CRÉDITOS: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Sonho orgânico
A receita de uma cafeicultora para superar a dor
Ana Clara Costa | Edição 207, Dezembro 2023
A mineira Maria do Amparo Drumond Ambrósio tem 66 anos, nome pomposo e parentesco ilustre. Apesar do “ême” a menos no sobrenome, sua avó materna é prima do poeta Carlos Drummond de Andrade. A vida de Amparo, porém, está mais para uma novela do que para um poema modernista.
Filha de um agricultor e uma professora, ela nasceu nos arredores na cidade de Lajinha, na Zona da Mata mineira, e mudou-se para o Rio de Janeiro na juventude, em busca de trabalho. Como bancária, passou a integrar o sindicato da categoria, engajou-se na militância política e se indignava com a desigualdade social. Conheceu o médico gaúcho Luiz Augusto Facchini, que também vivia no Rio, e se apaixonou. Os dois se casaram em 1978 e foram viver na terra natal dele, Pelotas, no Rio Grande do Sul.
Nos anos 1980, quando Facchini foi para o México fazer um mestrado em medicina social, a esposa o acompanhou. Ficou encantada com a história do país, em particular com seu passado revolucionário. “A Revolução Mexicana foi em 1910, antes da bolchevique. O que Emiliano Zapata e Pancho Villa fizeram foi o que chamavam de revolução bola, que vinha rolando do Norte para o Sul”, diz ela, animada ao relembrar a história da América Latina. “Eu fiquei deslumbrada. Não haviam me ensinado nada disso na escola.”
Em 1986, de volta a Pelotas, ela decidiu engravidar. No ano seguinte, nasceu Gil, de parto normal, amamentado no peito até os 2 anos. Amparo dividia-se entre a rotina familiar, a prática da cerâmica, sua paixão, e as aulas de artes que lecionava. A vida transcorria bem para a família, que se dividia entre Lagoa dos Patos, bairro de famílias abastadas de Pelotas, e um sítio em Lajinha, onde ela cultivava árvores frutíferas e uma pequena lavoura de café.
Quando Gil passou no vestibular de cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2005, Amparo ficou com o ninho vazio e decidiu investir seu tempo no sítio. Um dia, cismou em transformar a lavoura de café convencional em orgânico. “O que eu tinha ali era envenenado. Aí eu peguei os livros da Primavesi e comecei a estudar. Gil me dava muita bibliografia também”, conta. Ana Maria Primavesi foi uma engenheira agrônoma austríaca que se radicou no Brasil e se tornou pioneira da agroecologia e do manejo natural da terra no país.
Em 2015, os astros se alinharam para que Amparo realizasse seu sonho: apareceu na Cooperativa dos Cafeicultores da Região de Lajinha o colombiano Juan David Collazos, especializado na produção de cafés especiais. A visita de um especialista àquela área de Minas, na divisa com Espírito Santo, foi, na expressão de Amparo, “um auspício luxuoso”. Para solicitar a ajuda do colombiano, ela lhe mandou uma cartinha e dois abacates de seu pomar. Collazos topou na hora. Amparo era a única mulher cafeicultora da região e a primeira a pensar em fazer ali uma plantação de café orgânico.
Iniciaram-se então os procedimentos para o tratamento e a transformação do solo, castigado por anos de agrotóxicos. Ainda em 2015, veio a primeira colheita e a primeira torrefação. Foi Gil quem desenhou a etiqueta da embalagem para o Amparo’s Coffee (ela avaliou que o nome em inglês facilitaria a exportação). A cafeicultora estava radiante com o avanço da empreitada. Mas seu chão cedeu em 8 de maio daquele ano, quando um acidente tirou a vida de seu único filho. “Quando perdi Gil, da forma que perdi, eu morri. Morreu a professora de arte, morreu a ceramista, eu morri.” (Ela não quis falar sobre a causa da morte, dizendo ser muito dolorosa.) No auge da dor, resolveu consultar-se com uma psiquiatra e passou a tomar remédios para dormir, para acordar, para aguentar a vida. Sua mãe ficou alarmada com o aspecto “abobado” da filha supermedicada.
Para Amparo, 2016 foi um ano trágico na família, na política, no clima. “Meu filho partiu, deram golpe na Dilma, uma seca se abateu sobre o meu sítio.” Mas um dia ela acordou decidida a se reerguer. “Amparo, sai desse lugar. Viver é um privilégio”, disse para si mesma. Buscou socorro em seus livros favoritos. “Eu me lembrei de Cem anos de solidão, de García Márquez, dos romances de Machado de Assis, dos poemas de Cecília Meireles”, conta. “E mudei de vida.”
Sua psiquiatra recomendou o desmame paulatino da medicação. Ela, porém, recusou. “Desmame porra nenhuma. Joguei tudo na descarga e parti para as ervas: erva cidreira, mastruz, além de muita cerveja. E plantava, plantava… Cada flor que nascia era meu filho que estava vivendo.”
Apenas dois anos depois de iniciar o plantio orgânico, a torra de Amparo se classificou entre as cinquenta melhores do país na Semana Internacional do Café, principal evento brasileiro do setor. Ela ficou feliz, mas também apreensiva. “Aquilo me deu uma angústia, ao pensar que teria que manter aquela qualidade todo ano.”
Além do trato correto do solo, o segredo da boa qualidade, segundo a cafeicultora, é a valorização dos funcionários, aos quais ela se refere como “companheiros”: “Eles precisam se sentir tão importantes quanto o nosso café.” Ela emprega dois “companheiros” na roça para fazer os tratos culturais, a adubagem e a pulverização, mas a colheita é feita só por mulheres. Amparo diz que elas são mais caprichosas e colhem sem “detonar a planta”. E conta que a melhor profissional da região é uma senhora de 81 anos, Margarida. “No café orgânico, colhemos só as bolinhas vermelhas, as verdes não.” A colheita seletiva requer mais investimento, e essa é uma das razões pelas quais o café orgânico é mais caro.
Quando produzia o café convencional, Amparo comercializava as sacas por intermédio da cooperativa local. Com o orgânico, teve de participar diretamente da venda. Em Pelotas, onde passava pelo menos seis meses do ano com o marido, ela colocou as embalagens de café no cesto de uma bicicleta e foi vender de porta em porta. Estava apreensiva porque sabia que a cultura local privilegia o chimarrão e não contemplava café de boa qualidade. “Eu falei para mim mesma: ‘Amparito, você vai ensinar esses pelotenses a beber café.’” Sempre acompanhada da cadela Lola, sua grande companheira depois da morte do filho, ela chamava a atenção dos vizinhos com um “sininho de pescar traíra” na bicicleta. Deu certo. Logo começou a receber encomendas dos mercadinhos locais e, hoje, diz ela, “os pelotenses acham chique tomar café orgânico”.
Seu café também é vendido em lojas no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, e pode ser encomendado pelo site da marca, a 30 reais o pacote de 250 gramas (com o frete, sobe para cerca de 50 reais). Auxiliada nos negócios pela irmã, Márcia (“ela é a minha Marlene Mattos”), Amparo confia que suas vendas vão prosperar com a nova geração de consumidores que prefere energizantes naturais a bebidas alcoólicas e tem descoberto os benefícios do consumo de cafés especiais. Por enquanto, as vendas são suficientes apenas para encerrar o mês no zero a zero. “Para mim, sobra o quê? A satisfação de viver, a alegria de viver”, diz.
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