O Salar de Uyumi, uma vasta planície de sal no sudoeste da Bolívia, contém a maior reserva de lítio do mundo. "O Estado nunca abrirá mão da soberania em relação ao lítio", disse o presidente Evo Morales FOTO: FABIO CUTTICA_CONTRASTO
Sonhos de lítio
A Bolívia se tornará a Arábia Saudita da era do carro elétrico?
Lawrence Wright | Edição 45, Junho 2010
No sul da Bolívia, há uma montanha chamada Cerro Rico. É uma rocha pálida e calva, riscada por caminhos de terra que se entrecruzam encosta acima como cadarços de sapato. Mais de 4 mil túneis de mina escavaram a tal ponto o interior da montanha que ela corre o risco de desabar. A base é rodeada de casebres que se espalham até a velha cidade de Potosí, um Patrimônio da Humanidade. Evo Morales, o presidente da Bolívia, disse-me há pouco tempo que, para ele e seus compatriotas, Potosí é “um símbolo de pilhagem, de exploração, de humilhação”. A cidade representa uma Bolívia que poderia ter sido um país que tivesse capitalizado sua extraordinária riqueza mineral para se transformar numa potência industrial. Uma Bolívia que poderia ser imaginada com facilidade em 1611, quando Potosí era uma das maiores cidades do mundo, com 180 mil habitantes – mais ou menos o tamanho de Londres na mesma época.
Embora Potosí tenha surgido como uma cidade de mineiros, com as tabernas e as casas de jogo que acompanham os homens da fronteira, em pouco tempo construiu igrejas e teatros magníficos, e mais de uma dúzia de escolas de dança. De meados do século XVI a meados do XVII, metade da prata extraída no Novo Mundo vinha de Cerro Rico. Carlos Mesa, o historiador que ocupou a presidência da Bolívia de 2003 a 2005, contou-me que, “por todo o império espanhol dizia-se ‘Isto vale uma Potosí’, quando se falava de sorte ou riqueza”. Hoje Potosí é um dos lugares mais pobres daquele que é há muito tempo um dos países mais pobres da América do Sul.
Do lado de lá da fronteira da Revolução Industrial, há outra cidade cuja promessa de grandeza jaz em ruínas: Detroit. Antes mesmo que o primeiro Oldsmobile Curved Dash emergisse da linha de montagem, em 1901, tornando-se o primeiro carro americano produzido em massa, Detroit já era um vistoso centro industrial, com suas imensas fábricas de ferro, cobre, vagões de carga, navios, cerveja e produtos farmacêuticos. Seguindo os passos do Oldsmobile, fabricantes de carros como a Ford, a Packard e a Cadillac mudaram a economia americana. Mas a glória de Detroit foi incrivelmente passageira. A cidade tem hoje metade do tamanho que tinha há cinquenta anos. Duas das “Três Grandes”, a GM e a Chrysler, foram à bancarrota no ano passado, e todas elas reduziram drasticamente o número de funcionários.
O índice de desemprego em Detroit é de 15%, a proporção de assassinatos por habitante é a quarta maior dos Estados Unidos e cerca de um terço dos seus moradores vive na pobreza. Uma quantidade estimada de 70 mil construções – entre casas, igrejas, fábricas e até arranha-céus – encontra-se vazia, muitas delas vandalizadas ou incendiadas. Como a Bolívia, Detroit espera uma segunda oportunidade. E ambas sonham com um tesouro que poderia ressuscitar sua riqueza e, de quebra, proporcionar ao mundo um ambiente mais limpo. Esse tesouro é o lítio.
O mais leve de todos os elementos sólidos, o lítio teve até agora um papel industrial apenas modesto. De cor prateada, mais maleável que o chumbo, ele vinha sendo usado sobretudo em ligas de alumínio, como base para graxa de automóveis e na produção de vidro e cerâmica. É tão instável que não se pode encontrá-lo em forma pura na natureza. O lítio flutua – ou melhor, se agita descontroladamente à flor d’água, emitindo uma nuvem de vapor de hidrogênio até se dissolver. De maneira estranha, tendo em vista sua natureza freneticamente reativa, o lítio tem um poderoso efeito tranquilizante, e há muito vem sendo usado como droga para o tratamento de transtornos de comportamento, sobretudo as manias.
Na década de 50, o governo americano criou um mercado para o lítio quando um isótopo do metal revelou-se útil para a construção de armas termonucleares. Mas a demanda por lítio, que tem propriedades corrosivas, além de tendência à combustão espontânea, manteve-se praticamente inalterada noutras frentes. Isso mudou de uma hora para outra com a proliferação dos telefones celulares e dos computadores portáteis: o lítio é ideal para fazer pilhas leves. Agora, com o surgimento dos carros elétricos, ele poderá suceder o petróleo como o principal combustível. E metade da reserva mundial encontra-se sepultada em vastas planícies de sal do sudoeste da Bolívia, a maior das quais se chama Salar de Uyuni. Os bolivianos já começam a falar da transformação do país na “Arábia Saudita do lítio”.
Mas não está claro se a Bolívia será capaz de ganhar dinheiro com o seu tesouro. Morales, que está alinhado com o socialismo populista de Hugo Chávez, o presidente da Venezuela, é dado a declarações radicais: “Ou bem o capitalismo morre ou então o planeta Terra morre.” Essa retórica tende a afugentar o investimento estrangeiro que poderia facilitar o desenvolvimento do Salar. E há também as deficiências do país em matéria de infraestrutura: a eletricidade, a água e o gás têm distribuição esparsa, e poucas das estradas são pavimentadas. Antes que a Bolívia possa ter a esperança de explorar um combustível do século XXI, ela precisa desenvolver os rudimentos de uma economia do século XX.
Chega-se ao Salar por uma estrada de terra suja e estreita, que desce os Andes e serpenteia, em zigue-zague, cânions ensolarados e planícies secas. Lhamas e vicunhas pastam, flamingos chapinham em charcos rasos. Até há pouco, geleiras cobriam o topo das montanhas, mas o aquecimento global vem provocando um considerável recuo do gelo, reduzindo o suprimento de água da Bolívia. Às portas de Uyuni, uma cidade de casas de argila erguida à beira da planície de sal, a paisagem mirrada está cheia de lixo, e sacolas de plástico colorido agitam-se nos ramos das árvores queñua.
Ao entrar na cidade, depara-se com um comitê de recepção de cães que latem sem parar. O aeroporto local está fechado há anos. Com uma população de 10 mil habitantes, Uyuni está a pouco mais de 300 quilômetros do oceano Pacífico, mas há mais de um século o acesso da Bolívia ao mar foi bloqueado pelo seu inimigo histórico, o Chile. O país não tem saída para o mar e vive isolado – “uma ilha cercada de terra por todos os lados”, como me foi descrito pelo jornalista Fernando Molina, um dos intelectuais mais conhecidos da Bolívia. “Um terço do território fica acima dos 3 mil metros de altitude, e o resto bem abaixo, num desnível impressionante. Nossa capacidade de transporte é horrível. A geografia torna difícil produzir qualquer coisa, porque não temos como movê-las.”
O Salar de Uyuni parece um mar congelado. De uma brancura cegante e cobrindo mais de 10 mil quilômetros quadrados, ele é visível da Lua. (Neil Armstrong chegou a confundi-lo com uma geleira gigante.) Uma das lendas dos índios da região diz que o Salar foi criado quando a deusa de um vulcão próximo, irritada, arrancou seu bebê do seio e o leite jorrou longe, misturado a lágrimas. Os índios, em sua maioria quíchua ou aimara, usam o sal para fazer tijolos e alimentar animais. Ocasionalmente, uma caravana de lhamas transporta o sal para rebanhos de gado das terras baixas. Na breve estação chuvosa, uma lâmina imóvel de água cobre a planície de sal, formando um interminável espelho do céu. A cada inverno, polígonos de cristal se encaixam uns nos outros na superfície do sal, lembrando gigantescos azulejos de banheiro. Por baixo dessa crosta grossa existe uma camada de uma solução impregnada de sal. Nela, o lítio se encontra dissolvido.
O Salar tem sido o destino de viajantes aventureiros há anos, mas não existe quase mais nada que ajude a sustentar a economia da região. “Sabemos do lítio desde 1985”, disse-me Francisco Quisbert, presidente da federação dos camponeses de Uyuni. Os camponeses da área dirigiram inúmeras petições ao governo para que explorasse o Salar. Em 1990, o presidente Jaime Paz Zamora concordou, a princípio, com um contrato plurianual com a Lithium Corporation of America (hoje FMC Corporation). O contrato permitiria à empresa extrair todo o lítio que pudesse, destinando à Bolívia apenas 8% dos lucros. Muitos bolivianos ficaram indignados com o negócio. Quando os camponeses iniciaram uma campanha contra o acordo, a Lithium Corporation anunciou a transferência de suas operações para a Argentina, que também possui reservas de lítio. “Todos nos condenaram, dizendo que perdemos uma oportunidade única”, comentou Quisbert, citando em seguida um antigo ditado espanhol: “Diziam que éramos ‘o cachorro do jardineiro’ – como não podíamos comer, não deixaríamos que mais ninguém comesse.”
Eric Norris, um executivo da mineradora americana, disse-me que a Bolívia foi cogitada inicialmente devido à vastidão de suas jazidas de lítio, mas que o empreendimento logo se revelou “impraticável”. Explicou que, além da carência de infraestrutura e da dificuldade de extração no Salar, “o ambiente político não era favorável”. Em 2005, Morales tornou-se presidente da Bolívia. Mais uma vez, os camponeses apresentaram uma proposta para a exploração mineral do Salar. Morales concordou em criar um projeto-piloto para a extração e o processamento do metal. Dessa vez, prometeu o presidente, tudo seria comandado por bolivianos. Como afirmou: “O Estado nunca abrirá mão da soberania em relação ao lítio.”
Marcelo Castro, engenheiro-chefe do projeto-piloto, levou-me de carro a um dos locais em teste no Salar. Usava óculos escuros fechados dos lados para bloquear o brilho; a brancura da paisagem estende-se até o horizonte, onde é interrompida pelos picos serrilhados dos Andes. “Como usamos o método evaporativo, o processamento do lítio pode ser rentável”, disse-me Castro enquanto caminhávamos pelo Salar, com o sal rangendo sob as solas grossas das nossas botas. Encontramos uma camionete com caçamba e um rolo compressor: pareciam brinquedos de criança esquecidos numa praia. Ali perto ficava uma espécie de acampamento de trailers, onde moram os trabalhadores da estação de pesquisas. Um tanque quadrado e raso fora aberto na crosta de sal e preenchido com a solução, de um tom azul leitoso, onde está o lítio. Exposta ao vento e ao sol, a solução se transforma numa pilha de sais de manganês, potássio, bórax e lítio, que em seguida é filtrada e depositada em mais um tanque, e depois em outro. Após um ano e meio, é possível separar quimicamente o carbonato de lítio dos demais elementos.
O processo é supervisionado por um organismo governamental chamado Dirección Nacional de Recursos Evaporíticos. Castro, um homem de cabelos rebeldes, expansivo e passional, que parava repetidas vezes para admirar a operação, declarou-me que o projeto envolveria mais de 12 hectares de tanques como aqueles. “Antes, nossa mina-piloto era um sonho”, disse. “Agora está se tornando realidade.”
O projeto-piloto é um teste crucial para o governo. Mas, para Morales, é tão somente uma parte do que prometeu. Numa manhã de novembro passado, juntei-me à caravana do presidente, que estava em campanha para a reeleição. (E venceria as eleições, em 6 de dezembro, por uma larga margem de votos.) Morales seguia para a província de Beni, no nordeste, em plena bacia Amazônica. Normalmente, ele se desloca num avião de passageiros Fokker fabricado há vinte anos. Dessa vez, usava a aeronave de seu vice, um avião de seis lugares capaz de pousar nas curtas pistas de terra que nos aguardavam. O aviãozinho levantou voo sobre La Paz, a capital, no alto de uma encosta dos Andes. E as montanhas logo ficaram para trás enquanto sobrevoávamos o interior amplamente inexplorado do país. Olhando pela janela, Morales disse que o Salar “não pode ser um novo Cerro Rico”. A Bolívia, continuou, nunca mais exportará matérias-primas sem se beneficiar do valor agregado auferido pelo mundo industrializado. Os bolivianos não se limitariam a extrair e processar o lítio por conta própria; produziriam também as baterias – e, a longo prazo, os próprios carros elétricos. “A partir dessa solução salina, a Bolívia fabricará carros a lítio para exportação”, afirmou. “Este é o sonho. Sem sonhos, que valor têm as coisas? Os sonhos se tornam reais.”
A pilha elétrica, inventada em 1800 por Alessandro Volta, é um aparelho relativamente simples. Compõe-se quase sempre de dois eletrodos de carga diferente – um anodo e um catodo – imersos num eletrólito, material que permite a passagem da corrente de um para o outro. Quando a pilha é acionada, fecha-se o circuito que permite o deslocamento de elétrons de carga negativa do anodo para o catodo, gerando energia.
Há décadas os carros utilizam baterias de chumbo-ácido, que fornecem energia para os sistemas elétrico e de ignição. Essas baterias também poderiam acionar um carro elétrico, mas são volumosas demais e, em comparação com a gasolina, geram muito menos potência. Dez anos atrás, a General Motors produziu um carro elétrico, o EV1, que utilizava 26 baterias de chumbo-ácido ligadas em linha. O veículo precisava ser recarregado a cada 110 quilômetros. Uma segunda versão, dotada de bateria à base de níquel, ampliou a autonomia para 180 quilômetros, mas também era pesadíssima.
Outra opção era o lítio, que é oito vezes mais leve que o níquel. Na década de 70, cientistas da Exxon desenvolveram uma bateria que tinha um anodo de óxido de alumínio e lítio e um catodo de dissulfeto de titânio. A bateria era relativamente fraca, e houve alguns acidentes no laboratório. “Depois de várias explosões, decidiram abandonar o investimento em energias alternativas”, lembra John Goodenough, pesquisador de materiais na Universidade do Texas. Goodenough decidiu então experimentar uma bateria de íon de lítio. Construiu um isótopo, usando óxido de cobalto e lítio como catodo, e ela produziu o dobro da energia de qualquer bateria do mesmo tamanho.
Em 1991, a Sony recorreu às ideias de Goodenough para produzir a primeira bateria comercial de íon de lítio, provocando uma verdadeira revolução na indústria de bens eletrônicos de consumo. Um dos primeiros telefones celulares, o Motorola DynaTAC, pesava quase 800 gramas quando foi lançado, em 1983, e permitia apenas trinta minutos de conversação. Em 1996, usando a tecnologia de íon de lítio, a Motorola lançou o StarTAC, que pesava 85 gramas e podia ser usado durante uma hora de conversa. Em pouco tempo, as baterias de íons de lítio tornaram-se o padrão em laptops e smartphones.
Na última década, a tecnologia do lítio migrou para a indústria automobilística. Em 2006, um grupo de empresários californianos lançou o Tesla Roadster, um carro esporte movido por 6 800 baterias de íons de lítio usadas em laptops. O Roadster é capaz de andar 400 quilômetros sem recarregar, e acelera de zero a 100 quilômetros por hora em menos de quatro segundos. Mais recentemente, a GM apostou o seu futuro no Chevrolet Volt, um carro híbrido com bateria de íon de lítio que começará a ser vendido até o final do ano.
Embora as baterias de íon de lítio sejam mais leves que as de chumbo-ácido ou à base de níquel, elas ainda são grandes e pesadas. A unidade de bateria do Volt, por exemplo, tem 2 metros de comprimento e pesa quase 180 quilos. “Ela é do tamanho de um jogador de futebol americano dos grandes!”, brinca Larry Burns, ex-vice-presidente de Pesquisa e Desenvolvimento da GM.
A reatividade do lítio é outra fonte de problemas. Desde 2003, a Comissão para a Segurança dos Produtos de Consumo registrou centenas de casos de incêndio em baterias de íon de lítio de aparelhos portáteis nos Estados Unidos, embora ninguém tenha sofrido ferimentos sérios. (Em 2004, o avião em que viajava John Edwards, então candidato à Presidência, precisou fazer um pouso de emergência quando uma câmera de televisão explodiu a bordo.) Joe LoGrasso, que supervisiona o desenvolvimento de baterias para os veículos híbridos e elétricos da GM, admite que “a segurança é um problema”. Recentemente, ele me levou ao laboratório de testes de baterias da empresa. A exatidão absoluta na produção é crucial, disse-me ele, porque qualquer impureza pode provocar um curto-circuito na bateria. “A umidade dentro da bateria é um risco, e as partículas de pó também.” Ele diz que a bateria do Volt é segura, tendo sido submetida a mais de 150 tipos de testes. “Esmagamos, incendiamos e atiramos nas baterias”, contou LoGrasso.
Embora os carros elétricos sejam de utilização barata – cerca de 2 centavos de dólar por quilômetro, se comparado aos 12 centavos dos carros a gasolina –, as baterias custam caro. A GM não revela o valor da sua bateria, mas várias fontes calculam que o custo é cerca de 1 mil dólares por quilowatt-hora – o que levaria o preço da bateria do Volt a 16 mil dólares. “Estamos tentando chegar a 300 dólares por quilowatt-hora”, disse-me Britta Gross, outra executiva da GM. O preço do Volt deve ficar em torno de 40 mil dólares, mas os incentivos fiscais do governo para o uso de energias alternativas podem cortar 7 500 dólares desse total.
A Toyota anunciou recentemente que um Prius “de carregar na tomada”, com bateria de íons de lítio, será lançado no segundo semestre. A Nissan e a Mitsubishi também divulgaram planos de fabricar carros a bateria, assim como a Mercedes-Benz, a BMW e a Hyundai. A Ford planeja vender uma versão totalmente elétrica do Focus no próximo ano. E a China afirmou que, em meados de 2011, terá a capacidade de construir meio milhão de carros híbridos e elétricos ao ano. “Todos esses veículos usam baterias de íons de lítio”, disse-me Ted Miller, um veterano da administração da Ford.
Em janeiro, a GM abriu uma nova fábrica, em Detroit, de baterias de íons de lítio. Embora ela vá empregar apenas cerca de 100 trabalhadores, foi saudada como o prenúncio da salvação da empresa. O deputado John Dingell chegou a declarar: “Os Estados Unidos, Michigan, a General Motors e a indústria automobilística americana estão de volta.”
A despeito de toda a animação com os carros elétricos, há dúvidas quanto às perspectivas de sucesso. No ano passado, o Departamento de Energia afirmou que as baterias de lítio continuavam caras e pesadas demais para a quantidade de energia que fornecem. A imensa bateria do Volt, por exemplo, pode fazer o carro rodar por cerca de 65 quilômetros (e aí o motor de combustão interna tem que ser acionado), a mesma distância que um Honda Civic consegue percorrer com menos de 4 litros de gasolina. Enquanto os carros elétricos não conseguirem se equiparar em autonomia e potência aos movidos a gasolina, deverão continuar ocupando um pequeno nicho de mercado: o dos ricos das grandes cidades.
Ainda assim, cientistas vêm abrindo novos caminhos. Pesquisadores da IBM trabalham numa bateria “lítio-ar”. Nelas, em vez de ser selado num invólucro, o lítio permanece em contato com o ar, e usa o oxigênio ambiente como catodo, a exemplo do que fazem as baterias de zinco dos aparelhos de audição. O processo torna a bateria bem mais leve.
Visitei recentemente um laboratório da IBM perto de San Jose, na Califórnia, onde uma equipe de cientistas testava versões experimentais da bateria que, segundo esperam, mudará o mundo. A engenheira química Sally Swanson mostrou-me uma bateria lítio-ar construída no que parecia ser uma dessas juntas de plástico usadas para engatar duas mangueiras. Ela mostrou também um pequeno disco preto, do tamanho de uma moeda de 10 centavos. “Este é o catodo, e o carbono eu pinto por cima – tecnologia de última geração”, disse, rindo. “E depois aqueço tudo numa grelha elétrica.” Como o carvão é poroso, ele deixa o ar passar. “Aí, colocamos um pedaço de filtro de fibra de vidro em cima do catodo e, em cima dele, colocamos o lítio.” O conjunto é montado sob um fluxo constante de argônio, um gás inerte. “Em seguida, terminamos a montagem e trocamos o gás por oxigênio”, falou, girando uma válvula no alto do equipamento.
A equipe de pesquisa vem usando supercomputadores para construir modelos com várias combinações de eletrólitos, catalisadores e eletrodos, a fim de tornar ótimas todas as reações químicas. Outros cientistas vêm usando a nanotecnologia para tornar mais densa a superfície do catodo, o que poderá multiplicar o número de reações e aumentar, ao menos em teoria, a potência da bateria. Winfried Wilcke, chefe da equipe, calcula que será necessária mais uma década para produzir uma bateria de lítio que possa suplantar a gasolina. “Vamos passar os próximos três anos atrás de um resultado grandiloquente”, disse ele. “No meio da década, talvez tenhamos algo espetacular para mostrar.” Se esses esforços forem bem-sucedidos, o mundo poderá acabar sendo movido a lítio.
Um dos paradoxos mais famosos da economia é a maldição dos recursos naturais. Os países que possuem reservas abundantes de riqueza mineral tendem a ser pobres, pouco desenvolvidos e politicamente opressivos. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a Opep, por exemplo, reúne alguns dos países mais problemáticos do mundo, como o Irã, o Iraque, a Líbia, a Nigéria, Angola, a Arábia Saudita e a Venezuela. A Bolívia também tem uma história política bastante caótica, e uma longa tradição de não usar suas riquezas para o desenvolvimento da infraestrutura ou para oferecer uma educação decente a seus cidadãos. “A dependência dos recursos naturais sempre nos trouxe pobreza”, lamentou Fernando Molina. “Quando vendemos matérias-primas, recebemos uma onda de dinheiro e, junto, o conflito para definir quem o controla. Criamos ciclos de elites.” A Bolívia tem uma desigualdade extrema de renda e praticamente nenhuma base industrial. Como diz Pablo Salón, o embaixador boliviano nas Nações Unidas: “Precisamos importar até pregos.” Evo Morales prometeu mudar tudo isso.
Em nosso voo, perguntei ao presidente como o lítio seria diferente dos outros recursos naturais com os quais a Bolívia fracassara. “Esses recursos nos foram tomados”, respondeu ele, referindo-se ao fato de estarem em mãos privadas. “Dessa vez, o dono é o Estado, e já estamos começando a industrializar o lítio a fim de colher todos os benefícios.” Morales lembrou ainda que, desde a nacionalização da indústria boliviana de hidrocarbonetos, em 2006, o Estado aumentara sua renda anual em mais de 2 bilhões de dólares. Essa abordagem, embora popular junto à base de apoio do presidente, é considerada imediatista por muitos economistas: as empresas estrangeiras que desenvolveram a exploração dos campos de gás desde a sua descoberta, em 2000, tiveram uma redução dramática nas margens de lucro, o que gerou dúvidas quanto a futuros investimentos. Os vizinhos da Bolívia, enquanto isso, saíram à procura de fontes mais confiáveis de gás natural. No ano passado, o preço do gás boliviano teve uma queda substancial. O ex-presidente Carlos Mesa disse que a produção caiu a tal ponto que hoje a Bolívia precisa importar gás. “Produzimos cada vez menos”, afirmou, classificando a situação de “desastrosa”.
Evo Morales defendeu sua política: assinalou que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, alarmados com o déficit orçamentário da Bolívia, forçaram o governo anterior a aumentar os impostos. “E houve revoltas populares! E tudo isso para reduzir o déficit!”, afirmou. “Agora as taxas pararam de subir, e não temos mais impostos especiais sobre a gasolina. Os salários dos professores e trabalhadores da saúde aumentaram como nunca.” (O salário médio de um professor aumentou 40%.) “Hoje temos um superávit fiscal. E foi com a nacionalização do petróleo e do gás que conseguimos esses resultados.”
O presidente deixou de mencionar que o déficit foi reduzido também porque alguns credores internacionais perdoaram as dívidas bolivianas. Uma fatia dos recursos auferidos com gás destina-se ao subsídio da merenda escolar, à previdência social dos idosos e a incentivos para que as mães mantenham os filhos na escola. Mas uma parte significativa permanece nos cofres do governo – o que agrada aos credores internacionais. O governo afirma que os índices de pobreza caíram substancialmente e a produtividade dos trabalhadores aumentou. Morales me disse que a nacionalização também dará certo com a indústria do lítio. “Depois do petróleo e do gás natural, o lítio é muito importante para a nossa economia”, declarou. “Mas, no momento em que começarmos a industrializá-lo, o lítio vai ser o mais importante.”
Quando o projeto-piloto do Salar começou, muitas empresas manifestaram interesse em extrair o metal das planícies salgadas. Autoridades bolivianas tiveram conversas preliminares com representantes da LG, o conglomerado coreano que está construindo a bateria do Volt para a GM. Em 2006, Evo Morales visitou a França, onde o industrial Vincent Bolloré o levou para dar um passeio num BlueCar – um pequeno carro elétrico, em forma de bolha, que o bilionário planeja produzir em parceria com a estatal francesa de energia. Segundo Morales, Bolloré teria dito: “O senhor é quem controla a matéria-prima chave para os séculos XXI e XXII. A Bolívia é a Arábia Saudita.” Mas Morales não quer que seu país se torne a Arábia Saudita. Ele quer que a Bolívia se transforme na França, numa potência industrial.
Perguntei ao presidente de que maneira, dado o estado miserável da infraestrutura boliviana, tal transformação poderia ocorrer. “Organizamos uma comissão científica no Ministério das Minas para dirigir as pesquisas”, respondeu. A comissão reunirá “estrangeiros e bolivianos” para determinar a melhor maneira de extrair os recursos naturais e começar a industrialização. Morales disse que esperava ver a Bolívia fabricando baterias de íons de lítio até o final deste ano. A produção de automóveis, acrescentou em tom confidencial, ainda precisa esperar “mais cinco ou seis anos”.
Evo Morales, que tem 50 anos, é a consequência da sua biografia. Sua abordagem nacionalista da exploração do Salar, e posições políticas em geral, são representativas de muitos bolivianos pobres, de origem indígena, que vivem há séculos à margem da sociedade e estão determinados a acabar com o modelo de espoliação. Morales nasceu numa aldeia aimara, no Altiplano. Cresceu num casebre de barro com teto de palha, onde morava com os pais e os dois irmãos, entre os sete que sobreviveram além dos 2 anos de idade. Começou a vender picolés na rua com menos de 5 anos, e aos 9 foi trabalhar com o pai em canaviais da Argentina. Adolescente, pastoreou lhamas nas planícies em torno da cidade de Cochabamba e aprendeu a jogar futebol com uma bola feita de trapos. Costumava pegar cascas de laranja e banana que as pessoas atiravam das janelas dos ônibus na beira da estrada. “Recolhia cascas para comer”, contou ele num panfleto de campanha. “Na época, um dos meus sonhos era andar num daqueles ônibus.”
Como tantos bolivianos de pouca escolaridade de sua geração, Morales teve raras oportunidades de emprego. Ser índio também era uma barreira. “Minha mãe não podia passear pela plaza“, afirmou Morales. “Não tinha direito de andar pela calçada.” Ter se tornado presidente, disse, é um fato “histórico, inacreditável”.
Antes de entrar para a política, Morales firmou a reputação de líder habilidoso e destemido do sindicato dos plantadores de coca, cargo que ainda ocupa. Como muitos de seus compatriotas, ele tem uma ligação mística com a planta, cujas folhas os bolivianos têm o costume de mascar como um estimulante suave. No gabinete presidencial, tem dois retratos – um de si mesmo, outro de Che Guevara – feitos com folhas de coca. Na viagem de avião, Juan Ramón Quintana, chefe do Estado-Maior de Morales na ocasião, explicou-me que “a coca funciona como uma ligação entre os seres humanos e a natureza. Ajuda a comunidade a relacionar-se consigo mesma”.
Plantador de coca, Morales foi um adversário aguerrido da política norte-americana de erradicação da droga nos Andes e, particularmente, do órgão dedicado ao combate à droga, a DEA, Drug Enforcement Administration. Antes que a DEA iniciasse uma intervenção pesada na Bolívia, nos anos 80, o país estava à beira de virar um “narco-Estado”. Líderes militares corruptos dirigiam o país e usufruíam abertamente dos lucros do comércio de drogas. A DEA, porém, criou fama de apoiar represálias brutais. Em 1988, policiais treinados pela agência e por militares norte-americanos tomaram de assalto uma aldeia e foram acusados de matar doze e ferir mais de 100 cocaleros. No ano seguinte, Morales discursou lembrando o massacre. Policiais deram-lhe uma surra, o atiraram de uma encosta e o abandonaram, supondo que morreria.
“Um dos maiores medos de Morales era a presença da DEA”, contou-me Fernando Molina. “Às vezes, ainda sonha que a DEA está atrás dele.” Morales não carrega bagagem quando sai do país, temendo que a agência americana possa plantar narcóticos em suas malas para incriminá-lo. (Um assessor transporta suas roupas num voo diferente.) “A DEA não compreende o povo boliviano”, garantiu-me Morales.
Em 2008, quando o presidente George W. Bush pôs a Bolívia e a Venezuela numa lista negra, alegando que não davam o devido combate ao tráfico de drogas, Morales e Chávez expulsaram os embaixadores americanos de seus países. Em seguida, Morales expulsou também a DEA. Gestões vêm sendo feitas para restaurar as relações diplomáticas entre a Bolívia e os Estados Unidos. “Criaremos regras para definir um novo padrão para as relações bilaterais com os Estados Unidos,” disse-me Morales. “Não haverá mais submissão.”
Perguntei ao presidente como planejava impedir que o comércio de drogas voltasse a corromper a Bolívia. “Controle social”, respondeu ele, de maneira vaga. Disse que novas regulamentações governamentais, como a que restringe a área de cultivo da coca, além da modernização da polícia, manteriam os narcotraficantes sob controle. Morales afirmou que, quando deixar o governo – eventualidade que, visivelmente, considera bastante remota – espera voltar à lavoura dos seus campos de coca, na região tropical de Chapare.
Enquanto isso, o presidente vem se aliando aos mais eminentes líderes antiamericanos. Além de se unir a Hugo Chávez, aproximou-se de Fidel Castro e Mahmoud Ahmadinejad, o presidente do Irã. Ahmadinejad visitou La Paz, em novembro, para anunciar um plano conjunto de estudo da tecnologia do lítio. “Sou grande admirador seu e dos iranianos”, disse-lhe Morales. “Nossos povos têm a missão de se libertarem dos impérios.” Fernando Molina explicou: “Evo é aimara, e os aimaras veem o mundo como uma luta entre as forças do bem e do mal, como em Guerra nas Estrelas. Para ele, as forças do bem são os plantadores e a folha de coca. O mal são a DEA e os Estados Unidos.”
“Não é que eu não goste dos norte-americanos”, assegurou-me Morales. “Gosto de todo mundo. Mas o governo norte-americano se envolve nas nossas questões internas, conspira e ofende. O embaixador americano me tratava como um Bin Laden, um terrorista, um assassino, um narcotraficante. Quem pode gostar disso?” Sobre o presidente Barack Obama, suas palavras foram: “Ele tem as mãos atadas pelo sistema capitalista e pela estrutura do imperialismo.” A única diferença entre Obama e seu antecessor, disse, é que “um é gringo e o outro é preto”.
Morales representa duas poderosas forças sociais bolivianas: os sindicatos e o movimento indígena. Sua eleição proporcionou certa estabilidade a um país que assistiu a golpes frequentes, assassinatos políticos e mudanças bruscas de governo desde a conquista da independência, em 1825. “Antes, a política boliviana baseava-se em três pilares: os empresários, a Igreja e a embaixada americana”, contou-me Walter Chávez, um ex-insurgente peruano que dirigiu uma das campanhas eleitorais de Morales. (Como enfrenta acusações de terrorismo no Peru, Walter Chávez recebeu asilo político da Bolívia.) “Nenhum político podia sonhar em manter a Presidência sem o apoio desses três grupos.”
O sucesso de Morales foi decorrência direta da arrogância de seus adversários. Quando ele disputou pela primeira vez a Presidência, em 2002, o embaixador americano, Manuel Rocha, ameaçou cortar a ajuda à Bolívia se Morales se elegesse. Até então, Morales era uma força marginal na política boliviana. Mas, concorrendo na condição de “o pior pesadelo dos americanos”, acabou recebendo 20,9% dos votos. O vencedor, Gonzalo Sánchez de Lozada, conhecido como Goni, chegou à Presidência com apenas 22,5%.
Goni, um proprietário de minas que alguns bolivianos consideram o homem mais rico do país, já ocupara a Presidência de 1993 a 1997. Retornou ao palácio presidencial com a renda nacional baixíssima, que ele se propôs a melhorar vendendo gás boliviano à Califórnia. Para que a operação fosse adiante, no entanto, seria preciso exportar o gás por meio de um porto chileno que fizera parte do território boliviano. A dor desse trauma ainda é tão aguda que a ideia desencadeou uma revolução. A Bolívia perdeu seus territórios costeiros quando o Chile, insuflado por investidores britânicos, invadiu o país, em 1879, para se apoderar dos ricos depósitos de guano (fertilizante) e salitre (usado na fabricação de explosivos) do deserto de Atacama. A invasão provocou a Guerra do Pacífico – um dos cinco conflitos bélicos malsucedidos que a Bolívia teve com os vizinhos e que, cumulativamente, acabaram reduzindo seu território à metade. A derrota para o Chile foi a que mais deixou cicatrizes na mente dos bolivianos. Ainda existe uma Marinha boliviana, que patrulha rios e lagos. Perto do quartel-general das forças navais, no Lago Titicaca, fica o monumento a um herói que tombou na Guerra do Pacífico, onde se pode ler a bravata que todo aluno do curso primário aprende na Bolívia: “Render-me, eu? Que se renda a tua avó, carajo!”
A ideia de que a venda do gás boliviano pudesse trazer algum lucro ao Chile inflamou sentimentos nacionalistas, abrindo oportunidade para Morales, para quem o gás deveria continuar boliviano. A controvérsia provocou uma série de greves e bloqueios que acabaram paralisando o país. Luís Ramos de Espejo, um dos organizadores dos protestos, repetiu-me um rumor que então corria solto: “Nosso governo queria vender todo o gás da Bolívia ao Chile, através da Argentina. Sabemos bem, pela nossa história, quem são os chilenos. Sempre quiseram tomar nossos recursos naturais.” No dia 13 de outubro de 2003, Ramos reuniu-se a centenas de outros opositores no subúrbio pobre de El Alto, acima de La Paz. Os manifestantes derrubaram quatro vagões ferroviários do alto de uma ponte, fechando a principal estrada de ligação entre La Paz e o aeroporto. Todas as avenidas da cidade foram bloqueadas.
Goni convocou o Exército para romper o cerco. Mais de sessenta pessoas acabaram mortas, no episódio mais sangrento da turbulenta experiência democrática boliviana. Goni fugiu para os Estados Unidos e Carlos Mesa, seu vice, assumiu a Presidência. “Eu podia botar o Exército nas ruas ou ir para casa”, disse-me Mesa. “Decidi ir para casa.”
Morales chegou ao poder numa eleição especial, convocada em 2005, na qual, pela primeira vez na história boliviana, um candidato conseguiu a maioria absoluta. A partir do momento em que tomou posse, transformou o trabalho constante num fetiche. “Ele nunca tira um dia sequer de folga”, contou-me Walter Chávez. “Nem no Natal, nem no Ano-Novo, nem no seu aniversário.” Morales às vezes convoca reuniões para as quatro da manhã. No começo do mandato, os ministros mandavam seus motoristas ficarem à espreita do comboio presidencial, que geralmente ia para o palácio às cinco da manhã. Alertados, os ministros se vestiam às pressas e, no encalço do presidente, seguiam para o trabalho. Perguntei a Morales quando ele dormia. “Geralmente durmo no avião”, resmungou. “Mas hoje você não está deixando.”
O avião pousou numa pista de terra em Baures, perto da fronteira com o Brasil. Morales foi o primeiro presidente a visitar a cidade. Embora sua reeleição nunca tenha sido ameaçada (conquistou 63% dos votos, garantindo o poder até 2015), ele também fez campanha para conseguir dois terços do parlamento para o seu partido, o Movimiento al Socialismo, o MAS, e assim poder implantar sem obstruções o programa de nacionalizações. O partido ultrapassou a barreira dos dois terços. Morales examinou a multidão reunida ao lado da pista de pouso – várias centenas de pessoas usando bonés azuis do MAS, empunhando bandeiras do partido, gritando “Viva Evo!” e esperando, sob o calor escaldante, para escoltá-lo até a cidade. Assim que desembarcou, usando uma camisa listrada de manga curta, jeans pretos e tênis, Morales foi saudado com guirlandas de conchas e flores. A massa exuberante, acompanhada por uma banda de música, seguiu em passeata com o presidente até a cidade. O próprio Morales já tocou trompete numa dessas bandas.
Na escadaria em frente à prefeitura, tocou-se o hino nacional. Morales observou em tom tranquilo que, na última vez que visitara a região, em 1995, quando era dirigente sindical, fora posto na cadeia. “Nunca achei que fosse acabar presidente de um lugar que conheci preso”, comentou.
Morales pode ser desconcertante na maneira como admite suas deficiências. “Irmãs e irmãos, eu sou como vocês”, disse ele à multidão que se acotovelava à entrada da prefeitura. “Nunca estudei para presidente. Foi difícil para mim entender como o governo funcionava, como a Bolívia funcionava. Custou-me muito entender como funciona a economia.” E agradeceu a seu vice-presidente, Alvaro García Linares, “um intelectual com um grande compromisso com o povo mais pobre e mais abandonado”.
Alvaro García, que vem de uma família mestiça da elite, é um ex-guerrilheiro marxista. Carlos Mesa o define como “militante de uma organização terrorista”. Ricardo Calla, antropólogo que foi ministro de Assuntos Indígenas, afirma que García é “o outro presidente”, e governa a Bolívia com “uma perspectiva neoaustromarxista”. García passou cinco anos na prisão durante os anos 90. Dizem que, depois dessa experiência, nunca mais deixou de sentir frio. Quando nos encontramos no palácio presidencial, de fato, ele estava encapotado com um comprido casaco de lã. Quanto à sua influência no governo, García me disse com modéstia: “Fizemos um esforço para indianizar o marxismo e marxizar o movimento indígena.”
Morales, que tem dois filhos de relações anteriores, vive sozinho no palácio presidencial. No início, achava que isso era descabido, e encorajou Alvaro García e outros membros do gabinete a se mudarem para o palácio com ele. Sua equipe de segurança disse que era perigoso concentrar todo o governo num lugar só e, rapidamente, contou um antigo assessor, “a festa do pijama acabou”. Morales adora esportes. Embora ande curvado, com os ombros para frente, continua a jogar squash e futebol. Jamais teve um terno. Ao ser eleito presidente, chamou um alfaiate, Manuel Sillerico, que criou para ele casacos e paletós que incorporam tecidos e trançados de origem indígena. (Morales diz tê-los desenhado ele mesmo.) Quando viaja ao exterior, mantém a mesma informalidade proletária, tendo sido recebido pelo rei da Espanha usando um pulôver.
No outono do ano passado, quando Morales esteve em Manhattan para a reunião anual das Nações Unidas, o ator Harry Belafonte organizou uma festa em sua homenagem, no Harlem. Mas Morales não pôde comparecer devido a uma dor de ouvido. Segundo um ex-membro de sua assessoria, como o presidente não confia na medicina americana, ligou para um médico na Bolívia, que lhe receitou lavar o ouvido com água quente. “O hotel disse que cobraria 40 dólares por uma panela de água fervente”, lembrou o ex-assessor. “Quando saí, seus auxiliares estavam enrolando jornais, ateando-lhes fogo.”
Ao assumir a presidência, Morales fez nomeações nada tradicionais. Casimira Rodríguez, uma índia que presidia o sindicato das empregadas domésticas, foi nomeada ministra da Justiça. Um ano mais tarde, o presidente precisou demiti-la. “Ela dava a impressão de não estar aprendendo nada”, disse-me Walter Chávez, que contou outro incidente, ocorrido pouco antes das eleições de 2005: “Evo foi a Chapare para uma reunião do sindicato dos cocaleros. O apresentador do evento lia com grande dificuldade, e todos começaram a assobiar. Eu também estava assobiando. Então Evo se levantou, pegou o microfone e disse: ‘Só vou ser presidente porque sou exatamente como ele. Quando eu não sabia ler, alguém me deu uma oportunidade. Se tirarmos esse homem que não sabe ler direito, e pusermos no lugar dele alguém que sabe, a revolução da qual achei que estava participando terá se transformado numa coisa muito diferente. Quem não tem paciência para aguentar pode ir embora.'” Ninguém saiu do lugar. “Ficou claro que ele daria oportunidade às pessoas que nunca tinham tido”, continuou Chávez. “O sonho dele, esteja dormindo ou acordado, é mostrar que um índio pode governar, e governar bem.”
A impressionante votação de Morales deixou seus opositores preocupados com o futuro do sistema partidário. “Morales combina a tradição caudilhesca latino-americana com certo autoritarismo de esquerda”, observou Ricardo Calla. “O presidente tem quatro ideias fixas”, disse-me o ex-presidente Mesa. “O Estado é sagrado; o Estado representa todos os bolivianos; tudo deve ser propriedade do Estado; e a combinação dessas três coisas garante a felicidade e o progresso.”
Mesmo críticos do presidente admitem que, dada a dialética de espoliação e instabilidade que sempre definiu a Bolívia, há poucas alternativas ao caminho que Morales escolheu. “Para a maioria dos bolivianos, o melhor modelo é o do Estado provedor”, afirmou Fernando Molina. E ele lembrou que o Chile também tem recursos naturais abundantes, mas é uma nação forte e homogênea, com uma economia diversificada. “A Bolívia, por outro lado, é uma nação muito heterogênea, e nunca foi capaz de integrar-se”, disse Molina. E acrescentou: “Prefiro ver o dinheiro ir direto para o povo do que para o empreiteiro corrupto que construiu uma estrada que custou dez vezes mais do que devia.”
Quando Morales acabou seu discurso em Baures, o prefeito agradeceu-lhe as novas estradas e os outros projetos que Morales prometera. “Eles virão preencher a sensação de vazio que temos nessas comunidades”, declarou o prefeito. Morales voltou para a pista de terra caminhando à frente da multidão. Antes de embarcar no avião, enfiou a mão no bolso da camisa, onde levava um rolo de notas de 100 dólares, e pagou a banda.
Cerca de trinta anos atrás, Guillermo Roelants du Vivier, um jovem engenheiro nuclear belga movido pelo desejo de incrementar mudanças sociais, juntou algum dinheiro de bolsas de estudos e tomou o rumo do sul da Bolívia. Como me contou num café de La Paz, tinha se apaixonado pela cultura andina. Ajudou a criar um mercado para a quinoa, um cereal nativo que hoje figura em mesas do mundo todo, e também fundou uma fábrica de ácido bórico, que usava vapor geotérmico como fonte de energia. “Uyuni era muito, muito pequena”, lembrou Roelants. “Agora temos médicos e água potável. As coisas mudaram muito.”
Roelants preside o comitê científico encarregado por Morales de organizar a exploração dos recursos do Salar. “O US Geological Survey [órgão americano de prospecção geológica] publicou que o Salar tem 5,5 milhões de toneladas de lítio metálico”, disse-me. “Pois estão completamente enganados!” Depois de vários estudos, ele calcula que a cifra correta seja de 100 milhões de toneladas – valor que quadruplicaria o tamanho das reservas mundiais de lítio. “Temos também quantidades expressivas de potássio, magnésio e boro no Salar”, completou. “Não as maiores jazidas do mundo, mas quantidades muito importantes.”
Ele estima que construir as instalações industriais e a infraestrutura necessária para embarcar o lítio para o exterior custaria pelo menos 600 milhões de dólares. No momento, porém, o mercado mundial total de lítio é de apenas 600 ou 700 milhões de dólares ao ano. Muitos analistas dizem que a demanda irá disparar assim que os carros elétricos começarem a deixar as linhas de montagem. A Byron Capital Markets, uma empresa de assessoria de investimentos, prevê um aumento de 40% na demanda apenas nos próximos quatro anos. Roelants diz que o financiamento para desenvolver o Salar viria do próprio governo, ou de empréstimos. “Todo mundo quer nos dar crédito com ótimas taxas de juros”, comentou. Uma alternativa é tentar obter financiamentos junto a “empresas internacionais envolvidas na produção de carros”, com base nas vendas futuras. “Conseguir o dinheiro não será problema”, garantiu-me. O que é certo, diz Roelants, é que o controle deverá ficar nas mãos do governo. “O povo boliviano não quer outra guerra como a do Pacífico, ou outra Potosí”, disse. “O Salar não está à venda.”
Apesar de a Bolívia ter um oceano de lítio, quantidades substanciais do metal estão disponíveis em outros lugares. Além das grandes jazidas em solução salina nos Andes e no interior da China, o lítio pode ser encontrado também numa pedra chamada pegmatita. A Austrália já tira lítio da pegmatita. “Dois países, a Argentina e o Chile, poderiam fornecer lítio barato ao mundo inteiro até depois de 2060”, contou-me Lucie Bednarova Duesterhoeft, pesquisadora da GM. Devido à infraestrutura precária da Bolívia, além das impurezas encontradas no Salar, o custo da extração do lítio será significativamente maior do que em outros países – cerca de 5 mil dólares por tonelada, avalia Duesterhoeft, comparado a menos de 2 mil no Chile. As duas maiores operações de mineração de lítio no mundo estão hoje no deserto de Atacama, no Chile – em terras tomadas da Bolívia durante a Guerra do Pacífico.
Embora a má vontade de Morales com as empresas multinacionais continue a empolgar seus seguidores, a obsessão do presidente em impedir que o Salar se transforme num novo Cerro Rico também pode impedir que o lítio vire uma fonte de riqueza. A menos que o governo consiga chegar a um acordo com uma multinacional – ou descubra um método de extrair minério do Salar a um custo competitivo –, o lítio boliviano tende a continuar confinado na crosta de sal, tão distante e inacessível quanto o sonho de Morales de produzir baterias e carros bolivianos.
Em janeiro, a Toyota Tsusho, fornecedora da Toyota, anunciou um contrato de 100 milhões de dólares com a Orocobre, uma companhia australiana de mineração, para o fornecimento de lítio argentino para carros híbridos e elétricos. A Orocobre vem conduzindo um estudo de viabilidade para a mineração do Salar de Olaroz – uma planície de sal próxima à fronteira argentino-boliviana. Segundo James Calaway, presidente da Orocobre, a planície argentina é bem menor que o Salar de Uyuni, mas o lítio ali tem menos impurezas. Calaway me disse que a planície boliviana “é como uma mulher sedutora, mas, quando você a olha bem, vê que as coisas não têm como dar certo.” Além do mais, disse, “não se pode ignorar o fator Morales”. A Orocobre pretende começar sua produção na Argentina em 2012, onde já obteve o direito de explorar mais de uma dúzia de planícies de sal. Apenas 8% dos lucros deverão ficar em mãos argentinas, mas ao longo dos anos devem somar um valor significativo. (E a Orocobre terá de pagar imposto de renda.)
Muitos bolivianos ficaram abatidos com a notícia: mais uma vez, um vizinho lucrava à sua custa. (Um editorial do diário boliviano El Deber afirmou, irritado, que a Argentina, com suas “minúsculas planícies de sal”, havia conseguido “os melhores contratos para a exploração do lítio, enquanto os bolivianos perdem tempo”.) Mas um porta-voz do governo boliviano afirmou que o contrato da Toyota foi recebido “com calma e cautela, sem desespero”.
Um mês depois de o negócio com a Toyota ter sido anunciado, começou a circular o boato de que a comissão científica chefiada por Roelants estudava propostas de empresas estrangeiras interessadas no Salar de Uyuni. Entre elas estariam a Mitsubishi, fabricante de carros e aparelhos eletrônicos; a Kores, megaempresa de mineração controlada pelo Estado sul-coreano; e a Bouygues, o conglomerado francês. Uma delegação japonesa chegou a La Paz e participou de uma conferência promovida pelo governo dedicada ao “futuro da indústria boliviana”. Os encontros foram cordiais, mas nenhum acordo parece iminente. Na conferência, Saúl Villegas, diretor de Recursos Evaporativos da Corporação Mineira da Bolívia, reiterou que qualquer projeto de mineração de lítio precisa estar “sob controle 100% governamental”. Depois, ele me disse que “não se repetiria a história de Potosí”. A Bolívia, prosseguiu, tinha a obrigação de assegurar ao mundo um suprimento constante e confiável de lítio “pelos próximos 100 ou 200 anos”. Villegas, no entanto, não falou nada sobre a produção de baterias ou carros na Bolívia.
Uma perspectiva mais realista sobre a economia boliviana parece ter se firmado entre alguns membros do governo. Poucas semanas depois do anúncio do acordo entre a Toyota Tsusho e a Argentina, Roelants declarou que, no fim das contas, o grande “futuro industrial” da Bolívia não era o lítio. Em vez dele, o país devia se concentrar noutras substâncias valiosas encontradas no Salar, especialmente o cloreto de potássio, ingrediente de muitos fertilizantes. O cloreto pode ser extraído com muito mais facilidade do que o lítio, disse Roelants, e em quantidades bem maiores. O engenheiro calculou que o Salar poderia produzir 800 mil toneladas de sais de potássio por ano. “O potássio é mais importante”, disse ele, acrescentando que o lítio não passava de um subproduto.
O presidente da Bolívia, porém, não parece ter concordado inteiramente com a ideia de que o tesouro de lítio do Salar pode representar pouca coisa. No dia 10 de março, José Pimentel, o ministro das Minas, anunciou a criação de uma nova empresa estatal, a Empresa Boliviana de Recursos Evaporíticos, destinada a dedicar especial atenção ao lítio, explorando “todas as alternativas” para obter o oro gris. O investimento inicial do governo será de 5 milhões de dólares. O diretor da companhia será escolhido pessoalmente por Evo Morales.
* Tradução de Sergio Flaksman