Bordados com linhas e materiais diversos, de Marjorie Taylor, do Museu da Representação Cientificamente Precisa do Cérebro em Tecido. As figuras demonstram atividades cerebrais estudadas pela equipe de neuroeconomia da Universidade de Oregon e ilustram em aplicações de feltro ou brocado colorido o que acontece no cérebro, por exemplo, quando uma pessoa ganha na loteria FOTO: MARJORIE TAYLOR, PROFESSORA DE PSICOLOGIA DA SYCHOLOGY UNIVERSIDADE DO OREGON_HTTP:/NEUROSCIENCEART.COM
Sonhos de Natal
Num laboratório potiguar, as experiências para provar que Freud tinha razão
Marcelo Leite | Edição 27, Dezembro 2008
Minha tática de jogador estreante é pegar o máximo de munição pelos corredores da fortaleza, sem saber ao certo para que servirá. Não dá para correr e, ao mesmo tempo, decifrar as informações numéricas na base da tela do computador. Falta coordenação. Sigo em frente, incapaz de definir o que me provoca mais incômodo e tédio – se a opacidade das regras do jogo, se a repetição interminável dos passos iniciais no labirinto de portas, pátios, escadas e rampas, ou se os 29 eletrodos espalhados pelo meu couro cabeludo, rosto e peito.
Sentada à esquerda, a estagiária Luciana Rocha não me dá descanso. A cada morte no jogo, sua mão delicada e ligeiramente fria, que ainda há pouco pincelava cola sobre os contatos fixados com esparadrapo na minha cabeça, aperta pela enésima vez a tecla que reinicia o jogo Doom.
No centro da tela há um patíbulo, cercado por muros de pedra escura. À esquerda, de costas, está a Coisa. A luta começa com o impulso da manopla para a frente e um toque quase automático sobre o botão azul, reservado para a troca de armas. Depois de quase uma hora de tentativas, está claro que o revólver na mão direita é inútil, não conseguirá romper a couraça, e a Coisa vai se virar e escapar pela direita.
Num ataque frontal, finalmente a Coisa sucumbe. É hora de caminhar para a porta secreta de pedra cinza. Um novo toque sobre o botão azul providencia outra troca de arma, pois a experiência mostrou que o adversário, um guarda munido de fuzil, sucumbe apenas a tiros de escopeta. Caso consiga alvejá-lo, haverá outro, e mais outro, e clones da Coisa com bolas de fogo, mais portas de aço e portas de pedra, piscinas azuis e munições…
O feixe de fios puxados para trás, como num rabo-de-cavalo, parece ser a origem da dor de cabeça que começa a se impor. São quase onze e meia da noite de uma segunda-feira de maio, e não vejo a hora de despregar a mão suada do joystick. Quero sair do quarto-laboratório localizado no 1º andar do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra, no bairro da Candelária, no qual entrei às oito e meia daquela manhã, e onde já havia dormido, conectado, no dia anterior.
Sou a 22ª cobaia da experiência criada por André Pantoja, um fisioterapeuta que deixou o Rio de Janeiro para fazer mestrado no Instituto de Neurociências de Natal. Pantoja quer comprovar que os sonhos têm valor adaptativo – ou seja, ao usar situações passadas como preparação para o futuro, os sonhos facilitam a sobrevivência e a reprodução do sonhador. É com esse objetivo que ele alista voluntários para agüentar duas noites maldormidas, num dormitório desconfortável, com os contatos de um eletroencefalograma pregados na pele. Para piorar, a cobaia passa por duas sessões de uma hora de Doom, uma antes de dormir, outra logo depois de acordar.
O biólogo Sidarta Ribeiro, diretor científico do Instituto de Neurociências de Natal, contou que, em seu sonho, podia ver o edifício branco do centro de pesquisa cercado pelas águas de uma enchente. Não queria arriscar-se a enfrentar a água de carro. Apesar da proximidade dos esgotos de uma favela, seguiu o impulso: andou pela água até o Instituto, para junto dos funcionários que aguardavam a chegada dos equipamentos que fariam os laboratórios funcionarem. Mas a água não parava de subir. Diante da inundação, Sidarta Ribeiro mandou soltar as amarras, e o prédio saiu navegando.
O pesadelo com o final feliz alegórico ficou marcado na memória de Ribeiro. Um ano antes, o subsolo do Instituto tinha sido de fato inundado pela chuva. Além disso, o sonho representava um exemplo óbvio da teoria de Sigmund Freud de que nossas fabulações noturnas são compostas por motivos do dia anterior, os “vestígios diurnos”. Na noite em que teve o pesadelo, sua ansiedade era grande. Fazia pouco mais de um ano que deixara Durham, no estado americano da Carolina do Norte. Para trás ficara uma carreira segura, depois do pós-doutorado na Universidade Duke, onde havia despontado como capitão do rat lab de Miguel Nicolelis, o laboratório de roedores.
Brasileiro como Ribeiro, Nicolelis é mais conhecido pelos trabalhos do monkey lab, onde sinais colhidos por microeletrodos no interior do cérebro de primatas movem braços robóticos e até robôs inteiros. No rat lab, permaneceram encaixotados – por onze meses – os equipamentos que aguardavam a compilação de todas as informações exigidas pela alfândega brasileira, do número de cada pinça ao peso de cada caixote.
Na véspera do sonho marítimo, os equipamentos finalmente faziam a viagem, de caminhão, da Carolina do Norte à Flórida, onde embarcariam de avião para o Brasil. Como um furacão subia a costa da Flórida, toda a equipe do Instituto de Neurociências de Natal entrou em pânico com a possibilidade de o caminhão não chegar a tempo ao aeroporto de Miami.
Ribeiro, Nicolelis e um terceiro neurocientista, Claudio Mello, começaram a planejar o desembarque em Natal logo depois da posse de Lula como presidente. Sonhavam erguer em região pobre e periférica um pólo de pesquisa com qualidade internacional. Pesaram na escolha da capital potiguar a proximidade com a Europa e os Estados Unidos, a abundância de praias, a baixa pluviosidade e a tradição de pesquisa com primatas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a UFRN.
No momento, o Instituto conclui um concurso internacional para preencher doze vagas de professor, criadas em associação com a universidade, que oferece um inédito “enxoval” de 500 mil reais para cada contratado montar seu laboratório. Miguel Nicolelis, no entanto, não deixará seu posto de professor titular da Universidade Duke. Claudio Mello, que continua na Universidade de Saúde e Ciências do Oregon, concorre a uma das doze cadeiras. Dos três idealizadores, apenas o caçula Sidarta Ribeiro já se repatriou de fato. “Nos Estados Unidos eu era um caçador-coletor: ia lá e levantava os dados”, disse ele. “Aqui, sou mais agricultor: estou plantando gente.”
Numa sala próxima do quarto-laboratório onde se realiza a experiência com o jogo Doom, Ribeiro e um aluno seu de mestrado, Hindiael Belchior, avaliam a hipótese do valor adaptativo dos sonhos na perspectiva animal com o “experimento do oráculo”, que usa ratos para provar que os sonhos animais podem prever o futuro. O instrumento de teste é um labirinto em cruz, com canaletas de madeira que se cruzam no centro. Nele é posto o animal, para que escolha um dos quatro braços para procurar comida. Se o alimento for posto a cada dia numa ponta, numa se-qüência repetida (como norte-leste-sul-oeste), em pouco tempo o roedor aprende a adivinhar o corredor do dia.
A idéia do experimento é gravar, com auxílio de microeletrodos implantados no cérebro dos ratos, os padrões de atividade elétrica no hipocampo durante a vigília em cada uma das situações – como disparam seus neurônios quando o animal se dirige respectivamente para o braço norte, leste, sul ou oeste. O passo seguinte é verificar se algum desses padrões se repete, no hipocampo, durante a fase do sono dos ratos em que seus olhos se movem rapidamente, indicando que eles – como seus primos humanos – estão sonhando. Em outras palavras, mostrar-se, ao sonhar com uma determinada experiência passada, o animal não está simulando um futuro possível e, neste caso, desejável – imaginando em que braço do labirinto encontrará comida quando acordar. Para tanto, é preciso levar os microeletrodos até o interior do cérebro do roedor, a nova especialidade que Belchior adquiriu em Natal.
Às duas da tarde de uma terça-feira, dia da reunião semanal no laboratório, o físico Jean Faber Ferreira de Abreu, que tem mestrado e doutorado em computação quântica pelo Laboratório Nacional de Computação Científica e pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez a primeira apresentação. Sua tarefa no Instituto é desenvolver métodos para extrair informação da massa de dados coletada pelos colegas que trabalham com roedores (ratos e camundongos) e, no futuro próximo, com primatas (sagüis). Com isso pretende ajudar a explicar os processos cerebrais.
O físico usa uma matriz de microeletrodos composta por 32 fios de 35 micrômetros (milésimos de milímetro) de diâmetro cada um. Colocada no cérebro do animal, a matriz deixa para fora apenas um conector para o cabo que levará dados até um computador integrador de sinais. Chamada de “chapéu”, a matriz permite gravar o comportamento de mais de uma centena de neurônios individuais, pois cada microfio capta a atividade elétrica de até quatro células nervosas na sua vizinhança. A especialidade do grupo de Nicolelis é coletar amostras, de modo contínuo e simultâneo, de um grande grupo de neurônios, para determinar a cada instante se cada um deles está “aceso” ou “apagado” (se “disparou” ou não, no jargão dos neurobiólogos). A meta consiste em identificar padrões coletivos de disparo e empregar a informação, por exemplo, para fazer com que macacos movimentem robôs, de modo intencional e controlado, só com a força do pensamento. O método também permite descrever e quantificar o que acontece dentro do cérebro, esteja ele envolvido na atividade que for.
“O cérebro é quente, é dinâmico”, afirmou Jean Faber, para enfatizar sua complexidade e seu comportamento não-linear. Por esse motivo, explicou, é bom trabalhar com populações de neurônios, pois o processamento em grupo pode trazer mais informação do que o de células solitárias. Faber enveredou então por uma explicação técnica acerca de diversas maneiras matemáticas de contemplar e tratar essa manifestação coletiva. A explicação só voltou a ficar mais transparente quando ele projetou gráficos mostrando um resultado inesperado: durante um experimento para registrar a atividade de neurônios relacionados com as vibrissas (“bigodes”) de ratos, registrou-se atividade também num grupo de células que estavam sendo amostradas para controle, numa área de processamento visual. Como o rato estava no escuro, essas deveriam permanecer inativas e fornecer um registro padrão, um pano de fundo contra o qual comparar a atividade das células nervosas efetivamente envolvidas na tarefa. E, no entanto, elas registraram disparos.
Isso teria ocorrido porque a brigada de neurocientistas de Natal atirou no que viu, uma região do cérebro (S1) que processa sinais táteis, e acertou no que não deveria estar vendo, a área (V1) dedicada a sinais visuais. Para Faber, uma explicação possível seria que as células na vizinhança de S1, ociosas pela falta de estímulo visual, estivessem sendo recrutadas para ajudar no processamento da informação tátil abundante, proveniente das vibrissas.
“É uma teoria no mínimo herética”, ressaltou Sidarta Ribeiro. O achado, acredita, tem potencial para abalar o paradigma de David Hubel e Torsten Wiesel, modelo criado por ganhadores do Nobel de Medicina de 1981 segundo o qual o cérebro de vertebrados se organiza em colunas de neurônios especializados. Exatamente o oposto do que estão mostrando os dados analisados por Faber, segundo os quais neurônios visuais estão se imiscuindo em tarefas táteis.
Seguiu-se na reunião quase uma hora de discussão sobre as experiências necessárias para confirmar o achado de maneira inquestionável – com outros animais, por exemplo, e também em ambiente iluminado. Uma hipótese a considerar seria de que a área V1 apenas estivesse produzindo uma espécie de eco de S1, sem participação efetiva no processamento dos sinais emitidos pelos bigodes do roedor. Outra, de que se tratassem de conteúdos diversos, não-táteis. Também seria preciso verificar detidamente a bibliografia sobre a questão, para se ter certeza de que outros cientistas já não tivessem observado coisas similares.
Se o experimento se confirmasse, o Instituto de Natal seria o primeiro a mostrar o recrutamento de neurônios individuais, mais uma indicação da plasticidade do cérebro. Ficaria provado que as mesmas células podem responder a estímulos sensoriais de modalidades diversas, dependendo da necessidade. O cérebro poderia ser comparado a uma máquina polivalente, na qual quase nada ocorre por acaso, como seria de se esperar de um órgão tão sofisticado, esculpido ao longo de milhões de anos pela seleção natural.
Sidarta Ribeiro abriu a porta da sala de cirurgia e tomou um susto. A mesa de operações – na realidade, uma lâmina de pedra sobre pedestais curtos que imitavam colunas gregas – estava coberta com uma bandeira do Brasil improvisada para proteger do pó. Equilibrado numa escada de pintor aberta por sobre a mesa, o eletricista recortava o forro de gesso, de onde pendiam cabos azuis de rede para computadores. Refeito, Ribeiro alertou o técnico sobre a cirurgia de rato programada para o dia seguinte, quarta-feira. O funcionário lhe assegurou que estaria tudo pronto e limpo até o final do dia.
Na quarta-feira, às cinco e meia da tarde, o local de fato parecia impecável. A bandeira desaparecera. Sobre a mesa cirúrgica estava debruçado Hindiael Belchior, que vendeu a motocicleta e chegou apenas com uma mochila a Natal, decidido a se tornar um neurocientista de ponta. Um ano e oito operações depois, ele é tido como o mais hábil cirurgião de ratos do Instituto – depois de Ribeiro, que lhe ensinou os detalhes do ofício.
Os olhos de Belchior se fixaram nas lentes da lupa cirúrgica sobre o crânio de RPC-01, um Rattus norvegicus macho da linhagem Wistar. O corpo de 339 gramas estava esticado sobre uma almofada térmica e a cabeça fixada num aparelho estereotáxico de precisão digital, que permite movimentações na escala de milésimos de milímetro. Os três eixos do instrumento, um para cada dimensão do espaço, lhe servem de guia para introduzir os microeletrodos – seguindo coordenadas previamente calculadas a partir das medidas do roedor – na área CA1 do seu hipocampo, órgão vital para o aprendizado.
Uma hora depois, Belchior havia aberto uma diminuta janela no osso do crânio e instalou nele quatro parafusos de relojoeiro que darão suporte ao conjunto de microeletrodos. Sob as lentes da lupa, os parafusos parecem enormes, como se fossem próprios para prender ganchos de rede na parede. Belchior trabalha agora para remover do caminho dos eletrodos a dura-máter – membrana branca e fibrosa que envolve o cérebro. Quando terminar, isso permitirá uma passagem mais tranqüila dos eletrodos pela camada externa do córtex cerebral. Os fios serão baixados até a profundidade de exatos 2,4 milímetros, percurso a ser coberto em cerca de trinta minutos. O lento e cuidadoso implante dos eletrodos evita lesões celulares e diminui o risco de inflamações decorrentes da cirurgia. Serão frações de milímetro a cada vez, para dar tempo ao cérebro de se acomodar e evitar que os eletrodos empurrem o órgão para baixo, pondo as coordenadas a perder. A operação completa demora de quatro a cinco horas.
Às sete e quinze da noite de quinta-feira, um quarto de hora antes do início previsto, o auditório da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do Rio Grande do Norte, Farn, já acomodava três centenas de pessoas. Elas estavam ali para assistir à palestra “Sonhos, memórias e delírios: um reencontro de Freud com a neurociência”, peça de resistência de Sidarta Ribeiro para platéias leigas.
O mestre-de-cerimônias disse algo sobre “o vasto e extenso currículo” do pesquisador e passou a palavra ao reitor Daladier Cunha Lima, que deu as boas-vindas a “um dos maiores cientistas da nova geração no mundo”. Lembrou que aquele mesmo auditório já havia recebido outro “nome de grande repercussão mundial, Miguel Nicolelis”.
Às dez para as oito, Ribeiro começou a falar, seguindo o roteiro de 25 slides na tela do computador. Após um breve apanhado biográfico do pai da psicanálise, projetou um slide com seu argumento central contra as afirmações do filósofo da ciência Karl Popper, na obra Conjecturas e Refutações. No entender de Popper, a psicanálise seria “simplesmente não-testável, irrefutável” e “não há comportamento humano concebível que possa contradizê-la”.
Ribeiro divertiu a audiência contando o que ouviu de um reitor americano: “Ninguém precisa ler Freud para saber que ele é um charlatão.” Em seguida, Sidarta enfileirou vários artigos de neurocientistas que, na sua interpretação, vêm confirmando na virada do século XXI intuições e especulações que Freud ofereceu no início do século XX. Um dos pontos altos foi a apresentação de seu próprio trabalho, de setembro de 1999, publicado em conjunto com Claudio Mello e outros dois autores no periódico científico Learning & Memory, sob o título “Expressão de genes no cérebro durante sono REM depende de experiência prévia em vigília”.
Ribeiro trabalhou com ratos nesse estudo, base do segundo capítulo de sua tese de doutorado. Como humanos, crocodilos e pássaros, os roedores têm fases de sono caracterizadas como “sono de ondas lentas” (SWS, na abreviação inglesa) e como “movimento rápido dos olhos” (REM, fase na qual acontecem os sonhos). Ambas estão relacionadas com o processamento de eventos diurnos, alguns dos quais ficam gravados de modo mais duradouro no córtex cerebral, por força das emoções que os acompanham.
Como circuitos permanentes no cérebro dependem da formação de conexões entre neurônios – as sinapses –, uma equipe da Universidade Rockefeller investigou um gene (o zif-268) diretamente envolvido nessa formação. A hipótese era de que a expressão (leitura e produção da proteína correspondente) do zif-268 pelas células nervosas apareceria aumentada durante o sono REM quando o animal fosse submetido a processos de aprendizado mais intenso, pela necessidade de produzir várias novas sinapses e reforçar os circuitos de novidades.
Roedores postos em ambientes estimulantes, cheios de objetos novos (“uma Disneylândia de ratos”, nas palavras de Ribeiro), mostraram intensa expressão do zif-268 durante o sono REM no córtex e no hipocampo, depois de dissecadas essas estruturas-chave da memória. Nos animais de controle, os sem-Disneylândia, não se observou o mesmo padrão. Em outras palavras: os restos diurnos propostos por Freud como componentes do sonho encontraram uma evidência material nas moléculas necessárias para formar novas sinapses, cuja receita se encontra em genes como o zif-268. Seria mais uma indicação de que os sonhos não são fruto de um disparo aleatório de neurônios do córtex cerebral, como acredita parte dos neurocientistas. Se os sonhos fossem mesmo acidentais, e seu conteúdo irrelevante, argumenta Ribeiro, ficaria difícil explicar os sonhos repetitivos, mais comuns após grandes traumas. Onde há regularidade não pode haver acaso.
“O pesadelo é um sonho prototípico, ele previne perigos prováveis”, explica o diretor do Instituto de Neurociências. Na sua imagem preferida, quem topa durante o dia com um tigre-dentes-de-sabre, e consegue escapar, decerto sonhará com isso várias vezes. O sono REM teria surgido durante a evolução para dotar os animais da capacidade de “simular um futuro possível”, com base em fatos passados, e preparar-se para ele, teorizaram Ribeiro e Nicolelis no artigo “A evolução de sistemas neurais para dormir e sonhar”, um capítulo do livro Evolution of Nervous Systems, organizado por Jon Kaas. Porém, um mesmo evento, como o encontro de uma zebra com um leão, produziria sonhos diametralmente opostos na presa e no predador: “O que é pesadelo para uns é sonho gozoso para outros”, diz Ribeiro.
O caráter aparentemente fantasioso dos sonhos humanos teria emergido só com o advento da cultura, quando já estavam mais ou menos resolvidos os aspectos urgenciais da existência: segurança e alimentação. Restava o sexo, algo para sempre difícil de resolver, como intuiu Freud e como Ribeiro deseja comprovar para outros neurocientistas – com a vantagem de que, um século depois, a ciência natural já conta com ferramentas experimentais que não se encontravam ao alcance do célebre “charlatão” de Viena.
A palestra no auditório da Farn durou cem minutos e terminou com uma versão traduzida e atualizada do slide 4. Se Freud disse que o comportamento humano é motivado por impulsos de vida e morte, Ribeiro o atualiza dizendo que “o comportamento humano é motivado por valores emocionais negativos e positivos codificados pela amígdala” (estrutura cerebral envolvida no processamento de emoções). Se os sonhos contêm restos do dia, como está escrito em A Interpretação dos Sonhos, o neurocientista traduz para “sonhos reverberam memórias no nível eletrofisiológico e molecular”. Sonhos satisfazem desejos, sim, porque “concatenam fragmentos de memórias de forma a simular expectativas futuras de recompensa e punição mediadas por dopamina”. Para cada afirmação do mestre da psicanálise, o neurocientista encontra, ou inventa, uma versão remasterizada para o gosto da neurociência contemporânea.Seguiram-se vários minutos de aplausos e meia hora de perguntas. A maioria das questões partiu de psicanalistas – por alguma razão, só mulheres da especialidade se animaram a levantar o braço – declaradamente incomodadas com a invasão de seu campo pela neurociência. O incômodo não impediu, porém, a psicanalista e estudante que falava em nome dos colegas da universidade de agradecer a Ribeiro, “uma graça”, o que arrancou risos de muitos dos presentes. “E não estou seduzindo-o”, tentou consertar a moça, sem sucesso.
Dormir com os 29 fios brancos pela segunda noite seguida foi só ligeiramente menos desconfortável do que na primeira. Depois de desconectada do computador a caixa para a qual convergiam os cabos dos eletrodos no couro cabeludo, levo até o banheiro “o Wilson” – apelido dado ao aparato conector em alusão à bola de couro que faz companhia a Tom Hanks no filme Náufrago. De volta e reconectado, não preciso ler mais que duas ou três páginas para sentir a sonolência chegar. Não sei se o relaxamento se deve à experiência na noite anterior, ou ao puro alívio por estar livre da Coisa e de Doom. Toco a campainha à cabeceira, e a estagiária Luciana entra, apaga a luz da suíte e fecha a porta silenciosamente atrás de si.
Cerca de cinco horas após pegar no sono, que depois parecerão apenas duas ou três, estou num apartamento que pega fogo. Não vejo as chamas, mas há algo de errado naquele local em que as salas se sucedem e são circundadas por uma varanda contínua. Percorro-as seguidamente, em busca de uma saída, na companhia de uma mulher desconhecida, até concluir que só resta quebrar uma porta de vidro. Com a ajuda da mulher, tiro do suporte na parede uma lança poderosa e antiga, com ponteira de metal fixada à longa haste de madeira por fios de couro entrelaçados, e passo a golpear com ela o vidro – com pouco resultado. A sensação de vagar por recintos sucessivos, sem noção clara do objetivo por atingir e do que pode haver de ameaça ou recompensa ao alcançá-lo, é a mais óbvia conexão com Doom.
Mal desperto, sob o chamado gentil de Pantoja, tento reter na memória os fiapos do sonho que se esvaem em palavras hesitantes diante do fisioterapeuta e seu iPod preto, adaptado para gravação. Logo em seguida, volto ao pesadelo real e já bem conhecido: estou de novo diante da Coisa, apenas para topar com o guarda atrás da porta de pedra, pronto para seguidos disparos. Apesar de estremunhado, sem a chance de lavar o rosto e ainda preso aos fios do eletroencefalograma, consigo avançar um pouco mais no jogo. No segundo pátio após a rampa, aniquilo algumas vezes todos os inimigos e localizo uma porta de aço. Ao abri-la, dou com vários guardas e novos clones da Coisa em torno de uma piscina azul, além da qual não consigo passar.
Como no caso dos ratos do estudo de Ribeiro em 1999, meus sonhos foram estimulados pelo aprendizado da vigília com o jogo de computador Doom e podem até ter contribuído para melhorar o desempenho, fazendo com que eu alcançasse a sala da piscina azul e morresse com freqüência ligeiramente menor. Nesse estudo com 22 pessoas, base de seu mestrado, Pantoja focaliza apenas o tema dos restos diurnos, e o sonho relatado por sua 22ª cobaia traz mais um grama de evidência para a hipótese de que esses vestígios recuperados pelo sonho guardam relação com eventos emocionalmente relevantes da vigília.
Para o doutorado, Pantoja e o orientador Sidarta Ribeiro têm planos grandiosos. A idéia é comprovar empiricamente, pela primeira vez em seres humanos, o valor adaptativo dos sonhos – no caso, que uma noite de sono ajuda a melhorar o desempenho de cobaias contra a Coisa e seus asseclas. Como a morte no jogo é apenas virtual, nada que se compare com a ameaça apavorante de um tigre-dentes-de-sabre em carne e osso, a dupla de neurocientistas pretende injetar motivação na brincadeira experimental premiando com dinheiro a pontuação obtida no game. Quanto mais fases avançar, mais a cobaia humana leva no bolso ao deixar o Instituto.
Não será nada fácil obter aprovação de comitês de ética em pesquisa para tal estudo, já que no Brasil há restrições a remunerar a participação em experimentos. Pagar quantias diferentes às pessoas certamente ofenderá a mentalidade dominante, inviabilizando pesquisas de neuroeconomia, cada vez mais comuns nos Estados Unidos. Além disso, para tornar decisiva a premiação com pequenas somas em dinheiro, elas precisariam representar uma parcela significativa da renda do sujeito. “Seria bom dosar a motivação, para ver melhor a relação quantitativa”, traduz Ribeiro, agora para o jargão dos pesquisadores. Quanto mais pobre for a cobaia, proporcionalmente maiores seriam a recompensa e, predizem Ribeiro e Pantoja, a melhora da performance depois de uma noite de sonhos vigiados por eletroencefalograma.
Isso, claro, se as teorias de Ribeiro sobre o valor adaptativo do sono estiverem corretas. Por ora, elas só permitem prever que os dois neurocientistas desembarcados em Natal ainda precisarão de muitos sonhos – e alguns pesadelos – para ruminar argumentos bons o bastante e convencer as comissões de ética em vigília permanente.
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