O cachorro tentou salvar o dono, mas também foi picado. Na falta de socorro veterinário na cidade, os bombeiros não puderam transportá-lo. Hércules morreu lentamente, envenenado ILUSTRAÇÃO: NANCY NEHRING_GETTY IMAGES
Solidariedade fatal
Às vésperas do Réveillon, centenas de abelhas atacam um casal de idosos no interior de São Paulo
Armando Antenore | Edição 107, Agosto 2015
N
ada, nem o vazio da morte, me parece mais aterrador que a solidão dos hospitais. Mesmo quando abarrotados, centros cirúrgicos, salas de ressonância magnética, UTIs e consultórios se mostram desoladores. Que dizer, então, de um pronto-socorro quase às moscas, num pequeno município do interior, uma noite antes do Réveillon?
Pensava nisso enquanto segurava a mão daquela desconhecida. Eu, sentado numa poltrona. Ela, deitada sobre uma cama, de short e camiseta, sem nenhuma coberta. Ensimesmada, roçava obsessiva e alternadamente cada um dos pés na canela oposta – pés avermelhados, que ardiam e coçavam. Suas pernas também ostentavam manchas rubras, e o rosto… Lembrava uma das mulheres cubistas de Pablo Picasso: os olhos desalinhados pelo inchaço que tomara conta do lado direito.
Alguns metros adiante, um menino convalescia sob a vigilância da mãe. Respirando com dificuldade, a criança às vezes emitia um gemido longo e agudo. Somente nós quatro ocupávamos a enfermaria muito bem conservada.
A Unidade Mista de Saúde Monsenhor Jacob Conti – único hospital público de Jarinu, cidade paulista onde nos encontrávamos – entrara em funcionamento havia apenas três meses e àquela altura podia atender 500 casos diários, desde que relativamente simples. Ocorrências mais complexas seguiam para Jundiaí, a 25 quilômetros.
“Engraçado… Eu me sinto tão serena agora”, comentou a paciente, quebrando o silêncio que já durava dez minutos. “É que lhe aplicaram um sedativo, não se recorda? Uma injeção”, expliquei, ainda segurando a mão dela.
Pouco antes, a senhora de cabelos desgrenhados gritava em desespero, aturdida pela notícia que recebera de chofre.
“Uma injeção? Não, não me recordo.” Sem jeito, largou minha mão e permaneceu outros dez minutos calada. De repente, ergueu-se na cama. “Ele não está conseguindo partir… Tenho que ajudá-lo!”
“Seu marido?”
“Sim, o Juca. O meu velho… Não consegue aceitar que morreu. Vou acalmá-lo, pedir que não lute contra o irreversível, que se desligue logo da gente.”
Compenetrada, sentou-se na posição de lótus, inspirou profundamente e fechou os olhos. Depois de uns segundos, soltou o ar e inspirou de novo. Repetiu o ritual diversas vezes, à semelhança de um budista que confia (ou tenta confiar) nos benefícios da impermanência.
Cinco horas antes, eu vagabundeava sobre um colchão inflável na piscina da chácara em que iria celebrar a passagem de 2014 para 2015. “Dia de sol, inundado de sol! […] O dia fútil mais que os outros dias!” Os versos do simbolista português Camilo Pessanha, que aprendera no colégio e julgava esquecidos, saltaram intactos de minha memória e se fundiram com a música que ecoava do meu smartphone: “Uh, uh, uh, que beleza!/Que beleza é sentir a natureza!” Tim Maia Racional e Camilo Pessanha, Tijuca e Coimbra – nunca imaginei que pudesse criar um mashup tão inusitado. Sob o mormaço da tarde, acabei cochilando. Quando acordei, às 18h20, percebi um alvoroço próximo à entrada do sítio. O caseiro, Fausto Gomes Brandão, e seu afilhado chegavam esbaforidos da rua com uma notícia horrível: abelhas estavam atacando os moradores de uma propriedade contígua. “Chamem uma ambulância!”, berraram os dois, zanzando de lá para cá, à procura de fósforo ou isqueiro. “Vamos fazer umas tochas. O fogo deve espantar os insetos.”
De bermuda e chinelos, o produtor artístico Fernando Soares, o “Tubarão”, um dos oito integrantes de nossa turma, cobriu o tronco nu com uma capa improvisada, botou um chapéu e disparou em direção à chácara onde irrompera o ataque. Decidi acompanhá-lo, embora soubesse que não teria coragem de enfrentar as abelhas. Enquanto Tubarão se preparava para adentrar o sítio conflagrado, me uni à meia dúzia de vizinhos que se dispuseram a auxiliá-lo de fora, providenciando acessórios capazes de resguardá-lo melhor: calça de tecido grosso, luvas, botas, camisa de manga comprida, óculos de operário. Como Brandão e o afilhado, outras pessoas surgiram com tochas, mas ninguém ousou pisar na propriedade. Apenas Tubarão, já devidamente protegido, cruzou o portão e encarou o enxame. A distância, incrédulos e apreensivos, podíamos vê-lo arrastar um idoso desacordado.
Pelo relato do caseiro, compreendi o que acontecera: Joaquim Antonio Rocha, o Juca, dono da chácara, resolvera desentupir uma calha da espaçosa casa que dividia com a mulher. Subiu numa escada e não se deu conta do perigo que o rondava. Junto à calha obstruída, entre a laje e o telhado, havia uma colmeia. Bastou ele resvalar na colônia para que os insetos se considerassem em risco. Por coincidência, Brandão tocou a campainha do sítio exatamente quando o ataque se iniciara. Ele, que sempre visitava o casal, viu o amigo pular da escada, urrando e se debatendo, com as costas salpicadas de abelhas. Cambaleante, o homem ainda tentou mergulhar numa das duas caixas d’água que mantinha perto do jardim, mas não teve sucesso. Perdeu os sentidos assim que enfiou uma das pernas no recipiente.
Mal a mulher de Juca deixou a casa para atender a campainha, parte dos insetos a fustigou. Ela saiu correndo e se trancou num quartinho externo, onde costuma guardar tranqueiras. Antes de fechar a porta, suplicou: “Entra aqui, meu velho, pelo amor de Deus!” O marido não a obedeceu, provavelmente com receio de atrair mais abelhas à companheira.
Depois de arrastar Juca por uns 15 metros, Tubarão o carregou nos ombros e conseguiu enfim retirá-lo da chácara. As abelhas se dispersaram. No entanto, já não havia o que fazer. O sitiante estava morto. Tinha 74 anos e um olhar atônito – o último que a vida lhe reservara. Centenas, talvez milhares de ferrões perfuraram seu corpo, inclusive orelhas, pálpebras e lábios. A indumentária de Tubarão e as tochas ainda acesas reforçavam o caráter absurdo daquela cena. “Foi um dia de falsas alegrias.” Novamente, trechos do longínquo poema de Pessanha me tomaram de assalto, mas agora os versos proclamavam justo o oposto dos que recordara na piscina. “Um dia de inúteis agonias.” Só então notei que, no alto do portão, uma placa anunciava o nome da chácara: Recanto Pedacinho do Céu.
Cientistas estimam que aproximadamente 20 mil espécies de abelhas povoem a Terra. As pioneiras surgiram há pelo menos 100 milhões de anos. O inseto, portanto, é muito mais antigo do que nós – uma equipe de paleontólogos dos Estados Unidos, da Austrália e da Tanzânia divulgou em maio de 2013 que os primeiros esboços do homem contemporâneo apareceram cerca de 25 milhões de anos atrás. Daquelas 20 mil espécies, distribuídas pelo planeta inteiro, à exceção do Ártico e da Antártida, 10% habitam o Brasil. Entretanto, uma parcela das que se desenvolveram no país desmente algumas ideias que o senso comum associa às abelhas.
Tais variedades não produzem mel, não possuem ferrão e não formam colônias, preferindo viver sozinhas. Por outro lado, as que mataram Juca dificilmente poderiam se revelar mais óbvias. São as Apis mellifera, bastante corriqueiras tanto no hemisfério norte quanto no sul. Peludas, com corpo negro e listras amarelas, assemelham-se às abelhas de desenho animado. Agrupam-se em colmeias, que reúnem uma média de 50 mil insetos adultos, em temperatura de 32ºC, e nas quais impera não só uma rígida hierarquia social como a divisão de tarefas. Cabe à rainha gerar todos os indivíduos da comunidade após copular com os zangões, que respondem apenas pelo papel de reprodutores. Já as operárias – fêmeas inférteis que, juntas, compõem 96% da colônia – se encarregam do resto. Coletam o pólen das flores e o aproveitam como fonte de proteína para as crias da rainha. Recolhem também o néctar floral e, a partir dele, fabricam o mel, que fornece carboidrato às larvas. Ainda extraem das plantas outras duas substâncias: a água e o própolis, uma resina vegetal e antibiótica com que revestem o interior da colmeia a fim de protegê-la contra microrganismos. Não bastasse, dispõem de glândulas que secretam a cera e a geleia real. Com a primeira constroem os favos em que armazenam o mel; a segunda garante às crias um suprimento extra de proteína.
Medindo 12 milímetros de comprimento e pesando 60 miligramas, as operárias se responsabilizam igualmente pela defesa da colônia – função que, ao longo das últimas cinco décadas e meia, exercem de maneira bastante aguerrida no Brasil. As Apis mellifera desembarcaram por aqui em 1839. Trazidas de Portugal e Espanha graças à iniciativa do padre Antônio Carneiro, exibiam comportamento dócil e raramente se sentiam ameaçadas. Em 1956, porém, o agrônomo Warwick Estevam Kerr importou cerca de quarenta rainhas do leste africano e as abrigou numa floresta de Rio Claro, em São Paulo, sob controle, com a intenção de analisá-las. Acontece que as Apis mellifera da África têm o pavio curtíssimo. Produzem uma quantidade maior de mel, se comparadas às parentes ibéricas, mas se irritam facilmente. Durante um ataque, em meros trinta segundos, injetam oito vezes mais toxinas nos inimigos. “Lançando mão de uma analogia imprecisa, se fossem cachorros, as Apis da Europa seriam labradores boas-praças e as africanas, ferozes pit bulls”, resume o biólogo Osmar Malaspina, pesquisador do Centro de Estudos de Insetos Sociais, na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Reza a lenda, digna de romances de ficção científica, que em 1958 um técnico desastrado deixou escapar inúmeras rainhas das colmeias experimentais. “Ninguém jamais comprovou o motivo da fuga”, disse Malaspina. “Sabe-se, no entanto, que os exemplares da África cruzaram com os europeus e conceberam um híbrido, as Apis mellifera africanizadas.” As abelhas mestiças se alastraram depressa pelo Brasil, tornando-se majoritárias. Embora não se mostrem tão irascíveis quanto as egressas da floresta de Rio Claro, tampouco merecem ser classificadas de mansas, como demonstraram as que investiram contra Juca.
Logo depois que Tubarão atravessou o portão da chácara e nos informou que o sitiante morrera, alguns vizinhos se incumbiram de levar o corpo ao hospital. Naquele momento, a mulher de Juca continuava no quartinho, sem ter ideia de que o marido sucumbira às ferroadas. Precisávamos resgatá-la e, pior, contar-lhe o triste desfecho do episódio.
“Cadê meu velho, hein? Cadê? Ficou tudo bem, não? Cadê?” Repetida incontáveis vezes, num fôlego só, a sequência de perguntas atestava que a senhora permanecia em choque mesmo já estando livre das abelhas. Ela sacudia os cabelos de um jeito frenético, como se ainda quisesse espantar os insetos. Sofrera muitas picadas, mas em número consideravelmente menor que o marido. Nenhum de nós teve coragem de lhe comunicar a tragédia.
Enquanto tentávamos apaziguá-la, a ambulância afinal chegou. Os paramédicos acharam mais prudente conduzir a mulher até o hospital. “Não custa examiná-la e lhe ministrar um antialérgico”, justificaram. “Quem vai acompanhá-la?” Num reflexo, sem dimensionar a situação embaraçosa que me aguardava, levantei o braço. “Pode subir”, autorizou o motorista. Sentei ao lado da maca. A paciente, um pouco menos agitada, me sorriu de leve.
“Como a senhora se chama?”
“Maria Circe Rocha.”
“Circe? Feito a personagem da Odisseia?”
“É. Meu pai, apesar de analfabeto, gostava da Grécia Antiga. Batizou todos os filhos com nomes gregos.”
No célebre poema épico, a feiticeira Circe habita a ilha de Eeia e possui o dom de transformar homens em animais. Ou melhor: a conversão se dá apenas fisicamente, uma vez que os enfeitiçados preservam a racionalidade. Quando se depara com a ilha, após a Guerra de Troia e no retorno à saudosa Ítaca, Ulisses – o herói da narrativa – determina que 23 tripulantes de seu navio desembarquem para reconhecer o território. Vinte e dois acabam virando porcos. Horrorizados, experimentam o conflito entre cultura e natureza – uma batalha que sempre marcou (e sempre marcará) a trajetória da humanidade. Na pele dos suínos, os marinheiros conservam-se pensantes e seguem observando o mundo sob o viés da linguagem, mas se veem presos à condição de bichos. Juca, ainda que por outro caminho, vivenciara confronto idêntico e de modo igualmente radical. Assistiu, na própria carne, à selva derrotar a civilização.
A ambulância corria pelas ruas desertas de Jarinu. Maria Circe cruzou os braços sobre o peito e se encolheu, como uma criança assustada. Os sacolejos do furgão a enjoavam.
“Eu pedi tanto… ‘Esqueça a calha, meu velho! Você não tem mais idade para subir no telhado. Depois do Réveillon, a gente resolve o problema. O Fausto certamente nos ajudará.’ Adiantou? O Juca não descansa nunca. É um joão-de-barro, muito ativo, muito fuçador. Gosta de construção – de tijolo, madeira, pedra, concreto.” Contou que o marido se aposentara como bancário e que estavam casados havia cinquenta anos. “Bodas de ouro… Eu tinha 17, acredita? Em 2009, deixamos São Paulo e nos mudamos para o interior. Cansamos da metrópole. Mas nossas duas filhas e os cinco netos continuam por lá.”
Assim que a ambulância estacionou, meu coração acelerou. O corpo de Juca provavelmente repousava no mesmo hospital em que Maria Circe acabava de entrar. Um médico de jaleco verde, com a barba por fazer e ar de cansaço, confirmou minhas suspeitas. De fato, o sitiante jazia ali, numa sala pegada à enfermaria onde puseram a paciente. O próprio médico se encarregou de lhe dar a notícia. Escolheu termos frios (parada cardiorrespiratória, impossibilidade de ressuscitação, óbito) e se retirou. Maria Circe desabou num choro doído. “Não é verdade!”, bradava. “O Juca não iria embora sem se despedir de mim!”
O ferrão da Apis mellifera africanizadase localiza no fim do abdômen. Tem o formato de uma flecha e liga-se à bolsa em que o inseto armazena veneno. Durante um ataque, a operária espeta o ferrão na vítima. Por meio dele, inocula 0,001 mililitro de veneno, que uma glândula produz continuamente. “Embora irrisória, a quantidade se revela capaz de desencadear um quadro alérgico”, afirmou o biomédico Daniel Carvalho Pimenta, do Instituto Butantan, em São Paulo. A alergia geralmente provoca dor, coceira, inchaço e vermelhidão no local da picada, efeitos que um antialérgico combate com facilidade. Entretanto, se a vítima for hipersensível, a reação se alastra e afeta todo o organismo. Ocorre, então, um choque anafilático, caracterizado por taquicardia, redução da pressão arterial, distúrbios circulatórios e até edema de glote – dilatação parcial da laringe que impede a passagem de ar para os pulmões. Caso o socorro tarde, os distúrbios podem ser fatais.
Uma única abelha, ainda que cause alergia, não consegue envenenar nem os humanos, nem boa parte dos animais. Só que as Apis costumam agir em bloco. Se mil insetos participarem de uma investida, por exemplo, injetarão, juntos, 1 mililitro de toxina. “Tal quantia é praticamente a mesma que uma cascavel introduz num homem ou num boi quando o morde”, comparou o pesquisador do Butantan. Em outras palavras: mil operárias suscitam uma intoxicação tão letal quanto a das serpentes.
Entre as centenas de substâncias que compõem a peçonha das abelhas, duas se destacam pela agressividade: a melitina e a fosfolipase. Separadas, já acarretam estragos consideráveis. Unidas, potencializam-se mutuamente e contribuem para ocasionar os sintomas do envenenamento: torpor, destruição de tecidos musculares, insuficiência respiratória e colapso renal.
A intoxicação quase sempre leva à morte porque inexiste um soro que neutralize o veneno. O Brasil, aliás, é um dos países onde os estudos para desenvolvê-lo se encontram mais avançados. A Unesp de Botucatu e a de Rio Claro trabalham paralelamente na busca do antídoto, ambas em parceria com o Butantan, mas não há estimativa de quando irão concluir as pesquisas.
Como Juca morreu cinco ou dez minutos depois de alcançar a colmeia, tudo indica que sofreu um choque anafilático. “A reação alérgica costuma se manifestar depressa. Já as primeiras consequências do envenenamento demoram cerca de uma hora para aparecer”, esclareceu Pimenta.
Com uma população de 26,9 mil habitantes, a diminuta Jarinu – um município predominantemente agrícola, cuja economia gira em torno dos hortifrutigranjeiros – nunca registrara mortes humanas por ataque de abelhas. Pelo menos é o que indicam os levantamentos da Defesa Civil. O órgão mantém há cinco anos um banco de dados sobre acidentes que envolvem animais peçonhentos. “A cidade, infelizmente, não contabilizava as ocorrências antes de 2010”, afirmou Renato Marchesin Mansano, então secretário Municipal de Segurança Pública. O infortúnio de Juca surpreendeu as autoridades locais, tanto que a prefeitura decidiu consultar lavradores mais idosos para saber se lembravam de casos parecidos na região. “Ninguém se recordou de nada”, disse Mansano.
Segundo o Centro de Vigilância Epidemiológica Professor Alexandre Vranjac (CVE), houve 2 293 acidentes com abelhas no estado de São Paulo entre 1º de janeiro e 18 de dezembro de 2014. Só dois resultaram em morte. No mesmo período, aconteceu um número menor de acidentes com cobras (1 722), que provocaram o dobro de óbitos (4). Em compensação, os escorpiões responderam por 10 949 ataques e as aranhas, por 3 136. A letalidade desses aracnídeos, porém, se mostrou bastante pequena. Os escorpiões causaram uma única morte e as aranhas, nenhuma.
Se recuarmos no tempo, verificaremos que o ranking de letalidade permanece igual no estado. Enquanto as cobras acarretaram 87 óbitos de 1998 até 2014, as abelhas ocasionaram 37. Os escorpiões mataram 32 pessoas e as aranhas, 7. Os dados do CVE também permitem constatar que o número de acidentes com abelhas está aumentando quase ininterruptamente desde o fim do século XX. Foram 600 em 1998 contra os 2 293 do ano passado – um salto de 282%. O que justificaria a curva ascendente? “Desconheço estudos que tratem do assunto, mas talvez o crescimento se deva à expansão das cidades”, supõe o biólogo Osmar Malaspina. “Em diversos pontos do estado, as áreas urbanas avançam sobre zonas rurais desabitadas, sem lhes suprimir obrigatoriamente todos os atributos bucólicos. Como existe uma proporção maior de insetos no campo, sobem as chances de as abelhas atacarem os seres humanos que se deslocaram para lá.”
Passava das 21h30 quando Maria Circe abandonou a posição de lótus, interrompeu a sequência respiratória e se deitou de novo na cama. “Pronto. Espero que agora o Juca se tranquilize. Mandei-lhe um recado sem palavras: ‘Vá, meu velho! Não resista!’ Entre nós, nunca houve necessidade de palavras.”
“A senhora pratica ioga ou meditação?”
“Um pouco das duas. E gosto de ler sobre o kardecismo. São as armas que encontrei para ver se calo de vez a maritaca.” Como eu estranhasse a imagem, ela explicou: “Todos criamos, sem perceber, uma maritaca dentro da cabeça, um bicho tagarela que não se cansa de repetir perguntas do tipo: ‘Por que você fez aquela besteira? Por que não emagrece? Por que desiste tão facilmente dos desafios? Por que não pensa no futuro? Por quê? Por quê? Por quê?’ Uma ave infernal e persistente, que só serve para nos inundar de cobranças.”
“A maritaca da senhora anda muito faladeira?”, quis saber. “Nem tanto. Já sossegou um bocado. Fui aprendendo como aquietá-la no decorrer dos anos. Mas a do Juca não parava de atormentá-lo. Meu velho se preocupava demais com as perdas. Tinha um apego excessivo à família. Temia que algo nos acontecesse, que o deixássemos. Queria a mulher, os filhos e os netos sempre por perto. Também receava bastante a própria morte. Eu tentava reconfortá-lo: ‘A vida é uma lâmpada que jamais estraga. Quando apagar aqui, vai acender em outro canto.’ Não funcionava. Ele continuava se angustiando. Ultimamente, procurava evitar a rua. Medo de bandido, sabe?”
Contou, então, que o marido sofrera cinco assaltos em São Paulo. Num deles, desarmara o ladrão com golpes de capoeira. Era baiano de Caturama, uma cidadezinha minúscula, no sul do estado, e se convertera havia décadas à umbanda. “Dispunha de um guia espiritual extremamente zeloso. Só que hoje… O Juca morreu justamente no lugar que considerava mais seguro: o nosso sítio.”
Natural de Marília, interior paulista, ainda menina Maria Circe manifestou os primeiros sinais de um problema grave, a osteomielite, uma inflamação dos ossos. “Morei num hospital entre os 2 e os 5 anos. Depois, dos 5 até os 12, vivi em casa, mas amargava extensos períodos de internação. Usei um colete de gesso durante toda a infância.” Para se locomover, precisava se deitar de bruços sobre um carrinho de rolimã e empurrá-lo com as mãos. “Enxergava apenas os pés dos outros enquanto deslizava. Por isso, adoro sapatos – de homens, mulheres, crianças, qualquer um. Quando completei 14 anos, já saudável, conheci o Juca, amigo de meu irmão.” Ele se apaixonou de cara. Ela, não. Resistiu à beça, mas acabou seduzida pela abnegação, a personalidade acolhedora, a dedicação absoluta do moço. Faz sentido: uma garota que enfrentou a aridez dos hospitais e passava dias longe da família sucumbiu, afinal, aos encantos de um rapaz com aguçado instinto de proteção. “Logo nos casamos.”
O casamento precoce, porém, não a impediu de terminar os estudos. Formou-se em pedagogia, lecionou na rede pública e dirigiu vários colégios. “Plantei uma porção de sementes pelo mundo…”
Maria Circe calou-se por um instante e observou a mãe que cuidava do menino ao lado.
“Posso lhe perguntar uma coisa? Promete que me responde com sinceridade?” Prometi.
“Isso está mesmo acontecendo? Não é um delírio?”
“Não, infelizmente não é.”
“Que triste, Jesus! De repente, num dia qualquer, o absurdo nos surpreende e nossas certezas viram do avesso…”
Silenciou-se outra vez para, em seguida, dizer:
“Pensando melhor, acho que meu velho arranjou um jeito de se despedir de mim. Ontem à noite, tive um sonho. Sete indivíduos de branco carregavam o Juca e me falavam: Ele irá conosco, mas você permanecerá aqui. Não se preocupe. Seu marido ficará em paz.”
Como outros insetos gregários, as Apis mellifera africanizadas só atacam quando julgam que a colônia está em perigo. O problema é que mesmo situações inofensivas podem lhes parecer ameaçadoras. Osmar Malaspina explicou que, caso um animal ou uma pessoa se aproxime demais da comunidade, as operárias responsáveis pela defesa vão reagir de imediato, ainda que o suposto inimigo não toque em nada. “Difícil precisar a distância segura para chegar perto delas, depende da suscetibilidade de cada grupo. Por via das dúvidas, recomendo que tanto os humanos quanto os bichos de estimação e o gado permaneçam, no mínimo, a 500 metros de distância de uma colmeia.”
A irritação das abelhas aumentará se o rival hipotético (e demasiadamente próximo) emitir determinados ruídos. “As Apis odeiam o som de motor. Não por acaso, são comuns as investidas contra motoristas de tratores”, afirmou o biólogo da Unesp. Gritos também as colocam em alerta – à semelhança de movimentos bruscos. Assim, os ataques pioram quando as vítimas se comportam do modo mais previsível numa circunstância dessas: berrando e se agitando. Perfumes ou roupas escuras e ásperas exasperam igualmente os insetos – daí os apicultores trajarem macacões claros. “Ignoramos a razão de certos ruídos, aromas e cores acirrarem o instinto protetor das operárias, mas o fato é que o acirram”, disse Malaspina.
De acordo com o cientista, alguns testes demonstraram que as abelhas podem perseguir os inimigos por quase 2 quilômetros. Também comprovaram que a fumaça resultante de qualquer combustão as desorienta. O caseiro, seu afilhado e os vizinhos do sitiante, portanto, fizeram bem quando confeccionaram tochas para dispersar os insetos. “Crendices populares apregoam que as Apis não atacam de noite. Bobagem”, advertiu. “As arremetidas independem do horário, já que as atividades dentro de uma colmeia não cessam nunca.” Com tantas variáveis em jogo, apenas especialistas devem correr o risco de remover uma colônia que represente ameaça. “O ideal é convocar a Defesa Civil ou um apicultor”, orientou Malaspina. “Os bombeiros só atuam nos casos em que há vítimas.”
Hoje se sabe que as abelhas desenvolveram um sistema de comunicação refinado. Normalmente, dialogam entre si por meio de “danças” – voos cujas diferentes coreografias transmitem informações – e de hormônios específicos, os feromônios. Tais substâncias exalam cheiros, e cada odor passa uma orientação. Há, por exemplo, aquele que sinaliza fontes de alimento e o que serve de GPS, norteando os insetos no espaço.
Quando ocorre um ataque, principalmente dois feromônios entram em cena. Logo na “porta” da colmeia, postam-se operárias que parecem inofensivas e ociosas. São as sentinelas. Estão ali para salvaguardar o grupo. Assim que notam a proximidade de um antagonista, erguem o abdômen e soltam o feromônio de alarme. Seu cheiro espalha-se por toda a comunidade, disseminando mensagens do gênero: “Atenção! Perigo à vista!” Se o inimigo não recuar e a situação ficar muito temerária, uma das guardas sai da colônia e o ferroa. Mal deixa o ferrão espetado na pele do oponente, libera o feromônio de defesa, que adverte as demais sentinelas: “Eis o nosso alvo!” O batalhão, já de sobreaviso, avança em peso e castiga o adversário até considerá-lo derrotado. Excepcionalmente, operárias incumbidas de outras tarefas podem abandonar as ocupações habituais e engrossar o pelotão das guardas. O curioso é que as participantes das investidas agem, em boa parte, à maneira dos kamikazes. Aquelas que picam a vítima morrem logo depois por perderem, durante o ataque, não apenas o ferrão como o intestino.
Uma operária costuma viver entre quarenta e 45 dias. Desempenhando um tipo de função em cada momento da existência, vira sentinela pouco antes de atingir a meia-idade. “Veja o tamanho do sacrifício que as guardas fazem”, ressaltou Malaspina. “Para preservar o grupo, se lançam à morte relativamente jovens, com uns vinte dias de vida. Trata-se de um gesto bastante altruísta, sobretudo quando levamos em conta que as operárias, inférteis, estão defendendo não os próprios descendentes, mas os da rainha.” A desgraça de Juca significou o triunfo da solidariedade.
Às 22 horas, um policial militar adentrou a enfermaria. Precisava colher alguns dados sobre o incidente. Enquanto redigia o boletim de ocorrência, a Defesa Civil e os bombeiros terminavam a varredura da chácara sem localizar a colmeia que se rebelara. Possivelmente, as abelhas partiram após a luta, em busca de um porto menos tumultuoso. Os homens encontraram, porém, um animal agonizante próximo às caixas d’água. Era Hércules, o cão do casal. Branco, lembrava um dogue alemão pela solidez e pelo porte altaneiro. “Não conseguimos identificar a raça exata dele”, me relatou o agente da Defesa Civil que se encarregou do caso. “Um cachorro tão bonito…” Crivado de ferrões, Hércules não sofreu um choque anafilático como o dono. Amargou, por isso, os efeitos terríveis e vagarosos do envenenamento. “Vocês o deixaram lá, se debatendo?”, indaguei, aflito. O agente confirmou com um meneio de cabeça e explicou, resignado, que não tinha ordens para transportar bichos. Nem a Defesa Civil nem os bombeiros poderiam fazê-lo, pois em Jarinu inexistem hospitais ou abrigos públicos que prestem socorro veterinário. “E clínicas particulares? Deve haver pelo menos uma na cidade. Vocês não tentaram acioná-la?”, insisti. Há quatro, de acordo com o agente, só que nenhuma funcionava às vésperas do Réveillon. Na manhã seguinte, o caseiro resgataria o corpo de Hércules e o enterraria.
As filhas do sitiante, avisadas da tragédia, se deslocavam de São Paulo para Jarinu quando me dei conta de que, entre mim e Maria Circe, não pairava mais qualquer constrangimento.
“Você talvez ache esquisito, mas o Juca acabou de atender minhas súplicas.”
“Aceitou a morte?”
“Tenho certeza. O fio de prata que o ligava à Terra finalmente se rompeu. Meu velho já pode mexer com tijolo, madeira, pedra e concreto lá do outro lado.”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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