferenciar as notas de dinheiro. A Nathalia me mostrou um aplicativo que lê o valor.
2018
ABRIL_Na prova de física, tirei nota 57 em 100. Procurei uma das coordenadoras e disse a ela que precisava de ajuda porque o material não estava vindo adaptado, que não conseguia prestar atenção na aula, e isso não era normal, e que sabia que eu podia me sair melhor no estudo. Ela riu e disse que estava tudo bem, que tinha gente que enxergava e tirava nota 20. Segundo ela, era normal dormir na aula de física. Falou ainda que era para eu ser mais Pollyanna. Não entendi a referência, então ela me explicou que era para eu aprender a ver as coisas pelo lado positivo e deu uma risada depois de dizer a palavra “ver”.
Falei com a professora de física, que me explicou a matéria de novo e organizou comigo um jeito de estudar. Alguns professores eram bem atenciosos, outros nem tanto. Um deles, toda vez que ia me explicar o que tinha escrito no quadro, dizia que era “a hora da caridade”.
MAIO_Pela primeira vez, fui sozinha a uma festa. Achava estranho que esses ambientes imitam a baixa visão, tudo mal iluminado e às vezes com umas luzes coloridas. Uma pessoa veio dançar comigo, e 1 milhão de manchas, imagens e palavras apareceram na minha frente. Desci as escadas, fechei a porta do prédio, fiquei trancada do lado de fora e percebi que não sabia como sair de lá. Queria sair correndo pela rua, não ter que falar para ninguém onde eu estava, não ouvir mais um sintetizador de voz ou leitor de tela. Não queria viver da maneira que achava errada.
JUNHO_Fui a uma reunião de um grupo de estudos marxistas com a minha amiga Joana, e na saída pedi um Uber. Tinha acabado de aprender a mexer no aplicativo e voltei a ter mais autonomia para circular pela cidade. Estávamos descendo a Estrada da Gávea quando três policiais pararam o carro. Um perguntou se “tinha alguma coisa ilegal dentro” e mandou a gente sair. Joana disse para ele que a blitz não estava sinalizada e ele respondeu: “É a PM que manda nisso daqui.” Viu o carro, revistou a minha mochila e, como não achou nenhuma droga, disse para os outros olharem para o meu olho, que eu estava dopada e iam ter que me levar para a delegacia. Falei para ele que eu era cega. Ele ficou meio confuso, e eu também. Eu nunca tinha dito isso antes. Fomos liberadas.
JULHO_Viajei para São Francisco, na Califórnia. Me lembro que lá ventava muito e as calçadas eram incríveis, lisas, sem buracos e bem sinalizadas. Fui para fazer parte de um experimento da Universidade Stanford. Os doutores Andrew D. Huberman e Jeffrey Goldberg estão desenvolvendo um tratamento não intrusivo, com óculos de realidade virtual, que estimula as células ganglionares e o nervo óptico com padrões luminosos. Existem estudos para a regeneração do nervo óptico com células-tronco, e eu posso me beneficiar disso no futuro.
De volta ao Rio, fiz um curso de orientação e mobilidade com um professor vidente, que é como os cegos chamam uma pessoa que enxerga. Ele me ensinou como eu deveria bater a bengala no chão, na frente do pé esquerdo quando pisasse com o direito e vice-versa. Qual movimento deveria fazer para subir na calçada e não trombar em nada. Qual para descer e não cair em um bueiro. As calçadas do Rio são muito ruins e feitas pelos proprietários das casas. Por isso não têm um padrão, cada dono faz o que quer. Também não existe uma distância regular entre os postes, os hidrantes e a rua. Os semáforos não têm nenhuma indicação sonora de quando está verde ou vermelho. Piso tátil, aquele relevo de listras e bolinhas que tem no metrô, é uma raridade.
É curioso como antes eu tinha a impressão de que todos os meus sentidos se juntavam na visão. Depois de ficar cega, durante um tempo parecia que os sentidos corriam em vias separadas, e eu ficava perdida no meio. Demorei para formar uma memória não visual dos lugares que eu visitava. Hoje, consigo perceber que no Rio as lâmpadas das ruas são quentes e amarelas. Já em São Paulo, em volta das lâmpadas, é sempre azul-escuro. Ao lado da casa onde fico em São Paulo, tem um homem que sempre toca sanfona. Só quando eu volto para o Rio é que consigo perceber como o cheiro de São Paulo é forte, acho que deve ser por causa da poluição de lá. Sempre que entro num hospital, eu me lembro do cheiro de laranja do óleo que usavam para tirar os eletrodos depois do exame de ressonância magnética. Quando desço as ladeiras da minha rua no Rio, sinto vertigem e escuto ao fundo o som dos amoladores de faca e um funk tocando ao longe.
Isabel Diegues, amiga dos meus pais, me chamou para ir à editora dela, a Cobogó, fazer a avaliação de um audiolivro e dar um parecer sobre originais que ela tinha recebido. Fiquei muito feliz. Na saída, disse para ela que tinha aprendido a andar de bengala e não precisava de companhia para chegar ao térreo. Um homem entrou comigo no elevador. Quando saí do prédio, percebi que não conseguiria atravessar a Rua Jardim Botânico sozinha. Abri minha bengala nova fazendo bastante barulho, e o homem me perguntou se eu precisava de ajuda. Agradeci e disse que sim: só para atravessar.
Depois de atravessar, eu fui para um lado e ele para o outro. Bati em uma motocicleta estacionada na calçada, e um segurança de uma loja me perguntou se eu precisava de ajuda. Agradeci e disse que sim: só até a esquina. Na esquina, uma senhora me perguntou se eu precisava de ajuda, e eu disse que sim: só até a igreja. E assim foi, até que eu chegasse à minha rua e ficasse sozinha.
Cheguei em casa animada porque ia fazer um trabalho, a avaliação de um audiolivro e de originais da editora, minha vida era independente da escola e havia gente que apostava em mim. Também estava contente porque tinha feito uma coisa que beirava o errado: eu nunca andava sozinha, sem ter alguém conhecido ao meu lado.
Um dia, saí de casa para comprar alguma coisa na farmácia e no caminho apareceu um homem, no meio do nada. Era um segurança da rua que veio falar comigo: “Oi, me passaram um rádio dizendo que tinha uma menina cega descendo a rua.” Achei muito esquisito que alguém precisasse alertar que uma “menina cega” estava andando na rua. Ele falou: “Eu vim aqui pra te ajudar.” Eu agradeci, mas disse que não precisava de ajuda, estava tudo certo, eu conhecia o caminho. Mas ele insistiu: “Vou te acompanhar, eu tô indo pro mesmo lugar.” E ele foi comigo até a farmácia. Fiquei muito irritada, porque parece que as pessoas acham que a percepção delas é mais verdadeira do que a minha, que eu vou errar e elas precisam tomar conta de mim. Acham também que eu não posso recusar ajuda.
Estou aprendendo a tocar violão. Peguei um violão que tinha lá em casa, primeiro sozinha, e depois meu pai começou a ler as cifras para mim na internet e me explicar as posições. Aprendi várias músicas assim, e depois passei a fazer aulas com o violonista Cézar Mendes. Foi incrível.
2019
JUNHO_Fiz a primeira fase do vestibular da Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Cheguei antes da hora marcada e conheci a ledora. Ela sentou ao meu lado e me disse que estava muito deprimida e chorava todos os dias. Começou a ler as questões da prova de inglês e, por causa da pronúncia dela, não entendi nada. Na prova de exatas, ela leu o sinal + como “cruz”, o ² (quadrado) como “dois em cima”, o módulo como “barra vertical”. Perguntei se poderia falar o nome dos sinais, e ela disse que não podia me influenciar. Pedi que armasse uma conta, mas ela não sabia o básico para acompanhar alguém no vestibular. Seria impossível terminar a prova a tempo. No final, tirei A, porque fui bem em humanas e nas interdisciplinares, mas chutei quase todas as questões de exatas.
Fui com meus pais reclamar da ledora para os administradores da prova. Soubemos que a moça era ledora havia vinte anos. Dezenove outros deficientes visuais já tinham feito a prova daquele jeito impossível. Pelo menos ela não era gaga como o ledor que acompanhou uma amiga minha na prova. Desisti de fazer a segunda fase na Uerj.
AGOSTO_Na sala de aula, minha amiga Clarissa me perguntou se eu já tinha assistido ao filme Era uma Vez em Hollywood, do Tarantino. Disse que não, porque quase nenhum filme tinha audiodescrição. Ela pesquisou na hora e me disse que oito cinemas no Rio disponibilizavam essa ferramenta. Fomos a um cinema em Botafogo, e depois voltamos várias vezes com outras duas amigas.
Audiodescrição é a única maneira pela qual posso assistir a um filme de forma independente, mas fico incomodada porque a descrição nunca é tão neutra quanto deveria. A visão da pessoa que descreve transparece um pouco. Na maioria das descrições, por exemplo, as únicas pessoas cuja raça é explicada são as negras. É comum usarem sinônimos ou eufemismos para dizer que alguém é gordo. Como eu não posso ler as legendas, só consigo assistir a filmes falados em português, inglês ou espanhol.
As plataformas de streaming não disponibilizam audiodescrição para todos os filmes. A Netflix só coloca em suas produções originais. Na Amazon Prime, nunca está disponível nos filmes que eu quero ver. A HBO tem poucos títulos acessíveis e seu sistema é muito ruim. No caso da HBO, para conseguir assistir a um filme com audiodescrição, eu tenho que usar dois aparelhos diferentes ao mesmo tempo: na HBO Go eles passam o filme, e na HBO In (“In”, de inclusive) só tem a audiodescrição, sem o filme. Então eu tenho que ligar dois aparelhos ao mesmo tempo e emparelhar, sincronizando a audiodescrição com o andamento do filme.
Prefiro ouvir podcasts de ficção porque eles já são produzidos para o meio sonoro.
SETEMBRO_Voltei a me assustar com as imagens mentais. Dessa vez foram soldados fascistas. Mas, como já tinha acontecido antes, depois de um tempo felizmente eles sumiram. Minha relação com essas imagens está mais tranquila agora, e parei de tomar o Daforin.
Fiz os vestibulares da PUC-Rio, da Fuvest e o Enem. Nessas provas, fiquei em uma sala sozinha com dois ledores e um fiscal. A PUC e a Fuvest não têm descrição de imagem. É preciso gastar um tempo injusto com questões que têm gráficos e figuras geométricas. O pior são as descrições das cadeias carbônicas, feitas mais ou menos assim: “Letra C, dois traços à direita, letra O, um traço à esquerda, letra H…” Tive direito a uma hora a mais de prova, o que no Enem dá trinta segundos a mais por questão. Não é o suficiente, e a competição é muito desigual.
Expliquei para os ledores, antes da prova, qual era a ordem de leitura que eu queria. Primeiro o enunciado da questão, depois o texto e por último as opções de múltipla escolha. Assim, eu não gastaria tanto tempo para achar uma informação de que precisasse. Nos três exames, ditei a redação, já que não pude levar o computador. Numa delas, a ledora me disse que o espaço tinha acabado e que eu não ia conseguir fazer a conclusão, o que retiraria duzentos pontos da minha nota. Cortei muitas palavras do texto e fiz uma conclusão de duas linhas. No fim, a ledora passou a redação para a folha da prova e me disse que estava sobrando espaço.
Quando cheguei para a prova da PUC, me perguntaram por que eu não tinha trazido o computador. Eu disse que tinha ligado para a faculdade duas vezes antes para perguntar se isso era possível e me falaram que não. Então me disseram que, no ano anterior, uma menina cega tinha levado o computador e pôde fazer a prova recorrendo a ele. Eu conheci essa menina, ela se chama Júlia e cursa direito. Ela me contou que conseguiu levar o computador também para a prova do Enem, mas que teve que entrar com um processo judicial para isso.
DEZEMBRO_Fiz uma viagem à Argentina com umas amigas, foi superlegal, e voltei ao Brasil na véspera do meu aniversário. Eu vinha evitando pensar que eu estava completando 18 anos, mas quando cheguei em casa, comecei a pensar que agora nada mais iria mudar: que eu tinha vivido a minha adolescência toda cega e ia começar a minha vida adulta cega, sem saber lidar muito bem com isso, sem estar completamente adaptada e ainda com todas as outras dúvidas que uma pessoa de 18 anos tem, e que nada disso iria se resolver. Decidi não fazer uma grande comemoração. Saí com uns amigos para beber, e só.
2020
MARÇO_Entrei para a Faculdade de Letras da PUC. Para mim, está sendo mais fácil estudar de modo online. Os professores têm que mandar os textos em arquivo digital para todos os alunos. Se estão em Word, PDF texto ou num site, leio sem problemas. Se o texto vem em PDF imagem ou é a reprodução fotográfica de um livro, peço para adaptarem. Com o leitor de tela, eu consigo saber quem está na sala online por causa dos nomes no Zoom, a ferramenta de videoconferência. Já estou acostumada a depender da tecnologia e do computador para receber a mesma informação que os outros alunos. Ouço os professores reclamando que é difícil se relacionar com vozes, porque os alunos desligam a câmera. Falei para uma professora que para mim é assim sempre, e que era de fato difícil. Ela disse que pensava em mim quando via um monte de avatares e não sabia a reação dos alunos.
2021
JANEIRO_Percebi que, ao longo desses anos, fiquei amiga de pessoas que também não podiam me ver, porque em geral conversamos por áudio ou texto, sem imagem. Eles não são cegos, mas estudam em outras escolas ou moram em outras cidades. Falo com eles por WhatsApp e telefone e, mesmo antes da pandemia, os encontrava muito pouco. Durante a quarentena, falei com muito mais gente do que quando podia sair de casa. E assim consigo entender mais por que toda comunicação é sonora ou textual.
MAIO_Mostrei a primeira versão deste diário para a minha madrinha. Eu nunca tinha falado direito sobre as imagens e palavras mentais. Ela pesquisou e encontrou a síndrome de Charles Bonnet, conversamos com um neurologista, e ele confirmou que eu tenho isso. Essa síndrome é associada à perda de visão e tem caráter neurofisiológico. Quem tem sabe que essas imagens são irreais e não comprometem o entendimento objetivo das coisas. Antes eu não explicava direito o que ocorria, para não acharem que sou doida. Muitas pessoas com a síndrome fazem o mesmo, por isso ela é bastante subnotificada, e muitos profissionais de saúde não sabem bem o que é.
Tenho alucinações visuais simples e complexas. A maioria é estática e colorida. Geralmente, não têm nenhuma relação com o que eu estou pensando, são involuntárias. Vejo muitos olhos e animais. À noite surgem coisas sobre as quais ouvi falar durante o dia. Eu consigo induzir as palavras, podendo escolher com quais cores as coisas aparecem. Fico aliviada de saber que é uma condição benigna.
SETEMBRO_No mês passado, o ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro, disse em entrevista à TV Brasil (e depois numa coletiva de imprensa) que os alunos com deficiência atrapalham o aprendizado dos outros na sala de aula, que existem alguns graus de deficiência que impossibilitam a convivência, e se declarou contra o inclusivismo. Isso tudo é muito violento e grave, mas o pior é saber que ele não é o único que pensa assim. Em todas as escolas que passei, percebi que eu era sempre uma perturbação.
Eu sou cega, mas minha visão muda o tempo inteiro. Nesse processo descobri que ver não é só enxergar com nitidez. Ver é a capacidade de compreender os fenômenos, e vai além da parte visual da realidade. Por meio da visão que ainda tenho, das imagens que já vi, dos meus outros sentidos, da tecnologia e das conversas com outras pessoas, pude desenvolver uma forma de ver mais livre e abrangente que antes.
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