ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Sopapos nos andes
Quando as cholas tretam
Ricardo Ferraz | Edição 126, Março 2017
Juanita joga-se contra as cordas de olho na rival. Impulsionada pelo efeito estilingue, salta e golpeia o peito da adversária com os pés unidos. A voadora acaba derrubando as duas no ringue, e a queda provoca um estrondo seco. A oponente agita a cabeça, zonza. Juanita aproveita para lhe puxar as tranças e urrar com cara de raiva. A plateia vibra. Alguns riem. Outros nem sequer movem a boca, estupefatos. Juanita, la Cariñosa, é a estrela principal do espetáculo Cholitas Wrestling, ou Luta Livre de Cholas, como ficaram conhecidas as indígenas dos Andes.
O show – uma das raras atrações de El Alto, cidade-dormitório na região metropolitana de La Paz – ocorre num precário ginásio com paredes de tijolo aparente e teto de zinco. Em torno dele, proliferam lojinhas e barracas que vendem de tudo: material escolar, bijuteria, equipamento eletrônico, comida e fralda infantil. O comércio barato atrai uma legião de carros, motos e pedestres, que deixa o cenário ainda mais caótico. Mesmo assim, entre 150 e 200 turistas se dispõem a assistir às cholas boas de briga toda semana.
Quando sobem no ringue, as lutadoras estão vestidas como as indígenas recatadas que se espalham pela Bolívia. Usam sandália, meia grossa de lã, várias camadas de saias coloridas e tranças compridas. Nas costas, trazem o aguayo, um pano bordado que lhes serve de bolsa, e na cabeça um chapéu-coco, de feltro.
São dois espetáculos semanais, de noventa minutos cada – um às quintas-feiras e outro aos domingos. O ingresso, no valor de 40 pesos bolivianos (20 reais), dá direito a pipoca, refrigerante caçulinha e um broche. Quem se atrever a usar o banheiro do ginásio terá de se engalfinhar com um balde imundo, que substitui a descarga. Antes de encarar o sanitário, porém, é preciso vencer os 480 metros de altitude que separam La Paz de sua principal cidade-satélite. Com cerca de 900 mil habitantes, El Alto faz jus ao nome. Fica 4 080 metros acima do nível do mar, num dos pontos mais extremos do país.
O ar rarefeito, que frequentemente tira o fôlego dos visitantes e os leva a nocaute, em nada atrapalha as acrobáticas cholitas. Tudo ali é puro teatro. As brigonas que distribuem os sopapos contam com a cumplicidade das que recebem. E as quedas só emitem ruídos fortes porque as folhas duplas de compensado que forram o ringue amplificam o barulho.
Em cada luta, um par de cholas enfrenta outro até um deles assumir o papel de vilão. As oponentes “do mal” jogam sujo. Arremessam cadeiras, desferem golpes desleais e batem sem dó, sempre sob o olhar complacente dos juízes. A coisa muda de figura quando as parceiras “do bem” reúnem forças e partem para uma sequência de voadoras até ganhar a peleja. O enredo previsível não desanima o público, que entra invariavelmente na brincadeira e reage à pantomima com aplausos, vaias, berros e gargalhadas.
“Vim porque queria ver algo típico daqui”, explica o francês Mathias Guibert, que passa férias na Bolívia, sem se dar conta do óbvio: o espetáculo é apenas uma versão mais trash das superproduções de luta livre que se tornaram populares nos Estados Unidos e no México. “De início, usávamos traje esportivo: collant e roupa de malha. Mas um dia uma das meninas esqueceu o figurino e entrou no ringue vestida de chola. Fez tanto sucesso que modificou o show”, conta Juanita. Dedicando-se à pancadaria há dezesseis anos, La Cariñosa treina duas vezes por semana, tanto para manter o físico quanto para ensaiar os números.
Em 2013, as cholitas puseram a encenação de lado e ficaram realmente nervosas. O antigo produtor do espetáculo pagava um cachê tão baixo que mal cobria os gastos com curativos. Juanita e quinze colegas fundaram, então, a Associação de Lutadoras Independentes. Hoje, cada associada ganha de 100 a 300 pesos bolivianos por combate (algo entre 50 e 150 reais). O valor oscila conforme a idade e o tempo na trupe. Uma das mais bem remuneradas é La Poderosa Silvina, que não preza pelo decoro habitual das cholas. Perversa, tem como marca registrada a língua de fora e o sinal de heavy metal, feito com o dedo indicador e o mínimo em riste. Durante as lutas, não apenas mostra a calcinha como rouba selinhos e cerveja dos homens que se encontram na plateia. Sua veia cômica descamba para o pastelão quando cospe a bebida na cara da adversária e, depois, amassa a lata no cocoruto dela. Sem reação, La Simpática (e um tanto inocente) Sônia limita-se a balançar a cabeça. O público costuma ir ao delírio numa das poucas disputas em que torce pela vilã.
Enquanto o pau come dentro do ginásio, as cholas de El Alto conversam em aimará ou quéchua numa praça vizinha, a Alexander. “Esporte é sempre bom, mas seria melhor se as lutadoras não usassem as roupas típicas”, opina Evelyn Huanca, sem afastar os olhos do parquinho onde o neto brinca. Ao sorrir, a idosa exibe os dentes encapados com ouro, outra característica das indígenas.
Embora ainda comum, a indumentária tradicional das cholas vem perdendo força, principalmente entre as jovens, que preferem envergar calças compridas. Lady Huanca, ou La Reina Torres, é uma das poucas lutadoras que dispensam os trajes ancestrais fora dos ringues. Aos 25 anos, frequenta um curso que ensina a cuidar de crianças nas creches locais e não quer sofrer preconceito dos colegas de classe. Pratica luta livre desde 2010, mas pretende parar quando conseguir o diploma, esclarece pouco antes de enfrentar La Cariñosa. No fim do embate, ela e as demais cholitas se perfilam num palco e tiram fotos ao lado dos turistas. Fazem caras de más. A impetuosa Silvina chega a levantar um homem imenso nas costas. Essa é a imagem da mulher andina que muitos dos forasteiros levarão para a casa.