ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Solo no sertão
A poeta Cida Pedrosa entrelaça memória, música e política
Consuelo Dieguez | Edição 176, Maio 2021
Foram duas emoções. A primeira, no dia 26 de novembro do ano passado, quando o seu Solo para Vialejo foi anunciado vencedor, na categoria Livro do Ano, de um dos principais prêmios literários do país, o Jabuti. A poeta Cida Pedrosa, que assistia à cerimônia de premiação pelo computador, em sua casa no Recife, demorou a entender o que estava acontecendo. Foi preciso que seu filho, Vladimir, que acompanhava o evento pela tevê, na sala, com o resto da família, gritasse: “Mãinha, você ganhou!”
Cida Pedrosa se diverte ao relembrar aquele momento. “Eu saí gritando ‘Jabuti, Jabuti’ pela casa, feito criança, seguida dos meus dois filhos, minhas noras e meu companheiro, que faziam coro com a minha alegria”, contou, perguntando-se, até agora incrédula: “Como imaginar que um livro de poesia, a mais marginal das artes literárias, seria escolhido o livro do ano?”
A segunda e talvez mais intensa emoção foi a homenagem que Pedrosa recebeu dos músicos de sua cidade natal, Bodocó, no sertão de Pernambuco, a 640 km do Recife, quando lá esteve para o lançamento do livro, em 3 de dezembro.
Bodocó é o tema de Solo para Vialejo, que começa com a diáspora de índios, negros, judeus e holandeses do litoral para o sertão, para escaparem da perseguição dos brancos, da Igreja e da Coroa portuguesa, e se mescla com as memórias afetivas de Pedrosa, que viveu na cidade até os 14 anos. As lembranças são entrelaçadas pela música e os músicos que povoaram o imaginário da menina e da cidade.
A música dá nome ao livro – Solo para Vialejo significa solo para gaita. E a Jazz Band União Bodocoense, que existiu na cidade entre os anos 1940 e 1970, é uma das referências recorrentes da obra. O sax de seu miguel/o sax de otacílio rodrigues/o clarinete de raimundo maciel/os negros tocavam banjo, os negros tocavam banjo/os negros tocavam os negros sem nome tocavam banjo/jazz band/jazz band/jazz band/jazz band união bodocoense o símbolo delicado escrito/no bombo indicava que a borboleta azul pousou ali, escreve Pedrosa no livro, cuja capa traz uma foto da banda.
Pois a Jazz Band União Bodocoense saiu da memória para se materializar na noite de autógrafos de Pedrosa em Bodocó. Não com os músicos originais, que já morreram, mas com seus descendentes, que se juntaram para homenagear a poeta. Entre eles o filho de Seu Miguel, o maestro da banda desde a fundação até o fim. “Foi emocionante ver o Miguel Filho e uma mocinha de voz linda, neta de outro músico da banda, se apresentarem para mim”, disse a poeta.
Os músicos tiveram ainda o cuidado de selecionar para a apresentação todas as canções citadas no livro, como Negro Amor – a versão de Caetano Veloso para It’s All Over Now, Baby Blue, de Bob Dylan –, além das de Etta James, Pixinguinha e Wanderléa. “Foi muito lindo, muito delicado”, recordou Pedrosa, comovida. “A cidade se preparou para me receber. As pessoas vinham falar comigo na rua, me cumprimentar. Até os mais jovens. Nunca vou esquecer aquele dia.”
Embora tenha deixado Bodocó há 43 anos, Maria Aparecida Pedrosa Bezerra, 57 anos, não abandonou suas raízes. Alguns de seus irmãos ainda vivem na cidade, que ela visita quatro vezes ao ano. “Tudo lá me emociona”, afirmou. Mas como uma banda de jazz pôde florescer no sertão pernambucano? “Simples”, ela disse. “No fim da Segunda Guerra, as rádios passaram a tocar jazz, que era a música dos vencedores. E Bodocó, com histórico de músicos talentosíssimos, se encantou pelo ritmo.” Depois da Jazz Band União Bodocoense, outros grupos, com outros ritmos, surgiram para animar as festas no clube da cidade.
A poeta não tem dúvida de que seu processo criativo está relacionado às lembranças que guarda da cidade e às histórias que lhe foram contadas na época em que lá viveu. “Eu morava em um sítio. Não tinha energia elétrica. Eu tinha boneca de sabugo de milho. Acho que a imaginação ajuda no processo de criação. Você não deseja o que não conhece. A desgraça do capitalismo é isso: te bombardeiam com possibilidades, e a juventude passa a desejar todas elas”, disse Pedrosa, que é assumidamente comunista – no ano passado foi eleita vereadora no Recife pelo PCdoB (Partido Comunista do Brasil). “Nós não tínhamos televisão e, portanto, não tínhamos desejos de consumo.”
Ela continuou: “Na verdade, desejávamos ouvir histórias que meus pais contavam. Nós sonhávamos também com a chegada de Seu Zé Pedro, porque ele era o melhor contador de história da região e, quando nos visitava, era a maior festa das nossas vidas. Nós desejávamos a chegada do inverno para tomar banho de chuva e correr na estrada com a água batendo na bunda. Nós desejávamos subir no pé de umbu. Eram esses os nossos desejos. Como não tinha banheiro na casa, eu fazia xixi no terreiro. Era tão bom fazer xixi na madrugada, no friozinho, olhando para aquele céu estrelado e vendo a estrela-d’alva às quatro da manhã. O mundo era todo seu.”
O encanto pela poesia, que Pedrosa descobriu aos 14 anos, ao escrever seu primeiro poema para o jornal da escola, já no Recife, vem de tudo isso. E vem ainda da influência dos pais. A mãe, Isabel Pedrosa Bezerra, descendente de indígenas, apesar do português machucado escrevia lindas cartas. A poeta me falou de uma, em especial, enviada quando teve o primeiro filho. “Minha mãe comparava a maternidade com as andorinhas. Porque as andorinhas só andam juntas. Ela fez a metáfora de que, ao ter meu filho, eu não era mais uma pessoa, e sim uma andorinha. Porque, tendo filho, você nunca fica só. Mesmo distante dele, o filho está dentro de você.”
Seu pai, Francisco de Assis Bezerra, de “lindos olhos azuis”, só frequentou o primeiro ano da escola, mas fez questão de que os filhos estudassem (a poeta é formada em direito). “Ele era muito mulherengo, mas era maravilhoso e tocava gaita lindamente”, contou. “É dele que vem este meu lado bluseiro. Do meu pai, que fazia solo para vialejo.”