Sorria! Você está no poder
Pasme: abraço de deputado vale a viagem a Brasília
Gustavo Faleiros | Edição 21, Junho 2008
A exemplo dos deputados federais, o mineiro Heleno Rezende trabalha em Brasília de terça a quinta-feira. Há 34 anos escolheu o caminho da política nacional. E, desde 1994, quando chegou ao Congresso de uma vez por todas, regula sua vida pelo vaivém semanal da Câmara, onde a segunda não chega a ser um dia útil e a sexta oficializa a revoada de parlamentares.
Só que Heleno viaja de ônibus. Enfrenta regularmente 716 quilômetros de estrada para ver a mulher, os dois filhos e os cinco netos em Belo Horizonte. São dez horas para ir e dez horas para voltar, toda semana, no chamado “Expresso Pão de Queijo”, da empresa Rota Mineira. Sem passagens aéreas custeadas pela Câmara a pretexto de visita às bases, ele desembolsa os 55 reais de cada bilhete. Mas compensa.
Com endereço oficial em Belo Horizonte, Heleno vive há quase quinze anos de fotografar a Câmara dos Deputados, onde cobre de preferência o que não é notícia. Não corre atrás de crises parlamentares, discursos estridentes ou votações relevantes, como fazem os fotógrafos de jornal e os cinegrafistas. Também apressa o passo pelos corredores, mas sempre na contramão dos colegas. Seu negócio é fotografar a rotina em salas e gabinetes de onde a vida pública não sai para ingressar no telejornal da noite ou nas manchetes impressas do dia seguinte. Para Heleno, quente mesmo é o congraçamento de comitivas municipais com autoridades federais. Prefeitos, vereadores e autoridades não-federais de todo tipo precisam desesperadamente dele para exibir às suas cidades a prova cabal de que fizeram e aconteceram na capital da República.
Dito assim, parece fácil. Mas a dedicação integral à não-notícia exige faro de repórter, acesso a informações de cocheira, fluência no quem-é-quem parlamentar e olho clínico para ir além das aparências. Em princípio, os labirintos da Câmara foram desenhados para dar a impressão de que os 513 figurões com mandato são todos iguais. Só vendo Heleno em ação para entender em que medida tais requisitos se traduzem, na prática, em pronto reflexo.
Como naquela tarde em que, de tocaia na entrada do Anexo II, ele foi o primeiro a ver que alguma coisa fora do comum se aproximava de seu ponto estratégico. “Olha lá, o Clodovil”, disse Heleno. Era mesmo uma visão muito fotogênica. O deputado Clodovil Hernandes trazia os cabelos grisalhos meticulosamente arrepiados a poder de gel e vestia um fabuloso terno de seda cinza, tão bem cortado que todos os paletós e gravatas ao redor viraram instantaneamente boas intenções de assessor parlamentar recém-contratado. Um amador teria sacado a máquina fotográfica na mesma hora. Heleno deixou a Nikon D-40 pendurada no pescoço, intocada. Se ao lado do deputado houvesse um secretário de agricultura de Patos (de Minas ou da Paraíba, tanto faz), quem sabe tivesse sido instado a agir. Mas Clodovil a seco é terreno infértil. Heleno se contentou em largar um comentário: “Ele me chama de ‘senhor’, mas é bem mais velho do que eu.” Clodovil tem 70 anos. Heleno, 54.
Heleno tem uma cabeleira branca ao redor do crânio pelado. É leve e ligeiro. Mal dá para segui-lo quando dispara rumo à Comissão de Minas e Energia e Defesa. Explica que o desconhecidíssimo deputado Hidekazu Takayama o contratou para registrar a visita de uma delegação do Parlamento sueco, tarefa de que vai dar conta em dez minutos. Ele entra, faz uma rápida seqüência de Takayama em meio a um discurso vistoso e volta. “É assim: rapidinho.” E vai em busca da Comissão de Direitos Humanos, na qual uma audiência com anistiados políticos promete boa colheita.
Ele está no ramo da política desde os anos 70, quando foi a Brasília pela primeira vez, levar ao embaixador chileno fotografias da inauguração de um estádio na terra de Pelé, Três Corações, em Minas Gerais. Ao entregar a encomenda, descobriu a nova capital e, nela, o melhor mercado para seus produtos. Ele já tinha alguma escola. Aos 19 anos, servindo o balcão no bar do Derly, conhecera José de Góes, fotógrafo que registrara passo a passo a carreira de Juscelino Kubitschek.
Heleno largou o bar e virou aprendiz de fotógrafo. Pouco tempo depois, carregava a tiracolo uma Yashica, na época a máquina típica dos iniciantes. Nunca mais deixou de ser discípulo fervoroso de José de Góes, mas com uma diferença: trocou presidentes por sumidades do anonimato, gente que pisotearia o retrato da mãe por uma chapa com os próceres da República.
Há tempos Heleno se converteu à fotografia digital, mas seus clientes não compram imagens gravadas em CD ou transmitidas por e-mail. Querem ampliações em papel, em tamanho adequado para pendurar na parede: é o diploma de que chegaram lá. Para atendê-los, Heleno recorre à boa e velha tecnologia analógica, que no caso se chama Romário, seu primo, motorista de táxi cuja missão consiste em sair correndo, levar o cartão de memória ao shopping mais próximo, imprimir as fotos e trazê-las de volta. O processo todo leva uma hora. Rápido “que nem pastel”, diz Heleno.
Ele vende de trinta a quarenta fotografias por dia – “no mínimo” –, a 10 reais cada cópia. Onze fotos já cobrem seu deslocamento semanal no Expresso Pão-de-Queijo. Hospeda-se numa pensão modesta da avenida W-3, uma espécie de subúrbio no coração do Plano Piloto. Nada lembra a gloriosa fundação do estado do Amapá, em 1988, que lhe rendeu o bastante para comprar a casa em Belo Horizonte, mas dá para o gasto, dá para equilibrar.
A Câmara proíbe negócios em suas dependências (pelo menos no varejo). Mas trinta fotógrafos como Heleno conseguem furar o bloqueio do regulamento. Basta portar no paletó um crachá de gabinete de deputado. Atualmente, ele usa o do deputado Zequinha Marinho, do Pará, mas já teve no peito o deputado Hélio Costa, hoje ministro das Comunicações. É um profissional estritamente apartidário. Nas manhãs de quarta-feira, costuma registrar os cultos da bancada evangélica; no PMDB, cobre as reuniões da Liderança da Mulher, e assim vai levando. Se há uma lição que aprendeu cedo com José de Góes, foi esta: “Trabalhe com os políticos, não com a política.” Com políticos nanicos, então, pode ser quase a bem-aventurança.